A FESTA DO PADRE

A noite é quente e o salão está lotado. Cabeças branquinhas acompanham o ritmo da música, enquanto as mãos e os braços abanam leques e espalham um ventinho amenizador. Nem mesmo os ventiladores dão conta do calor da noite, mas no momento as preocupações são postas de lado. As vozes que acompanham o som sabem qual é a letra, Taaanto/tanto/tanto/tanto/tanto que te aaamo. A música que agora já encheu o salão provém de uma pequena estrutura, arrumada numa espécie de mezanino, onde caixas de som quase escondem o DJ da noite. Parece aos demais que ele está realmente interessado no que faz, sorridente,calçando sandálias e exibindo seus cabelos brancos, já por volta dos sessenta anos. Ora aumenta, ora abaixa o volume das caixas – obrigando o salão a aumentar (ou a diminuir) o volume de decibéis da conversa. Os convidados ainda estão chegando – sim, é uma festa, e uma festa grande. As músicas do repertório celestial falam de fé, de amor, do Salvador. Tocam clássicos e novos sucessos, entre eles hits católicos da nova geração de padres cantores. Os convidados conhecem os padres pop, e acompanham bem a letra – Vai dar tudo ceeerto/Vai dar tudo ceeerto. Além dos leques e dos abanos, o jeito é bebericar uma Pepsi de garrafinha, com rótulos ainda antigos da marca. Alguns poucos degustam uma cervejinha, e outro ainda arrisca um vinho para toda a sua família sentada ao seu lado na mesa.

São mesas compridas, dispostas pelo salão, permitindo apenas um grande vão ao meio, por onde adentram os convidados. Quem chega logo vê a decoração toda em tons de azul, além das toalhas brancas que forram mesas e cadeiras. Para contrastar com o branco, detalhes em azul-bêbe nos laços das cadeiras, nos guardanapos e nos lenços. Duas mesas para Buffet, um altar ao lado da estrutura de som do DJ, onde a decoração montou um espaço para as fotos – cadeira, mesa de vidro contendo nada mais que um exemplar da Bíblia, um rosário de contas de madeira e um vaso com lírios. No meio do salão, entre as duas mesas de Buffet, uma mesa ao comprido, em frente a uma foto grande de um padre, demonstrando pelas mãos o gesto de levantar uma hóstia – o pão sagrado da religião católica. No exato momento, dois bolos cobertos de merengue branco atravessam o salão na mão de duas ajudantes. Cabeças viram para apreciar os doces. As pessoas que hoje estão ajudando a servir, cozinhar, trazer, levar, recolher e lavar são todas voluntárias. Podem ser reconhecidas por um avental marrom, com a gravura de Jesus Cristo ao lado da figura de Maria (“Maria, Mãe do Redentor”, pode-se ler).

O DJ precisa espantar o calor de alguma forma, e por isso faz com que o ventilador fique parado bem em frente ao seu rosto. As músicas continuam rodando. Animado, o homem do som pega o microfone que repousava sem supervisão e anuncia: Tá chegando o Padre! O salão murmura contente, e aquela que parece ser a família do padre está toda de pé ao centro do salão, recebendo dos convidados os parabéns. Pelas conversas paralelas, já se sabe que os parentes vieram de todas as partes. Aliás, boa parte do salão não pertence só apenas à comunidade católica de Cachoeira do Sul. Os municípios vizinhos vieram em peso, a maior parte deles em ônibus lotados – Ibarama, Sobradinho, Arroio do Tigre, Cerro Branco.

Para fazer companhia ao DJ, a festa agora recebe o Mestre de Cerimônia, vestido em terno preto, sorridente e presencial. Sem muitos rodeios, o Mestre anuncia: É com muita alegria que recebemos o mais novo padre ordenado na cidade! Agora os rostos estão voltados para a entrada do salão, de onde surge o convidado mais esperado. O padre. Ou melhor, o mais novo padre da cidade, ordenado padre ainda na mesma noite. Alto, é facilmente identificado. Veste uma camisa azul clara, elegante, e um óculos discreto. Suas mãos são grandes, porém seus gestos são leves.

