LATINOS: DORMIDA E VESTIDA DE MAR

Série de reportagens "LATINOS". Clique na imagem e saiba mais.

Por la blanda arena que lame el mar. Flutuando sobre o tapete cinza de areia durante o iniciar da noite, vinham-lhe inspirações. Do mar, a imensidade. Quiçá, prenúncio de solidão. Quem está no mar está só. A imaginar, mirava as ondas, severas ou deleitosas, às vezes turbilhão, noutras tranquilidade. Assim conduzia o coração, entre quebras e amortecimentos. Morrer cedo sublimemente é para poucos. Su pequeña huella no vuelve más. Teve a glória de ser amiga de Quiroga. Morrer não faz parte, pois fazer parte cita a vaga ideia de algo que transpõe, que cruza, que participa e que se cala outra vez. Morrer não faz parte, é a principal parte posteriormente ao nascer. As duas singulares certezas. Esta última dura segundos, enquanto se tem a breve confiança de vir ao mundo. A primeira persiste no momento exato que se é. E o tempo pode parecer lacônico para alguns, prolixo para outros, pois o tempo, o tempo não se palpa, não se descreve distância, não se pode equiparar. Un sendero solo de pena y silencio llegó. O tempo dura a silhueta que cada um define para si. Uma estação de vinte segundos, sete décadas ou quarenta e seis anos. E só o tempo de cada ser é o mais preciso ponteiro do relógio. Assim se vão as almas e os aforismos. Assim se esvanecem a genialidade do corpo, o calor do cérebro, os túneis da fantasia. Na vida extraordinária de alvitres, as certezas do nascer e do morrer ganham uma amante: a certeza do conceber. A areia, o mar, os poemas. A mulher, seus escritos, sua sabedoria. Os escassos – para alguns – anos havidos. A plenitude da imortalidade resguardada em letras, palavras e versos. A mulher que não nasceu para ser só uma, que surgiu abalizada de muitas, um broto de amor do que sentem os corações de milhares. Resguardou posto altivo na memória das letras pela educação formal que a realçava, pela delicadeza e pelos ideais fundamentados em um feminismo não aflorado no discurso, mas atrelado ao sentido implícito de seu raciocinar. E mantém sua coragem espiritual na narrativa poética de língua hispano-americana até hoje. Hasta el agua profunda. Un sendero solo de penas mudas llegó. Em desacordo à crença da leviandade do Modernismo, não o abraçara como os contemporâneos, protestando em versos a superficialidade do “estilo decorativo”. Com grande emprenho, foi uma das idealizadoras da Sociedade Argentina de Escritores, fundada em 1928. Hasta la espuma. Nascida na Suíça, de alma e pais latinos, conhece a vida em San Juan, Argentina. Fundada a cervejaria da família, com etiquetas “Cerveza Los Alpes, de Storni y Cía”, a terceira filha da família, nascida em 29 de maio de 1892, leva o nome que representa disposta a tudo: Alfonsina. Na lembrança mais remota, tem quatro anos, está sentada na varanda de sua casa, gordinha e feia, a mover os lábios como se lesse o livro que tem nas mãos. Com o canto do olho, espia os passantes. Os primos mais velhos zombam, gritando-lhe que, parada, lê um livro de cabeça para baixo. A vida não é tão simples. No primeiro ano do século passado, a família se muda para Rosário, um bem-sucedido porto do país, na província de Santa Fé. Sabe Dios qué angustia te acompañó.  A vida de Paulina, sua mãe, submergia infrutuosa. Pobre, abre uma pequena escola familiar. Da escola, a família agora encabeçada pela mãe, abre o “Café Suíço”, na Estação de Trem. Qué dolores viejos calló tu voz. Mais um fracasso na vida dos Storni. Com dez anos, a menina limpava pratos e servia mesas. Não demoraria a trocar os pratos pelos palcos. Para recostarte arrullada en el canto de las caracolas marinas. Com os fracassos sucessivos, as mulheres da família resolvem trabalhar como costureiras. Mas em 1907 a vida da jovem Storni tomaria um rumo de fadários e transtornos, deslumbres, riquezas e penalidades que a levariam um dia ao oceano profundo. La canción que canta en el fondo oscuro del mar, la caracola. Alfonsina nunca mais seria uma garota do gueto, escondida entre as pobrezas da alma e do capital. Afinada, brotaria uma atriz que mergulhava e emergia repleta de opulência. Mas era necessário convencer a mãe de que ser atriz lhe valia mais do que lavar pratos ou costurar gorros. Assim, com o consentimento de Paulina, a atriz Storni percorre as províncias de Santa Fe, de Córdoba, de Mendoza, de Santiago del Estero e de Tucumán a proclamar sua independência em textos decorados com gosto, sozinha, por aí, longe do desânimo da vida. Chega a representar a obra cênica “Los muertos”, de Florencio Sánchez. Palco. Cena. Narrativa. Escritos. Folha. Grafia. Letras.  Te vas Alfonsina con tu soledad.

