Esse guri orelhudo e narizudo só pode ser de Ogum

(Arte de Luíza Bertuol)
(Arte de Luíza Bertuol)

A marcha subia a Rua Acampamento, fazendo barulho, trancando o trânsito de Santa Maria, que já é caótico por natureza. Atendentes do comércio se escoravam nas portas das lojas, alguns poucos aplaudiam, mas a maioria só fitava com um olhar de quem não sabe muito bem o que está acontecendo.
“Mais um protesto do pessoal do DCE”, pode ter pensado alguém desinformado que tivesse em um ônibus parado atrás da marcha, ou que a tivesse visto de longe, ou só escutado aquele eco incompreensível e abafado em que se transforma o grito de centenas entre os prédios antigos da Acampamento. Mas quem teve a oportunidade de observar aquela curiosa multidão por mais de alguns segundos notaria que não, não era mais um protesto do pessoal do DCE.
Para começar, eles tinham caminhão de som, algo caro demais para os padrões do movimento estudantil da Federal de Santa Maria. E aquelas pessoas eram em sua maioria muito jovens, meninas usando calça jeans justas e tênis grandes, rapazes em sua maioria sem um fio de barba no rosto. Não havia barbudos sujinhos, ninguém usando roupa de hippie ou camiseta de partido. Mas eram todos muito sérios! Embora estivessem usando nariz de palhaço. E eram todos brancos! Embora estivessem com o rosto pintado de preto.
Era o Exército Anti-Cotas, movimento organizado pelos cursinhos pré-vestibulares privados da cidade contra a decisão que o Senado havia tomado alguns dias antes, em 7 de agosto de 2012, que aprovava os 50% de contas para as universidades públicas.
Os gritos de “Cotas pra quem estuda” soavam um pouco fora de compasso, embora gritados com paixão, e os cartazes com toda sorte de “Menos cotas, mais igualdade”, “Cotas são preconceito” e “Quer uma vaga? Estude” eram empunhados com orgulho. “Orgulho”… Aqueles jovens não esperavam que fossem escutar tanto essa palavra até o final do dia.
Eu acompanhei a Marcha Anti-Cotas pela calçada, claro, pra não ser confundido com os manifestantes. Estava acompanhado de amigos da revista o Viés, fazendo a cobertura do fato, quando um deles, o Bibiano, disse: “Olha, ali vem o Nei”.
Nunca o tinha visto antes. 1,70m, com aquela idade indefinida que alguns negros que passaram dos 40 anos aparentam, cabelo e sobrancelhas bem pretas e vestindo uma camiseta branca da Semana Municipal da Consciência Negra de Santa Maria de 2011. Embora vendo tanta gente contrária àquilo pelo qual lutou tanto tempo, não estava irritado. Disse ao Bibiano “A gente vai pegar eles quando chegarem na Praça, né, Bibiano!?” e deu uma gargalhada gostosa. Depois estendeu o braço esquerdo, para que Liana, outra colega de Viés, tirasse uma foto de sua tatuagem, que ia do ombro ao punho. Nela dizia “Todo poder para o povo preto”.
Quando o Exército retornou à Saldanha Marinho, o Movimento Negro já havia preparado o terreno para a batalha de ideais que se seguiria. O debate foi longo, produtivo e os estudantes dos cursinhos escutaram bastante história e sobre História. Quando uma menina loira falou que sua família, de imigrantes alemães, também não tinha condições financeiras, que seus avós tiveram que fazer sua vida sozinhos, e que isso poderia ser comparado à situação dos escravos libertos, Nei pediu a fala.
“Vocês contam histórias de família para defender a sequência do que existe. Eu falo sobre mais de 350 anos de negros vendidos, massacrados, enviados depois para a periferia. Eu sou um afro-gay periférico e tenho orgulho disso.”. E concluiu “Deixa o preto estudar!”.
Aquela foi a primeira vez que ouvi Nei D’Ogum usar o termo “afro-gay periférico”. Nos anos que se seguiriam, quando começamos a militar juntos no movimento LGBT através do Coletivo Voe!,  escutaria mais algumas dezenas (centenas, talvez?) de vezes.
***
Nei nasceu Vilnes Gonçalves Flores Junior, nos fundos do terreiro de sua vó, em Santa Maria. Dona Ducha, a parteira, ao entregar o bebê para Dona Eny, a mãe, teria dito: “Esse guri orelhudo e narizudo só pode ser de Ogum”. E era.