A câmera filmadora acende uma forte luz e passa a acompanhar os passos do padre que, democrático, acena para todo o salão. O DJ percebe que a melhor música para o momento só pode ser Marcelo Rossi. Abençoa Senhor as famílias, Amém!/Abençoa Senhor, a minha também! Todas as senhoras presentes no salão indicam ao Senhor com as mãos o espaço onde estão os representantes de suas famílias que merecem ser abençoadas. O padre agora está com o DJ, e falando ao microfone, agradece a presença de todos, “a festa está linda”. Logo depois ainda pergunta: Estão com fome? Eu também! Só hoje perdi uns 5kg! Mas, antes de partir para o prato principal, a oração. Feitas as preces, todos já podem seguir para o Buffet. Ou quase isso. A fim de organizar o salão, as mesas estão divididas. Como o Mestre de Cerimônia anuncia, os primeiros serão padre e família, seguidos pelos convidados que vieram de longe. Constata-se pelo tamanho da fila que parecem ser a maioria. Alguns padres da cidade também já estão se servindo, mas, ainda na intenção de organizar as filas, cada uma das mesas recebeu uma palavra que a identificaria: , chamado, esperança,vocação, fortaleza, alegria e serviço.

O DJ escolheu agora Roberto Carlos, para a imensa alegria das senhoras que estão na fila acompanhando a música só com a cabeça, já que as mãos estão ocupadas segurando os pratos. Na mesa em que estou, a placa fé. Uma senhora sentada na minha frente cruza os dedinhos e murmura “Fé!Fé!Fé!”, torcendo para que a próxima mesa a ser sorteada seja a sua. Mas quem sai é a esperança. “Pelo visto, dessa vez, a esperança não foi a última!” observa com perspicácia o Mestre de  Cerimônia.

Um padre caminha pelo salão, acompanhado por um grupo de garotos seminaristas. Seu objetivo é encontrar um lugar para cada um deles nas mesas, “Tem lugar sobrando? Ah, então vou trazer um seminarista!”. O menino senta e sorri.

Ao ser sorteada, a mesa vocação ovaciona contente. Um senhor levanta as mãos para o céu, agradecendo por ser a sua vez. Quem parece não estar mais tão a vontade é o Mestre de Cerimônias, privado do ventilador, enfastiado em seu terno quente, abanando-se com as folhas que traz nas mãos. Duas senhoras bem arrumadas, com brincos e colares dourados, cochicham na fila “Ah, mas eu vi, ela furou a fila! Eu vi mesmo!”. Uma versão mais gospel da conhecidíssima Jesus Cristo de Roberto Carlos começa a tocar e é bem recebida no salão. Uma roda de senhores aproveita o momento para conversar, e o DJ agora ajusta o ventilador para ainda mais perto de si. Escuta-se a saudação Viva ao padre! O autor é outro padre, no momento ajudando a servir, vestido também com um aventalzinho marrom. As mãos de ambos os colegas se tocam, tornando visível a discrepância do tamanho entre eles.