“Aos treze anos eu estava no teatro. Este salto abrupto, filho de uma série de chances, teve uma grande influência sobre a minha atividade sensorial, como o contato com os melhores trabalhos de teatro contemporâneo e clássico(…)Mas quase uma criança e na procura de tornar-me uma mulher, a vida tornou-me insuportável. Percebi que estava me afogando. Virei as rédeas”. A partir da primeira asfixia saboreada, nasce a peça “Um corazón valiente”, escrito pela atriz que não tolerava mais consistir-se em. Desta obra, não restaram testemunhos. Alfonsina-atriz dava espaço a Alfonsina-poeta, jamais inexistente. Em Rosário, quando volta a residir próximo a mãe recém casada novamente, a poeta torna-se profissional de títulos condescendentes. Era a vez de a escritora ganhar espaço nas revistas literárias da época, como a “Mundo Rosarino” e a “Monos y Monadas”.

O momento necessitava de Storni em Buenos Aires, uma cidade aberta ao mundo, moderna, apinhada de inovações, com miragens de uma nova Argentina intensa e de perfil próprio. Nasce Alexander, seu filho, em 1912. Assim, encara a cadeia de decisões afanosas para uma mulher do início do século, mesmo sem acompanhar os padrões sociais da época, solteira e com filho. Na bagagem, alguns livros, versos próprios e roupas miseráveis. Novas convivências fariam da escritora e de sua obra uma ardência ilustre e fascinante.

Os leitores argentinos então têm direito ao primeiro contato com a obra de cunho poético infame, romanesco, de sagacidade lírica e alma compassiva, cheia de impressões sangradas de pele. Mesmo que não haja resquícios de muitos, alguns poemas conservados até hoje, atestados da nobreza poética à altura dos melhores, mostram uma Alfonsina de amores frustrados, ingênuos, de alma apaixonada e atormentada. Desejos, perspectivas e decepções. Storni reconstrói o Pós-modernismo somando a este, elementos neo-românticos, que a levaram a erguer um alento em meio às letras com fulgor.

O primeiro livro, “La inquietud Del rosal”, foi publicado com dificuldades econômicas. Em junho de 1916, a revista “Mundo Argentino” publica o poema “Versos otoñales”. A característica intimista aflora na escrita e a capacidade de percorrer-se internamente a impetra, caráter insólito aos poetas da sua geração. Dentre seus contemporâneos, Alfonsina sustou e ainda susta um espaço distinto, tanto pela estética e pela qualidade de sua obra, quanto por seus martírios e final tão nefasto. Alfonsina, até hoje, é considerada por estudiosos como um colosso que contribuiu e deixou as maiores marcas para as letras femininas hispano-americanas.

Al mirar mis mejillas, que ayer estaban rojas
He sentido el otoño; sus achaques de viejo
Me han llenado de miedo; me ha contado el espejo
Que nieva en mis cabellos mientras caen las hojas.