Ele é ferreiro, que faz suas próprias ferramentas de caça e de guerra, é artesão e artista. É guerreiro, forte, teimoso, passional e impulsivo. Talvez assuste à primeira vista, já que possui humor mutável, dificilmente perdoa uma ofensa e gosta de se impor, mas sua sinceridade e luta pelos injustiçados acaba seduzindo a todos ao seu redor. Estou falando de Ogum, mas poderia estar falando de seu filho, Nei.
Vilnes, o pai, era policial militar e recebia incentivo financeiro para ir para aqueles lugares onde nenhum outro queria ir. Com isso, a numerosa família Flores, com seus seis filhos – dos quais Nei era o 3º – morou em Rio Pardo, Arroio do Tigre, Sobradinho e Barragem do Itaúba, nunca passando mais de dois anos no mesmo lugar. Nesse último local, vilarejo chato de uns 800 habitantes, a pequena escola ia apenas até a 4ª série do ensino fundamental, e Nei, que começou a estudar cedo, já ia para a 5ª aos 10 anos. Por conta disso veio toda aquela rotina de acordar às quatro da manhã, comer, se arrumar e pegar o ônibus às cinco horas. Ver o sol nascer na estrada poeirenta e esburacada durante os verões, ou fazer todo o percurso no escuro durante os invernos, até a escola em Salto do Jacuí, onde começou a estudar. Foi nesse período que teve suas primeiras brincadeirinhas e pequenas sacanagens com os amiguinhos de colégio. Já ali existia um Nei que iria começar a aflorar nos anos seguintes.
Afloramento que foi acelerado por uma tragédia. Vilnes, o pai, foi assassinado dentro do destacamento, em situações que nunca foram oficialmente esclarecidas para a família. Eny, viúva ainda tão jovem e tão bonita, decide voltar para Santa Maria com seus filhos, onde vivia a família do esposo falecido. Isso era dezembro de 1976, e Nei tinha 11 anos.
***
TUM quI ti cum TUM qui ti cum TUM qui ti cum TUM qui ti cum TUM.
Nei arregalou os olhos. O barulho ensurdecedor o havia acordado, justo a ele, que dormia tão cedo, pois estudava pela manhã. Ficou olhando para o teto, para os móveis de seu quarto, para a porta entreaberta. Impossível ficar na cama quando cada músculo do seu corpo pede que se movimente. O coração palpitando, a curiosidade colocando um sorriso nervoso em seu rosto. Não aguentou: vestiu-se e levantou. Pé por pé, coluna curvada, mãos próximas ao peito, para não esbarrarem em nada, esgueirou-se pela casa, assim como os desenhos animados fazem quando não querem acordar um cão feroz. O barulho que vinha da rua já era suficiente para ter acordado toda a família, mas pelo visto isso não aconteceram, então essa poderia ser sua chance. Abriu a porta e foi para a rua.
Era dezembro, noite quente, e a forte iluminação dessa cidade pavimentada machucou seus olhos, em um primeiro momento. Fazia menos de mês que tinha perdido seu pai e se mudara com sua família para Santa Maria. Moravam todos em uma casa na rua Appel, quase na esquina com a Presidente Vargas, e se Nei olhasse nessa direção, possivelmente veria paradas ali alguma mulher ou travesti oferecendo um pouco de calor humano por um pouco de dinheiro. Mas o som não vinha dali.
Vinha da Visconde de Pelotas, de um lugar conhecido como Buraco Quente, que ficava ao lado de uma sanga. Quando entrou, o fascínio que começara pela música que lhe tirara da cama só aumentou. Viu ao vivo pela primeira vez o que só tinha assistido pela televisão: uma escola de samba! De fato, naquele momento estava ensaiando a Associação Cultural Vila Brasil, uma das agremiações mais tradicionais da cidade. Ao olhar ao redor, reparou na diversidade de pessoas que se encontrava ali: negros e negras e muitos gays. Compositores, artistas, intelectuais…
“Naquele momento eu soube que estava perdido”, diz Nei, acendendo mais um cigarro, enquanto me conta essa história. “Ou achado, né!?”. E ri.
Quando lhe perguntaram a idade, Nei respondeu rápido. “Eu tenho 15!”. Com 11 anos, Nei já era bom em dissimular sua idade e já possuía seus 1,70m, talvez fruto dos alongamentos ensinados por sua prima, para que crescesse mais rápido.
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“Eu comecei a viver quatro vidas. Era quatro Neis diferentes, uma vida quádrupla, já imaginou? Era difícil.”
O primeiro, o bom filho: Em casa, era chamado por sua mãe de “Coco Queimado” e “Diamante Negro”, apelidos carinhosos relacionados à negritude, da qual sempre teve tanto orgulho. Nei era bom filho, ajudava em casa, e tinha uma relação tranquila com seus irmãos, todos heterossexuais.
