GRANDES PERSONAGENS QUE NÃO SOBEM AOS PALCOS

Vida e obra dos profissionais que fazem o Theatro Treze de Maio

Abrem-se as cortinas do Treze.

Os olhos fixam-se no pequeno palco de onde partirão as emoções que povoarão a mente do público durante o espetáculo e, espera-se, depois dele também. Após as palmas, as 350 poltronas são deixadas para trás por pessoas que choram, riem ou simplesmente comentam o que assistiram. É para essas pessoas que o teatro é feito. Mas quem o faz? Não são apenas atores e diretores, embora eles sejam os mais lembrados, mas sim uma série de profissionais que misturam as suas vidas com a do teatro, e que tem histórias tão ou mais interessantes quanto as peças que são encenadas em seu palco.

Essa reportagem é sobre os atuais funcionários do Treze de Maio, maior teatro de Santa Maria, que desde a noite de 26 de maio de 1997 (data de sua reabertura, com a peça “Cenas de um Casamento”, com Tony Ramos e Regina Braga), emociona o público da cidade.

Falar sobre essas pessoas em um texto tão curto é uma tarefa difícil, e a prova disso é que tanta história dará um livro, a ser lançado na ocasião dos quinze anos de reabertura. O título provisório é “15 anos – Nos Bastidores do Theatro Treze de Maio” e o escritor não poderia ser mais habilitado a falar do assunto: Saulo Berro, técnico de palco (tarefa que consiste na montagem e troca de cenários e no abrir e fechar das cortinas) que trabalha no local desde novembro de 1996, ou seja, desde antes de sua reabertura.

Saulo, Luís e Rodrigo

Saulo trabalhava há 20 dias com seu tio, em Itaqui, quando ambos vieram para Santa Maria, montar a maquinaria cênica do Treze, trabalho árduo que durou mais de um mês. Visto que queria estudar, resolveu ficar na cidade, já que sua irmã morava aqui e sua mãe também queria vir e, na procura de emprego, se ofereceu para trabalhar no teatro que ajudara a montar e, depois de alguns meses de trabalho sem remuneração, enquanto não ocorria a estréia, foi contratado. Começou a cursar Geografia na UFSM e hoje relembra com um sorriso a época em que, além das aulas e do trabalho, ainda estava envolvido no estágio e em seu relatório, em uma bolsa que conseguira na faculdade e no seu trabalho de conclusão de curso. A conseqüência de tantos afazeres: estresse que acabou prejudicando sua saúde, o que o levou a um médico. Hoje, aos 31 anos, as coisas são mais leves. Leciona pela manhã (inclusive está dirigindo uma peça de alunos) e à tarde e à noite deixa de ser professor para ser técnico de palco.

Saulo abre e fecha as cortinas da mágica do teatro, mas não trabalha sozinho nos bastidores. Do fundo do palco, sobem-se oito lances de escada para chegar a uma passarela parcialmente iluminada, que cruza por cima do público à altura de quase quatro andares. Atravessando o estreito caminho chega-se a uma cabine, escondida atrás da ultima fileira de poltronas do mezanino, e aí que trabalham Luís e Rodrigo, técnicos de luz e som, respectivamente, e que são os responsáveis por dar o clima dos espetáculos.

Luís Pinheiro é uma figura curiosa, com seu cabelo rastafári. Também faz parte da equipe desde a reabertura do Treze. Sempre gostou das artes, devido à influência de seus amigos, e por isso cursou Educação Artística, na UFSM, na turma que se formou em 94. Admite que quando entrou no curso, seu interesse eram as plásticas, porém, o destino o levou para o lado das cênicas. Isso se deu no momento em que conseguiu uma bolsa para operar os dez refletores da sala 1220 (que descobri que ainda existe, Luís, como gostarias de saber), onde ocorriam algumas encenações. Ali ele aprendeu que “cuidar da iluminação de uma peça é como pintar um quadro em movimento”. Tempos depois da formatura, fez uma viagem de alguns meses para São Paulo, que ao que diz, não deu muito certo, e assim que voltou para Santa Maria, conseguiu o emprego de técnico de luz. Quando perguntei a ele qual seu maior orgulho durante esses mais de doze anos e meio de profissão, ele me respondeu que foi ter viajado com Paulo Autran para fazer a iluminação de sua peça, em Santa Cruz. Autran, um dos maiores nomes do teatro brasileiro, parece ser unanimidade por aqui, já que, além de Luís, dona Renilda e Fernando (personagens que ainda aparecerão nessa reportagem), lembram com carinho da simpatia do ator. Mas como nessa narrativa os astros são outros, voltemos a eles.