Em 1918, Alfonsina publicaria “El Dulce daño”. José Ingenieros, seu grande amigo e, em certas ocasiões, seu médico, lera algumas partes da obra em um jantar em que se encontravam os mais ilustres retratos culturais sentados à mesa. Alfonsina Storni já sentia o cansaço e o abatimento. Mesmo nessas condições, levantou-se para que todos pudessem ouvi-la recitar.

Fora amiga de Amado Nervo, o poeta mexicano propulsor do Modernismo latino-americano, conhecendo-o por intermédio da revista “Mundo Argentino”, onde ambos tiveram suas obras reconhecidas. Em 1919, Nervo é intitulado embaixador do México na Argentina e passa a frequentar os mesmos saraus, encontrando-a frequentemente, onde selaram uma boa camaradagem. Ela o dedica um exemplar de “La inquietud del roseral”, em que conclama o mexicano como “poeta divino”. Do mesmo modo, conheceu em José Enrique Rodó, figura magistral do novo pensamento uruguaio e um dos expoentes da poesia sul-americana, um braço amistoso. Escreviam os dois naqueles tempos para a “Caras y Caretas”. Durante a estadia de Federico García Lorca em Buenos Aires, entre outubro de 1933 e 1934, conhece o escritor e dele aproxima-se, dedicando-lhe um de seus escritos. O prefeito de Bueno Aires, na época Intendente Municipal, nomeia a primeira mulher a um cargo público importante. Essa era Alfonsina, que, em seu diário, escreveu: “A civilização apaga cada vez mais as diferenças de sexo, porque eleva o homem e a mulher a seres pensantes e mescla aquelas que pareciam características próprias de cada sexo, mas que não eram nada mais do que estados de carência espiritual. Como afirmação desta verdade, a Intendência de Buenos Aires declara nobre, em seu território, a condição feminina”.

Seria a partir de Buenos Aires que a atriz viraria sombra da poeta e a sombra de jovem tornar-se-ia sombra de mulher, enfrentando sozinha os percalços surgidos.  Os temas da morte e da criação poética unem-se aos do amor por um homem, da injustiça social e da condição feminina da época, dividida entre ser uma dama comum e prosaica, ou uma mulher fora dos arquétipos, consumida em intensidades. Caso o primeiro caminho tivesse sido o escolhido por Alfonsina, quem sabe, nunca viesse a adormecer na voz lânguida de “La Negra”. Mas, ao seguir a vida de artista, alforriada e insurgente, as mãos que escreviam com dor entregaram-se facilmente às dores da multiplicação da angústia em registrar lástimas e iniquidades.

Ao frequentar a casa do pintor Emilio Centurión, em 1916, de onde posteriormente surgiria o grupo “Anaconda”, foi apresentada ao escritor uruguaio Horacio Quiroga. Ele se tornaria sua maior ternura, o mais perfeito amigo e a quem mais admirou profissionalmente. Sua personalidade deixou, do mesmo modo, Alfonsina atraída inexplicavelmente por aquele homem tão mágico, perseguido por correntes suicídios de entes próximos. Quiroga era na Argentina um fugitivo de seu inconveniente passado, um forjador de seu presente. Vivia discretamente com os ganhos sobre o que escrevia para jornais e revistas. Em seguida, no ano de 1919, Alfonsina publicaria “Irremediablemente” e, em 1920, “Languidez”, que lhe rendeu, pela primeira vez, o Prêmio Municipal de Poesia e o segundo Prêmio Nacional de Literatura. Entre a afeição e o encantamento, um beijo durante uma brincadeira e corações fumegantes. Quiroga guardaria aquele momento em seus diários e Alfonsina passaria a ser palavra frequente nas cartas escritas pelo uruguaio, assim como várias outras mulheres, muitas também escritoras. Alfonsina então rejeita o chamado de Horacio para viajar em sua companhia. Nem Quiroga, nem ninguém. Nem mesmo ele. Mas ainda eles, os desencantos.