O segundo, o jovem militante negro: Logo que se mudou para a cidade, Dona Eny procurou a Comissão de Direitos Humanos da Câmara de Vereadores de Santa Maria, onde se aproximou de um vereador da oposição. A partir daí, as questões políticas da negritude passaram a fazer parte das pautas de discussão da família, e Nei teve contato com os primeiros livros sobre o tema. Nesta época começou a frequentar o Clube negro Treze de Maio – que viria a se tornar o Museu Treze de Maio, onde ocupou o cargo de Coordenador do Núcleo de Ação Cultural Educativa – e assim começou a militar no movimento negro.
O terceiro, o líder da turma: Nei já apresentava sua predisposição à liderança, sendo muitas vezes eleito líder da turma, além de fazer parte dos grêmios estudantis. Na escola Duque de Caxias, onde fez todo o ensino fundamental, uma professora da disciplina de Organização Social e Política Brasileira – disciplina obrigatória nas épocas de ditadura – começa a lhe passar livros sobre negritude… e homossexualidade. Nei não era assumido, mas talvez a professora tenha percebido algo na fúria com a qual Nei sempre saia em defesa de seus colegas gays, que sofriam com deboches e violências pelo fato de terem trejeitos mais afeminados – algo que Nei ainda hoje, depois de décadas de militância, pouco apresenta.
O quarto, o gay dentro do armário: Sua biblioteca crescia, assim como a sua consciência a respeito de crimes motivados por preconceito. Ao mesmo tempo em que sua sexualidade começava a aflorar, seu medo de violência e de ser rechaçado pela família o fazia se retrair dentro de casa. Na rua, porém, ele era outro. Frequentou o Bar do Barão, que ficava na Presidente Vargas, e o Academia, na Acampamento, entre Tuiuti e Astrogildo de Azevedo, dois conhecidos redutos gays da cidade. Além disso, havia a piscina do Clube Treze de Maio, onde as famílias iam durante o dia, e à noite virava local de pegação gay, por um preço simbólico, que se convertido na moeda de hoje não passaria de uns R$ 2,00.
“Imagina tudo o que tu conseguir. Pois acontecia mais que isso lá dentro!”
Teve experiências sexuais com meninas, algumas muito prazerosas, e com rapazes. Porém, começou a ter um relacionamento ainda no início da adolescência. Foi com seu amiguinho, Ricardo, mais jovem que ele, branco e também da umbanda. Nei D‟Ogum e Ricardo de Agué são casados até hoje.
***
– Tu é gay?
– Não, mãe! – respondeu Nei com cara de medo.
– Tu tá tendo um namoro com esse teu amigo?
– Mãe, não!
– Tu pode falar pra mãe. Tu sabe que a mãe é moderna, é aberta! Não vai ter problema! – falou Dona Eny com ar condescendente.
– Não! Não! Não!
E continuou a negar, mas já não adiantava. Dona Eny já havia visto o suficiente, ao abrir a porta do quarto do filho e flagrar Nei e Ricardo nus, apressados, vestindo as roupas. Nei já tinha 16 anos na época – embora mentisse para todos que não fossem da família que tinha 20 – e tinha concluído o ensino médio. A partir dali a situação começou a se tornar insustentável.
– Se isso está acontecendo, os problemas de vocês vão começar quando vocês assumirem isso! – disse a mãe. Ela estava certa. Eles assumiram, e os problemas começaram.
Nei saiu de casa sem poder levar suas roupas, seus livros, nada. Na casa de Ricardo, a recepção não foi melhor: Não havia lugar para dois, logo, se quisessem continuar com “isso”, Ricardo deveria partir também.Ambos estavam muito apaixonados, então essa era a única solução possível.
Primeiro alugaram uma peça, mas quando o dinheiro acabou, ficaram sem saída. Do dia para a noite se viram sem teto e só tendo um ao outro. Por um ano e oito meses moraram embaixo da ponte do Arroio Cadena, no Passo da Areia, se virando com o que achavam na rua, dormindo em papelões, abraçados para espantar o frio.
Foi quando, costeando o Cadena, começou a se montar uma ocupação irregular. Uma a uma, as casinhas iam aparecendo, feitas de madeiras de todas as cores e procedências, pregadas como dava, mas geralmente com grandes frestas entre umas e outras. Nei e Ricardo decidiram unirem-se aos moradores. Pularam muros para roubaram tijolos e tábuas em construções e em pátios, e assim fizeram sua primeira casinha.
– Pode escrever isso tudo. O crime já prescreveu, mesmo – diz ele, e ri.
