LATINOS: "SER CAMPEÃO É DETALHE"

O filósofo doutor brasileiro

O Corinthians não tem apenas o mérito de ter vencido a Libertadores, de 2012, na última quarta (4 de julho de 2012). Não, esse não é o único e talvez nem seja o maior mérito do Corinthians. Entre os campeonatos estaduais ou nacionais vencidos pelo time paulista, e agora também o maior campeonato latino-americano, com certeza um dos maiores méritos que carrega o “timão” é o de ter tido entre suas fileiras, como atleta e como torcedor, o exemplar jogador e ativista dos campos e dos palanques: Sócrates, o Doutor.

Sócrates Brasileiro Sampaio de Souza Vieira de Oliveira, nascido em 1954 e morto precocemente em 2011, era médico e jogador de futebol. Tinha, então, apenas 57 anos quando faleceu no ano passado. Nasceu com nome de grego, povo criador da  “democracia”. Nome de filósofo. Sócrates brasileiro em nada perdia para o Sócrates grego. Também foi inventor da Democracia. Também filosofou dentro e fora dos gramados.

O jogador, o técnico e a formação

No Brasil, ficou conhecido por jogar no Corinthians, apesar de ter passado por mais dois times paulistas: Santos e Botafogo (o de São Paulo, não o tradicional carioca). Botafogo Futebol Clube não apenas lançou Sócrates, na década de setenta, como também foi casa do irmão do jogador, Raí (também ídolo da torcida brasileira). Botafogo-SP é o time da cidade de Ribeirão Preto, no interior paulista. A mesma cidade onde o ídolo cresceu e onde foi velado, ao falecer em dezembro de 2011.

Sócrates, quando jogava pelo Corinthians.

Ao mesmo tempo em que dava seus primeiros passos no futebol pelos campos do Botafogo-SP, Sócrates conciliava esses passos com os estudos em Medicina, na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, unidade da famosa Universidade de São Paulo (USP). Pouco conseguia treinar por conta dos estudos, ainda que o time o reconhecesse, desde o começo, como uma espécie de fenômeno. Nas palavras do próprio, “só jogo se puder estudar”. Durante a década de setenta, seus primeiros anos no Botafogo–SP, recebe treinamento diferenciado e consegue se destacar pelo time, vencendo, inclusive, em 1977, o grande São Paulo no próprio Morumbi, conquistando a Taça Cidade de São Paulo. Também marcou um gol célebre na Vila Belmiro, para cima do Santos, e de calcanhar. Um ano depois, em 1978, o jogador deixa o Botafogo e transfere-se para o time em que seria mais conhecido: o Corinthians. Após se formar em medicina, em 1977, Sócrates passa a se dedicar mais ao futebol e em 1978 já está firmado no Corinthians. Ao lado dele, parceiros como o ex-jogador e atualmente comentarista, Casagrande. Em 1979 é que faz sua estreia na Seleção Brasileira. Além de ficar conhecido como Doutor pela sua formação em medicina, Sócrates também seria chamado de Calcanhar, pelo toque que aprendera jogando futebol de salão e que se tornaria uma espécie de marca registrada.

Além dos paulistas Botafogo e Corinthians, e depois Santos, Sócrates também passou pelo Flamengo – isso depois de jogar na Itália, pelo Fiorentina (de 1984 a 1985). Ainda que Sócrates tenha passado brevemente pelo time italiano, saindo, inclusive, sem títulos, o Fiorentina publicou em seu site oficial uma foto e uma homenagem ao jogador brasileiro após o seu falecimento. Na Itália, Sócrates era conhecido como Dottore.

Homenagem do time italiano ao jogador no dia de seu falecimento.

Além de jogar na Itália, Sócrates teve outra breve participação no futebol europeu.  Em 2004, jogou uma partida pelo Garforth Town, da Inglaterra, time da oitava divisão inglesa.  Após sua estreia na Seleção Brasileira em 1979, Sócrates permanece no time até 1986. Em 1986, apesar de preferida ao título da Copa do Mundo, a seleção foi desclassificada pela Itália nas semifinais da competição. Sócrates integrava, juntamente com Falcão e Zico, o time dos craques de 1986 que não venceram a Copa do Mundo. Além de jogador, Sócrates também foi técnico do mesmo time que o lançou, o Botafogo de São Paulo. Também treinou a LDU (Equador) em 1996 e o Cabofriense em 1999. Na LDU  não teve um bom relacionamento com os jogadores e saiu alegando falta de profissionalismo dos mesmos. E, antes de falecer em 2011, ainda recebeu um convite para treinar a Seleção de Cuba. Na época, Sócrates declarou aos jornalões da mídia (como a Folha) que estaria interessado em treinar a seleção do país que admirava profundamente pela opção política socialista, igual a sua, e que aceitaria o cargo por um salário igual ao dos demais trabalhadores da ilha.