Em 1923, a revista “Nosotros”, liderança de público leitor sobre arte literária, influenciadora da crítica popular, elevou Alfonsina, através da opinião dos que constituíam a nova geração literária argentina, à poeta mais lembrada entre os questionados.  Em 1925, era a vez de “Ocre” chegar ao público e sua postura de escritora cada vez mais se edificava emblemática.  Por esses anos, morre José Ingenieros, deixando a amiga um pouco mais solitária. Em 1927, mais um desequilíbrio: sua peça de teatro estreia com grande expectativa do público, mas a crítica derroca a representação, cerrando as cortinas velozmente. Alfonsina, angustiada e dolorida pelo fracasso, vem a culpar o diretor e os atores.

Amortizada toda sua existência às faltas, principalmente a de alguém que a amasse como desejava, apeteceu-se ao mar. Os homens tinham seu corpo como uma carranca, admiravelmente talhada por fora, mas que, no fundo dos olhos e no conjunto do desenho, causava receio, pois, sem desejarem atingir sua natureza e romantismo, expostos nos versos e afunilados no ser, todos se afastavam por acovardamentos. Alfonsina cairia na armadilha mais banal, tão prófuga, das palavras rematadas ao ponto de sufocar, de magoar o peito, de incisar a raiz como em tempestade de trópico. A graça, a finura e o esplendor de ter a seiva do intelectivo a arredaram de muitos. Foi ridicularizada pela mesma sociedade sempre e consecutivamente hipócrita. Sua audácia sem confins e pudores não domados escandalizavam.  Aos vinte dias de maio de 1935, é levada para a sala de cirurgia a fim de reverter um câncer de mama. No ano seguinte, ao tomar uma dose violenta de veneno, suicida-se o amigo Horacio Quiroga.

Diante da deslealdade das ocasiões, volta-se contra os homens, contra pessoas das quais tanto necessitava mas que intuía não a aceitarem, os broncos, as calçadas, o cotidiano. Tudo esvanecia em superficialidades.  Sua crítica ao sistema patriarcal do amor entre homem e mulher e as dificuldades da relação sob a soberba masculina apresentadas pela poetisa a atraiçoam e a diminuem, arrancando-lhe a força de anos mais bem vividos.  Alfonsina não era complacente às mulheres, mas pensava além, exigindo que se pusessem a altura das possibilidades do auto-juízo, afastando-se da imagem de puerilidade indefesa que as sagravam como vítimas infindáveis dos homens. Em 1936, dava início ao afastamento público após a documentação médica comprovar que a intervenção cirúrgica não havia estacado seu câncer. Retraída, envolve-se em suas camadas, desde a mulher intimista, rompendo suas amizades, deslocando-se para longe, vivendo solitariamente junto ao temor da enfermidade. Em 1938, Alfonsina Storni se muda para Mar Del Plata, prepara sua antologia poética, deixando “La inquietud Del roseral” de fora, deixando seu pós-modernismo excluído para entregar-se ao estilo vanguardista. Publica “Mascarilla y trébol”, seu último livro. A mulher, o destino, a natureza e a escrita, perdidas da paixão, são os temas embarcados nos últimos escritos junto ao pessimismo.

A candura mediante à beleza da naturalidade trouxe uma Alfonsina de simbolismo confuso. Uma carta para o filho Alexander e um soneto ao periódico “La Nación” chamado “Voy a dormir”.  Em 25 de outubro de 1938, aos quarenta e seis anos, caminha em direção ao mar. Primeiro naufragam os pés, os joelhos abraçados pela água, as ondas a desenhar de espuma um véu a altura do quadril, o sal descobre os seios, o frio regela o rosto.

¿Qué poemas nuevos
Fuíste a buscar?
Una voz antigüa
De viento y de sal
Te requiebra el alma
Y la está llevando
Y te vas hacia allá
Como en sueños
Dormida, Alfonsina
Vestida de mar.

LATINOS: DORMIDA E VESTIDA DE MAR, pelo viés de Bibiano Girard

bibianogirard@revistaovies.com

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

xxn xnnx hindi bf xnxxx junge nackte frauen

Posts Relacionados

Comece a digitar sua pesquisa acima e pressione Enter para pesquisar. Pressione ESC para cancelar.