Sentiram-se protegidos pela primeira vez em dois anos, e começaram a tocar suas vidas. Ricardo, que é de Agué, benzia e jogava tarô e búzios, o que tornou a casa bastante movimentada. Nei, por sua vez, corria atrás da questão da regularização da água e da luz para a comunidade, que ainda não contava com nenhum dos serviços. Na época, já estavam bastante naturalizados com a própria relação, não sentiam mais necessidade nenhuma de esconder que, sim, eram um casal e que se amavam.
A sensação de segurança, no entanto, não durou muito. Uma noite, dois rapazes da vizinhança – muito bonitos, bem apessoados e sem namoradas – os visitaram, atrás dos serviços de tarô de Ricardo. A conversa, no entanto, começou a ficar estranha, assim como os olhares. Não demorou muito para que os visitantes deixassem claro a quem vinham: Queriam sexo, e entre os quatro. Passando da surpresa ao constrangimento, o casal se recusou. Não queriam, estavam muito bem, obrigado. Os dois rapazes, então, partiram para a violência, atacando Nei e Ricardo a pauladas. Quando conseguiram escapar, os dois ainda sentiram as pedras sendo lançadas contra eles, assim como os gritos de “Voltem aqui, seus viado!”.
Nei e Ricardo não voltaram mais. A primeira ideia foi ir atrás das famílias.
– Tu pode voltar, meu filho. Tu tem teu quarto, tá como tu deixou. Tem todas as tuas coisa lá, teus livro, tuas roupa. Mas vem só tu. – foi a resposta de Dona Eny, praticamente repetindo a resposta que já haviam recebido na casa da família de Ricardo.
Mais uma vez, os dois se encontraram sem rumo. Optaram, então, por repetir todo o processo de roubo de material de construção e fazer uma nova casinha em outro lugar. Estavam confiantes. Dessa vez as coisas dariam certo.
***
Era noite, e Nei e Ricardo vinham juntos, caminhando pelas ruas de chão, já tão conhecidas, do bairro onde tinham escolhido reconstruir a vida. Era 1982, e já fazia dois anos que moravam na Nova Santa Marta, aquela que viria a ser a maior ocupação urbana da América Latina.
Vinham conversando, um assunto comum desses do dia-a-dia. Ainda cumprimentaram um ou outro vizinho pelo caminho, antes de chegarem em casa. A porta estava entreaberta. Nei e Ricardo se olharam, mas não falaram nada. Pelas frestas da madeira, não viram nada de anormal dentro, então entraram.
A casa era uma peça única. Cozinha e sala, com um sofá que virava cama. Além disso, havia um fogãozinho velho e uma mesa branca de linóleo, ganhados de presente. Enfim, pouca coisa de valor que pudesse justificar um roubo. Porém não era um roubo.
Nos primeiros passos, grãos de arroz estralaram embaixo de seus pés. Os poucos mantimentos que tinham guardados estavam todos espalhados pelo chão. O sofá marrom com listras verticais beges havia sido completamente destruído, com sua espuma jogada por todos os lados. E o cheiro… Um cheiro forte de merda. Não foi preciso procurar muito a procedência. Escrito na parede, com fezes humanas, “FORA VIADO“.
***
Dona Eny recomendou que o filho e Ricardo fossem morar no Centro, onde o estilo de vida deles seria mais tolerado. Nei sabia que não era verdade. Sua amiga, Rogéria Rangel, “uma trans lindíssima”, respondia a um processo na época, por ter sido flagrada em uma das praças da cidade. Na época, as praças eram muito usadas à noite como ponto de encontros casuais entre homossexuais.
Primeiramente era na Saldanha Marinho, mas a guarda do prefeito José Haidar Farret expulsou violentamente os homossexuais do lugar. Todos migraram então para a praça em frente ao Hospital de Caridade, porém o processo se repetiu. Mais uma vez, a solução encontrada foi achar outro ambiente: a Praça dos Bombeiros.
Neste período Nei acompanhou Rogéria na visita ao vereador de oposição Marcos Rolim, para pedir apoio. Após conseguirem, começaram a ir às rádios, para fazer campanha pela liberdade de ocupar os espaços públicos. Nei acompanhava e observava, mas não falava muito. Ia porque dois era mais que um e para apoiar a amiga. Rogéria saiu vitoriosa, foi inocentada, e com isso os gays voltaram a ocupar a Saldanha Marinho.
Mas os relatos de truculência policial marcaram Nei. Ele sabia que o Centro seria tão seguro quanto a Ocupação do Cadena e a da Nova Santa Marta.
-Tá, eu já entendi que tu não vai largar esse rapaz, mas e se vocês arranjarem umas namoradinhas e se encontrarem escondidos? – sugeriu Dona Eny.