Democracia (dentro e além do Corinthians)

Camiseta "Democracia Corinthiana". Foto da internet.
Camiseta "Democracia Corinthiana". Foto da internet.

O que faz Sócrates ser conhecido e admirado por muitos torcedores do “time do povo”, e fora dele também, não é apenas a sua atuação futebolística – isso, aliás, tem espalhado entre diversos nomes, nacionais e internacionais, do futebol. Sócrates é também, e deve continuar sendo, admirado pelo seu trabalho político. Escritor, jogador, político, formador de opinião – dono de opiniões muito bem formadas. Sócrates liderou aquele que seria o movimento que colocaria seu nome da história da política e do futebol: a Democracia Corinthiana. Nesse sistemas, os jogadores do time tinham o peso de decisão igual ao de diretores. A Democracia surgiu na década de oitenta, em plena ditadura militar brasileira. A partir desse recorte, o povo começou a discutir política. Na Democracia, jogadores, técnico, roupeiro e presidente tinham o mesmo peso de voto. As decisões mais importantes do time, tais como contratações ou regras e tratados para as mesmas, passavam por esse conselho autogestionado.

A época em que a Democracia se consolidou não era das melhores para o Corinthians. O time vinha em campanha fraca nos campeonatos nacional e estadual, em pleno jejum. A Democracia Corinthiana passou a validar a partir do início da década de 80. Os resultados desse sistema não se converteram apenas em vitórias para o time (que conquistou o campeonato paulista em 1982 e1983, além de chegar às finais do campeonato brasileiro – na época, Taça Ouro para a primeira divisão), como também em resultados prósperos ao exercício da política brasileira. No ano em que a Democracia surgiu, o Corinthians não tinha sido classificado para a Taça Ouro, passando a disputar apenas a Taça Prata (as antigas divisões do Campeonato Brasileiro, equivalente a primeira e segunda divisão). O mesmo período corresponde ao fato de a presidência do Corinthians ter sido substituída de Vicente Matheus para Waldemar Pires. Waldemar decide chamar para ocupar o cargo de diretor técnico do time o sociólogo Adilson Monteiro. Além de Monteiro, também compuseram a diretoria Sérgio Scarpelli  e Washington Olivetto (sim, o mesmo famoso publicitário responsável, por exemplo, pela propaganda do Bombril, com aquele garoto-propaganda que todos os brasileiros conhecem). Olivetto foi quem criou o termo Democracia Corinthiana, sugerindo, inclusive, que os jogadores utilizassem frases de cunho político nas camisetas, além das propagandas (o próprio Corinthians foi o primeiro time brasileiro a ter estampas publicitárias em suas camisas). Em plena época de regime militar no Brasil, jogadores como o próprio Sócrates entravam em campo com os dizeres “diretas já!”, ou mesmo “quero votar para presidente”. Além dos dizeres na camiseta, torcida e jogadores levavam faixas e cartazes aos estádios promovendo a ideia de democracia e pedindo o fim da ditadura brasileira.

Imagem da Internet.
"Ganhar ou perder - mas sempre com democracia". Imagem da Internet.

A Democracia acabou, por isso, indo além do Corinthians e dos gramados, dos noventa minutos de jogo ou dos debates entre jogadores e diretoria: a democracia atingiu o povo brasileiro que viu surgir no time “do povo” uma fagulha de luta e de rebeldia. O povo começou a debater as eleições depois de ir ao estádio ver uma partida. Ou antes dela. O povo começou a ver seus ídolos dos gramados discursarem em palanques pedindo a volta das eleições para presidente e a redemocratização brasileira. Sócrates, sempre nesses palanques, politizou o debate ao máximo, sendo lançado à figura do representante da Democracia Corinthiana e da politização no futebol. O Corinthians voltou a disputar a Taça Ouro. Personalidades influentes da época, como o radialista e narrador de futebol Osmar Santos, e a cantora Rita Lee, vestiram a camiseta da Democracia Corinthiana.

Esse foi o princípio de um movimento político no futebol brasileiro, organizado de uma forma que não vemos mais. Se o Corinthians hoje quer ser chamado de time do povo, parte disso com certeza tem influência da Democracia.

Sócrates em um comício pelo voto direto. Imagem da internet.