Agora que já jantou, o padre ordenado caminha por entre as mesas, tirando fotografias e registrando com a filmadora todos os presentes. Como em uma festa de quinze anos, ele para a cada mesa, sendo recebido por talheres silenciados, copos estáticos e sorrisos amarelos – afinal nenhum dos presentes quer ser flagrado com um pedacinho de alface entre os dentes. A janta foi feita para aproximadamente quatrocentas pessoas, e neste momento o salão todo está ocupado. Mais uma vez o DJ se aproveita do microfone e anuncia que o padre vai cortar o bolo da festa. Outro colega do padre ordenado, de uma paróquia vizinha, puxa os parabéns, e logo após a saudação oferece o microfone a quem quiser se pronunciar. O Mestre de Cerimônia retoma o seu microfone e, antes que alguém queira prestar sua homenagem, anuncia que, logo após cortar o bolo, o mais novo padre da cidade estará no recanto decorado para a sessão de fotos com os convidados. O bolo agora está sendo servido. O padre, ainda bastante sorridente, senta-se na cadeira arrumada para ele no recanto decorado, puxa um lenço do bolso e enxuga o suor da testa. Quando percebem que o padre já está posicionado, as famílias começam a fazer fila para as fotografias. Família por família, sendo elas de quatro ou até de dez pessoas, posicionam-se uma após a outra ao lado do padre, sorrindo para a câmera. Precavidos, os fotógrafos já espalharam pelas mesas bilhetinhos com o endereço do site para aqueles que quiserem encomendar as fotografias.

Uma senhora de cabelo vermelho, arrumada em um vestido verde longo, com lágrimas nos olhos, toma o microfone da mão do DJ e diz: “Boa noite a todos. Com muita emoção que me encontro aqui. Fui professora dele na quarta série, e quero contar quando uma vez cheguei atrasada em sala de aula. Sem esperar muito, iniciei a aula. Foi quando ele levantou a mãozinha e disse “Professora, a senhora esqueceu-se de rezar!” (risos fraternais enchem o salão). Notava-se já a sua vocação, não é mesmo? Nas aulas de religião, era sempre ele quem pedia para ler as passagens!”. A professora, visivelmente emocionada, agradece aos presentes e vai para a fila, tirar a sua fotografia. Além dos bilhetes com o endereço das fotos, estão nas mesas pedacinhos de papel com os dizeres deixe seu recado para o padre, acompanhado de algumas linhas. No momento, alguns convidados rabiscam suas mensagens. O DJ bota para tocar índiaa seus cabeeelos neeegros, e algumas senhoras dão risadinhas enquanto coram: Era para essa música estar no ‘script’? Essa é do tempo dos meus boleros!

Os convidados continuam tirando suas fotografias com o padre que, ainda bastante sorridente, atende a todos com paciência. O DJ agora avisa que os ônibus das localidades próximas já estão partindo, e aqueles que vieram de longe começam a se despedir. Vão todos com Deus! O Mestre de Cerimônias permanece um pouco calado, deixando que o DJ comande o microfone. Aos poucos o salão vai ficando um pouco maior e mais silencioso. As famílias, contentes, despedem-se do padre desejando-lhe sorte e, principalmente, vocação. O DJ percebe que o momento pede Nossa Senhora, também na voz de Roberto Carlos, é lógico. Os voluntários, que passaram a noite trabalhando, agora já podem servir seu jantar. Sentam-se todos juntos em uma mesa e comem tranquilos, ainda vestindo os aventais. O padre agora se prepara para tirar sua última foto, com seu irmão. Ambos sorriem e dão-se as mãos. O padre respira um pouco mais aliviado, mas ainda não terminou. O DJ abandona seu posto e pede a sua foto também.

As mesas agora estão vazias de gente e cheias de restos de festa. Logo mais, haverá mais trabalho aos voluntários. Até o DJ começa a arrumar seu cantinho, recolhendo os aparatos. O Mestre de Cerimônia afrouxa a gravata e um seminarista, enquanto recolhe as garrafinhas de vidro, bebe o final do refrigerante antes de colocá-las devolta na caixa.

A FESTA DO PADRE, pelo viés de Nathália Costa

Ilustrações pelo viés de Rafael Balbueno

nathaliacosta@revistaovies.com

rafaelbalbueno@revistaovies.com

Para ler mais perfis acesse nosso Acervo.

Um comentário sobre “A FESTA DO PADRE

  1. Nathália, parabéns pela reportagem. Consegui vivenciar a Festa do Padre.

    Um beijo da tua prof. da pré escola. 🙂

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