Essa não era uma opção. Moraram de favor na casa de amigos por um tempo, e depois continuaram a peregrinação pela cidade: Itararé, ocupação da Gare, Vila São João, Chácara das Flores, Caturrita, Vila Oliveira…
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Durante o fim da década de 80, Nei começou a se envolver na organização de eventos LGBTs. Primeiramente, com sua amiga Rogéria Rangel, que passou a alugar o Clube Caixeiral em algumas sextas, que não eram considerados dias “vips”, e fazia festas para o público LGBT. Eram sempre um sucesso, com muita música de divas gays, pegação e shows. Obviamente, Rogéria guardava o lugar de destaque para si, fazendo sempre o encerramento. Sua cantora preferida para as dublagens era Marisa Monte, cantora que estava no início de sua carreira na época.
No mesmo período, Nei e Ricardo começaram a frequentar a casa da Dinda. Elaine, seu verdadeiro nome, era uma mulher viúva, totalmente libertária e à frente de seu tempo, que morava em um casarão antigo e espaçoso na Vila Belga. Cheia de amigos, principalmente gays, a Dinda fez de sua casa um dos pontos preferidos dos homossexuais da cidade. E veio de um dos maiores frequentadores, Alexandre Tanski, um estilista talentosíssimo, a ideia de criar o primeiro bloco gay da cidade. O nome não poderia ser mais irreverente: Os Virgens.
A ideia cresceu, a ponto de o bloco ter sua sede própria na Associação dos Empregados da Via-Férrea, com direito a carteirinha e tudo. Já no primeiro ano, mais de 50 gays participaram da festa, um verdadeiro frisson. No segundo ano, porém, como é comum em grupos muito grandes, houve um racha. Atritos internos fizeram uma parcela se afastar, ao mesmo tempo que outros se aproximavam. Por causa disso, o bloco mudou de nome: Continuamos Virgens.
Nei relembra do susto que todos da organização levaram quando, no segundo ano de bloco, apareceram mais de cinco mil pessoas ao evento que organizaram. A população santa-mariense estava interessada em acompanhar a ferveção, principalmente os divertidos concursos de Miss.
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– Márcia, esteja na hora pronta! Banho tomado, montada!
Márcia era uma travesti amiga de Nei, linda, loira, alta e a favorita para ganhar o concurso do Glamour Gay daquele ano.
A festa começou a ser montada cedo. Era uma de pendurem os balões coloridos, cadê as faixas? Estão com o Tanski. Arrasta as mesas para os jurados, eles já chegaram todos? Ainda falta um. Já testaram o som?
Márcia chegou na hora certa. Vestia uma microssaia de paetê vermelho, um top branco, saltos altíssimos, os cabelos soltos e na bolsa uma garrafinha de uma mistura de bebidas de todos os tipos, que de tão experimental que era, nem batizada tinha sido. Márcia era conhecida entre os amigos pelas suas experimentações alcoólicas.
“Nós a avisamos para não beber, mas sabe como é. Piscamos os olhos e ela estava sob o efeito de entorpecentes”, conta Nei, gargalhando.
O desfile aconteceu, e o resultado não foi como o esperado. Márcia estava visivelmente embriagada, e a vitória foi para outra concorrente. “Como assim? Isso não está certo! Isso tá roubado!”, deve ter passado pela cabeça da amiga de Nei. O mais correto a fazer, pelo menos ela deve ter acreditado, era tomar a faixa para si. À força.
Começou a briga. Márcia se agarrou à faixa com uma mão esquerda, e no momento em que a outra tentou revidar, ela deixou sua mão direita resvalar pela cabeça da outra, com um rápido movimento fez os fios de cabelos se enrolarem em seus dedos e puxou com força.
“AAAAAAHHHHHHH”. Tudo em uma questão de poucos segundos. Em um instante várias pessoas já tentavam separar as duas, mas Márcia segurava o cabelo da outra com cada vez mais força. Uma pessoa segurou Márcia pelas costas, levantando-a do chão. Com as pernas pro alto, começaram os chutes, e quem estivesse ao alcance das longas pernas e do longo salto seria alvo.
Por fim, conseguiram tirar Márcia de dentro do salão. Sentaram-na na calçada e Nei foi um dos que tentaram acalmá-la.
– Márcia, que foi isso? Eu te disse pra não beber!
Ela estava ainda estava irritada, xingando muito.
– Calma. Foi injusto, mesmo. Tu era a mais bonita, tu merecia. Agora vamos se acalmar. Não adianta nada esse escândalo!
Aos poucos a respiração dela foi ficando mais tranquila. Os efeitos do álcool pareciam ter ido embora.