O fim da Democracia Corinthiana seguiu os mesmos passos de outros movimentos sociais que foram esmagados pelo advento do neoliberalismo, consagrado na década de 90. Amargando resultados negativos, comparando-os aos resultados de times como o Flamengo, que seguia a mesma gestão clássica de diretoria e tudo mais, o Corinthians se viu na obrigação de acabar com a Democracia Corinthiana, retornando ao antigo modelo de gestão do time. Antigo, porém com novas e desagradáveis ressalvas, provenientes de organizações como a FIFA e UEFA – além do modelo de gestão por meios privados, importados do futebol europeu. Com isso, também surgia no Brasil o Clube dos 13, uma espécie de “empresa” que negociava os interesses políticos e comerciais dos principais clubes brasileiros – inclusive os direitos de transmissão do campeonato brasileiro. Para estar no Clube, era preciso ter a cadeira e a representatividade de um presidente, nos velhos moldes. Diante desse cenário, muito parecido com o cenário que se colocou nas empresas e no mercado mundial, a Democracia mingou e não teve forças para retornar. O antigo diretor do clube retornara, e Sócrates ia jogar na Itália. As manifestações e as greves paulistas, provenientes do movimento operário da época, ganhavam força diante de um cenário acostumado com a repressão e a “ordem” reacionária. Os aglomerados futebolísticos de torcida eram vistos como alienação ao povo, o fadado “pão e circo”, que inclusive, em outros momentos, tinha ajudado a ditadura brasileira ao engatar a Seleção como o principal desviador de foco da nação. Títulos da Seleção serviam à ditadura como alusão ao povo de uma nação que ia muito bem. A Democracia veio para, de certa forma, desnaturalizar o pensamento de alienação, por parte do futebol, e potencializar as grandes aglomerações, ainda que na forma de torcidas, para protestos, manifestações e organização popular.

Foto da Gaviões: "Presidente quem escolhe é a gente". Imagem da internet.

Sócrate(s)

Médico e jogador de futebol. Também jornalista ( na revista Carta Capital e no jornal Agora São Paulo, jornal popular que substitui o famoso Notícias Populares). Cantor caipira, também era. Gravou um LP chamado Casa de Caboclo, em 80, e dizia cantar sertanejo para acabar com o preconceito na música com o ritmo interiorano. Não deixou de ser médico porque era jogador. Ainda na década de 90, inaugurou o Mesc (Medicine Sócrates Center), centro especializado em medicina esportiva. A experiência não foi muito longe.

Vicente e Marlene Matheus, ambos ex-diretores do Corinthians, com Sócrates e o LP gravado pelo jogador. Imagem da internet.

Sócrates também foi escritor. Autor da obra Democracia Corinthiana: a utopia em jogo, que escreveu em parceria com o jornalista Ricardo Gozzi. O livro foi lançado pela editora Boitempo, e narra a experiência do jogador no clube no período da Democracia. Tudo isso em 2002.

 

Quero morrer num domingo

Ainda nos tempos de Democracia Corinthiana, Sócrates costumava sair do treinos, ainda de uniforme, para beber algumas cervejas. Dizia que no futebol, são mais dez pra correr por você. Como era médico formado, e entendia da sua condição, Sócrates assumiu publicamente seus problemas com o alcoolismo.

Sócrates foi internado em dezembro do ano passado por conta de complicações provenientes de uma infecção intestinal, causada por uma bactéria. Em quatro meses, essa foi a terceira internação do jogador, que já estava sofrendo com complicações provenientes de uma hemorragia digestiva, consequência do consumo de álcool. Tinha cirrose hepática. O próprio dizia ser uma lesão em uma parte sensível do fígado. Após sua última internação, ao final do ano passado, faleceu, justamente, num domingo, dia de jogo do Corinthians. Dizia ele próprio, sem pensar muito: “Quero morrer num domingo com o Corinthians campeão”. Foi o que aconteceu. Cumprida a promessa, Sócrates falece no domingo em que o timão sagra-se Campeão Brasileiro de 2011.

Sócrates morreu no dia 4 de dezembro de 2011, de infecção generalizada. Na última quarta-feira, 4 de julho de 2012, o Corinthians conquistou o tão esperado, e até então inédito, título de campeão da Libertadores da América. Para uma competição genuinamente latino-americana, a homenagem a um jogador latino-americano de força, de luta e de presença. Sócrates viveu naquela quarta-feira, com Corinthians campeão.

O título desta matéria é o mesmo do documentário “Ser campeão é detalhe”, sobre a Democracia Corinthiana, lançado no ano passado. O próprio está gratuitamente disponível na internet, podendo ser acessado através do site sercampeaoedetalhe.com.br.

Nas palavras da produção do filme: “Já no dia 09 de dezembro o filme será disponibilizado na internet e redes sociais gratuitamente. Seguindo a tradição democrática presente nesta equipe, nada mais justo que disponibilizarmos a todos que queiram a saber um pouco mais deste time, que jogou pela sua torcida e por todos aqueles que lutavam por uma democracia no país. É uma obra feita para uma nação, mas uma nação que não é só corinthiana e sim de todos que defendem a democracia como direito”.

“SER CAMPEÃO É DETALHE”, pelo viés de Nathália Costa.
nathaliacosta@revistaovies.com

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