– Desculpa, Nei. Eu perdi a cabeça, sabe como é.
– Ok, sossega agora, menina. Respira e vamos entrar.
– Não, ela não entra mais – disse o segurança à porta.
– Que isso, rapaz? Ela tá comigo, eu sou da organização. Ela já tá mais tranquila.
Entraram.
Mal pisaram no salão e Márcia desvencilhou-se dos braços dos amigos e, a passos largos, dirigiu-se ao grande arco de balões, de todas as cores do arco-íris. Puxou-o com força, desmontando a estrutura, e antes que alguém conseguisse pará-la, com um só impulso ela virou a mesa dos jurados, sempre aos gritos.
Naquela noite, Márcia e Nei tiveram que correr do clube sob uma chuva de long necks.
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Já era início do governo Lula, e, desde 2001, Nei D’Ogum e Ricardo de Agué começaram a fazer parte da ONG Life, pela Livre Expressão Sexual. Chegaram ao entendimento que apenas a agitação cultural não era suficiente, que era necessária uma militância mais política. Faziam o intermédio entre poder público e comunidade LGBT, realizavam simpósios e palestras e organizavam as primeiras Paradas Gays da cidade. Os gritos de “Ua Ua Ua, as bixa tão na rua!”, que se ouvia na Rua Presidente Vargas, hoje não são escutados mais. Anos após, as Paradas foram tiradas das ruas e levadas para locais que não tinham tanto alcance para a população geral, como a estação da Gare e o Parque Itaimbé, devido a acordos de outros membros da ONG com a da prefeitura, fato que fez o casal se afastar do grupo em 2006.
Em sua casa, Nei e Ricardo passaram a acolher aqueles que precisavam de ajuda, principalmente jovens gays expulsos de casa e travestis que recentemente tivessem feito alterações corporais. Viram de tudo, nessa época. As operações, em sua maioria, não tinham acompanhamento nenhum de profissionais da saúde. As moças injetavam silicone industrial uma nas outras, e para evitar que vazasse e escorresse pelo resto do corpo, usavam uma armação de madeira em formato de cruz no peito, além de várias faixas e uma estrutura que impedia que mexessem os braços. Durante esse período, o casal as ajudava em tudo, desde a alimentação à higiene pessoal. Infelizmente, muitas cirurgias não deram certo, deixando travestis deformadas, mas aquelas que conseguiam sentiam como a realização de um sonho.
Isso já era início dos anos 2000, e a Secretaria de Direitos Humanos do governo Lula cria o Programa Brasil Sem Homofobia. A ABGLT – Associação Brasileira de Gays, Lésbica e Travestis começa a fazer um mapeamento dos atores sociais que atuavam na temática LGBT, e ao chegarem em Santa Maria, encontram como referência Nei D’Ogum e Ricardo de Agué. Com isso, ambos são convidados a participar de reuniões de formação em Porto Alegre, com o grupo SOMOS – Comunicação, Saúde e Sexualidade, sobre temas importantes para a comunidade LGBT.
“Eu sou cria do SOMOS! Sempre digo isso. Não sei se eles gostam, mas eu digo!”
Eles se revezavam para a viagem. Ricardo foi à primeira, Nei à segunda e assim por diante. Iam de carona, com amigos ou desconhecidos que paravam para eles na estrada. Foi lá que Nei, que tanto havia convivido com travestis e transexuais, começou a ter um entendimento mais global sobre o assunto. A formação era altamente qualificada, com juristas, sexólogos e infectologistas. O boom da AIDS ainda tinha muito impacto. Além disso, passaram a entender mais sobre a violência que sofreram e que tantos outros LGBTs também sofriam, em maior ou menor grau. Nei já havia perdido vários amigos seus assassinados, “degolados, em sua maioria, ou estrangulados com suas próprias meias-calças. Isso não é coisa de um crime normal, não é, Felipe? Isso é coisa de crime de ódio!”.
Mas a maioria dos que partiram prematuramente, foi em decorrência AIDS. Na época, já existia na cidade um trabalho sendo organizado na cidade para a prevenção e tratamento da doença, através do Consórcio Intermunicipal de Saúde, comandado pela enfermeira Martha Souza. Em 1995, na primeira vez que uma contagem de infectados foi feita, já havia quase 200 casos confirmados em Santa Maria, número assustador, lembrando que a doença é sempre subnotificada. Em reuniões fechadas, Nei sempre cita uma lista de amigos, principalmente de ativistas, que a doença levou.
A luta para não perder mais amigos, aliado à formação política que recebeu pelo SOMOS, acabou motivando ainda mais Nei. Neste período, ele e Ricardo começaram a aparecer nas páginas dos jornais locais, reivindicando os direitos LGBTs. Era matéria sobre a proibição para gays masculinos de doarem sangue, sobre os eventos realizados na cidade e sobre a luta pelo direito de que homossexuais pudessem ter suas uniões reconhecidas pelo estado.
Sobre esse último ponto, Nei e Ricardo dariam um grande passo no movimento LGBT do país.
***
Quem passasse pela Avenida Medianeira, em maio de 2004, dificilmente conseguiria ignorar o outdoor instalado na direção Centro-Camobi.
“JÁ TEM DATA! NEI E RICARDO VÃO CASAR!”. E na foto, os dois abraçados, sorridentes.
O outdoor podia ser visto a quase 5 quadras de distância, e era o mínimo que ambos poderiam esperar, visto que ele tinha custado o valor de um mês de aluguel. Para não pegarem os mais próximos de surpresa, resolveram avisar às famílias.
– Olha, mãe, não vai se assustar. Eu e o Ricardo vamos registrar a união e vai sair tudo no jornal.
– O que mais falta? – respondeu ela, com cara de espanto.
– Ah, vai ter um outdoor anunciando.
Silêncio. Boca aberta. Olhos imóveis.
– Mãe, é um casamento gay. Tem que tem um diferencial, né… todos esses anos de luta!.
A decisão por oficializar a união estável se deu um pouco que por acaso. Nei estava desempregado e fora ao SINE, ver se conseguia algum emprego. Jecira di Fiori, a mulher que o atendeu, pegou sua documentação, olhou-a rapidamente e voltou-se para Nei.
-Vi tua foto no jornal.
Nei ficou com receio, pois nunca sabia o que esperar de aproximações como essa. De fato, Nei havia aparecido em um dos jornais havia poucos dias, questionando o fato do Código Civil não contemplar as uniões homossexuais. Jacira, no enquanto, queria ajudá-lo, e para isso o apresentou a duas especialistas em direitos de conjugabilidade LGBT: a advogada Dra Graciela da Cunha, autora de um livro chamado “Efeitos Jurídicos da União Homossexual” e a jurista Maria Berenice Dias, nacionalmente conhecida pela sua luta pró-LGBT.
Após conversarem com as duas, Ricardo e Nei decidiram: firmariam a união, e fariam disso um evento político. Levaram os documentos em um primeiro cartório, onde não conseguiram dialogar. No segundo, os papéis foram aceitos, visto que eles estavam com a lei em mãos, impressa.
Quinze dias depois, foram levantar os documentos. Era dia 07 de maio de 2004. Nei garante que sua união estável com Ricardo foi a primeira do país, embora alguma publicações apontem que tenha sido de um casal de lésbicas de Bagé, que ocorreu no mesmo período. Como as duas mulheres preferiram manter-se no anonimato, é difícil encontrar registros que apontem a data exata, para que se faça uma comparação
Nei e Ricardo começaram a organizar a festa para celebrar a união, mas não uma qualquer. Era uma festa “bafônica”, como o momento pedia: mais de 300 convidados, com gente de Santa Maria e arredores, Porto Alegre, São Paulo e Rio de Janeiro.
O local escolhido foi um restaurante na Avenida Rio Branco, esquina com a Manoel Ribas, por conhecerem os donos, e por ser um lugar amplo, em que poderiam dançar livremente. Marizete, a esposa do proprietário, era só elogios.
– Meninos, o que é essa decoração? E esse bolo? E os bonequinhos de cima do bolo? Um escândalo! Maravilhoso!
O bolo, de fato, era o centro das atenções. Grande, nas proporções para uma festa daquele tamanho, todo colorido, com a bandeira do arco-íris LGBT, com suas seis cores. Sobre ele, um anjo alado, todo vestido de azul, carregava os dois noivos, um negro e um branco, em um carrinho de mão, aludindo a tantas vezes que Nei e Ricardo tiveram que reconstruir suas casas e suas trajetórias.
Os familiares dos noivos não foram. O público não era do agrado de Dona Eny, e ela acabou impedindo o irmão mais novo de Nei e sua cunhada de irem ao restaurante. Perderam uma grande festa.
No final da noite, Nei e Ricardo, altos de uísque e alegria, começaram a dar uma organizada no salão, como o combinado. A bebida tivera bastante saída, os salgadinhos também, mas o bolo fora pouco consumido. Porém ele estava mais vazio. Sobre o glacê, apenas a marca de onde já estivera o enfeite com o anjo e os noivos.
“300 convidados, quantos suspeitos?”, pensou Nei. Ricardo, porém, relembrou dos elogios da esposa do dono do restaurante no início da festa. “Foi a Marizete, aquela invejosa!” e foi tirar satisfações, sem nem avisar ao esposo. Como bom casamento, o de Nei e Ricardo também acabou em confusão. O crime não foi solucionado e o enfeite original nunca foi recuperado. Ricardo ficou tão magoado que mandou refazer o enfeite, e hoje ele fica na estante da casa deles, ao lado das fotos da família.
Família essa que acabou se reaproximando após o casamento. Hoje em dia, Ricardo come carne de porco quase todos os domingos com Dona Eny. “Minha mãe é uma senhora mimosa”, fala Nei com carinho genuíno. O esposo de Nei também é padrinho – na umbanda, igreja e em casa – de todas as crianças da família Flores que vieram depois. A relação com a família de Ricardo também melhorou, e o Dia das Mães é uma data sagrada para todos se reunirem na casa da família dele.
Nei e Ricardo planejam em breve converter sua união estável em casamento civil. Querem, com isso, agendar novamente o debate na sociedade santa-mariense, fazer barulho, gerar mobilização. Causar! Estão só à espera do momento certo.
Enquanto isso, Nei continua traçando seus próprios caminhos: milita ativamente no movimento negro, através do Museu Treze de Maio; entrou para o Coletivo Voe! em 2012, para continuar tocando a luta LGBT, que sempre foi tão importante na sua vida; Começou os cursos de Psicologia e Artes Cênicas da UFSM, mas desistiu dos dois, pois ainda não era o que queria, e por ter achado o ambiente acadêmico extremamente racista e homofóbico; e hoje em dia trabalha como assessor parlamentar.
Ah, já ia esquecendo! O mistério do enfeite do bolo só foi solucionado três anos depois da festa. O anjo-transportador-de-noivos enfeitava a estante de um amigo já falecido, em Cacequi.
***
Na primeira vez que entrevistei o Nei, há mais de um ano, lembro que ele usava um gorro afro – verde, amarelo e vermelho. Estava frio, nublado, mas mesmo assim sentamos em frente à Casa do Estudante Universitário do Centro – local onde futuramente realizaríamos todas as nossas próximas entrevista – e ficamos por quase uma hora conversando e fumando sem parar. Em nenhum momento Nei olhou pra o gravador que eu segurava na mão, pois para ele, a principal parte do diálogo se dá através do olhar. Era a primeira vez que conversávamos por bastante tempo a sós – embora já fôssemos colegas de Coletivo – mas tenho certeza que foi o suficiente para que ele me decifrasse por completo, só observando meu nervosismo, meus tiques, minhas perguntas às vezes gaguejadas.
Mas já naquele tempo, foi generoso comigo. Contou-me um pouco de sua história e da importância das militâncias negra e LGBT em sua vida. Recorro agora à transcrição – pois os áudios se extraviaram com meu antigo gravador – mas sei exatamente o tom que usou em casa palavra. Lembro de expressão que fazia e do sussurro que dava, como que para evitar que o gravador captasse, cada vez que dizia “morreu de AIDS”, após o nome de algum antigo amigo que já partira.
– Então, é isso, né, Felipe!? Eu comecei o casamento com meu parceiro muito cedo. A importância da minha militância, então, passou a ser garantir a minha integridade física e moral… Minha e do meu companheiro, mas também de outros e outras, né!? Mas mesmo assim sofremos muita violência moral por parte da família, dos amigos e da comunidade santa-mariense em geral. Mas a gente continua lutando, não é, Felipe!? Por exemplo, eu e meu parceiro já tínhamos uma relação consolidada, de 20 anos – muito gostosa e prazerosa, é bom tu anotar isso! -, então não precisávamos de registro nem nada. Mas fomos lá e fizemos, colocamos minimamente a pauta das homossexualidades em discussão, contribuindo com o movimento LGBT da cidade e do estado. Acho que de resumo era isso: São 20 anos sofrendo discriminação, mas são 20 anos contribuindo com a sociedade.
Nei então levantou um pouco a manga de seu casaco e olhou o relógio.
– Frase bonita, né!? Acho que encerro com essa. Desculpa, eu tenho que ir. Não posso perder o próximo ônibus, porque o Ricardo tá me esperando. Mas a gente continua se falando depois.
E continuamos. E continuaremos. 
 
 Esse guri orelhudo e narizudo só pode ser de Ogum, pelo viés de Felipe Severo
*Esse perfil é o primeiro de uma série focada em personagens importantes para o movimento LGBT de Santa Maria. Continue acompanhando na revista o Viés.
Arte de Luíza Bertuol, estudante de Letras da Universidade Federal de Santa Maria.

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