Rodrigo Carvalho é o técnico de som. Antes disso, era DJ e viajava para pequenas cidades da região, aos fins de semana, para se apresentar. Fez um seminário de aperfeiçoamento na UFMG (não há cursos superiores para essa profissão, no Brasil) e o resto aprendeu por conta própria, através de leituras e da experiência. É funcionário do Treze há nove anos, e de todos os espetáculos que viu durante esse tempo, seu preferido foi um em que cinco cantoras, cada um com um timbre diferente, faziam capela. Foi trabalhoso, mas gratificante. Claro que já passou por contratempos, como a vez em que um temporal fez verter água sobre as caixas de som, mas nada lhe tira o prazer de trabalhar. Não sabe tocar nenhum instrumento (por preguiça), nem ler partituras (ainda!), mas tem o ouvido mais afinado do local: nota cada mínima desafinação e conhece a acústica do teatro como ninguém, o que o faz entrar em eventuais atritos com bandas que vão se apresentar no local.

Fernando, Renilda e Alexandra

Entra-se no hall por duas portas de vidro, e logo depara-se com dois balcões: à esquerda a bilheteria e à direita a cafeteria. Escadas de mármores, lustres, mesinhas de madeira, quadros, flores, tapetes. É nesse lugar que trabalham Fernando, Renilda, Alexandra e, muito recentemente, Luís Honório.

Fernando trabalha na portaria há onze anos. Ele conta-me, juntamente com Renilda, que sucedeu um senhor idoso que continuou visitando o local ao sair do cargo. Em uma dessas visitas encostou-se na parede, passando mal, e caiu morto na entrada do teatro. Um estudante de medicina que estava por ali chegou a carregá-lo em um táxi para o hospital, mas nada puderam fazer. Mas voltando a Fernando, ele me fala que um de seus empregos anteriores foi em um hotel, e quando saiu de lá disse pra si mesmo que jamais voltaria a trabalhar em um lugar que tivesse que cumprir horários aos fins de semana. “Mas foi como cuspir para cima”. Não há sábado e domingo em que não esteja na bilheteria. E às vezes acontece de ter que fazer horários extras, como foi o mitológico caso da peça “Otelo”, com Norton Nascimento, em que foi montada, no pequeno palco do Treze, uma réplica de uma plataforma de petróleo, onde se desenrolava a trama. Era uma estrutura enorme, embora boa parte dela tivesse sido deixada no Theatro São Pedro, em Porto Alegre. Além de toda dificuldade de entrar com tanto equipamento pelas portas, estreitas demais para tão expansivo cenário, e de toda a demora para montá-lo, mesmo vindo uma boa equipe para tal tarefa, houve uma nova batalha para desmontá-lo. Fernando pôs-se a ajudar e em conseqüência disso só saiu do teatro depois das cinco horas da manhã. Mas ele afirma que adora seu trabalho e que também é um espectador, e dos mais críticos, hábito que adquiriu depois de tantos anos vendo todos os tipos de peças, shows musicais e de dança.

No outro lado do hall fica a cafeteria, onde Renilda Rubleski atende. Assim como Saulo e Luís, ela também faz parte da equipe desde antes da reabertura. Natural de São Vicente do Sul, veio para Santa Maria após separar-se e passou a morar com a irmã, que foi quem escutou, em um salão de beleza, a atual chefe do teatro, dona Ruth, dizer que estavam procurando uma atendente pra cafeteria. Renilda se apresentou e foi contratada. Após um tempo, passou a morar com duas colegas de trabalho, porém uma delas se mostrou uma desagradável surpresa, chegando a roubar um cheque de um sócio do teatro para pagar o aluguel. Mas a mulher acabou sendo descoberta, demitida e expulsa do apartamento, o que a levou a fazer um escândalo na frente do teatro, conta a atendente da cafeteria.

Renilda chegou a largar o emprego para ir Curitiba, morar com um dos três filhos, porém passou apenas dois meses lá, e assim que voltou, conseguiu rapidamente seu emprego de volta no Treze. “Deve ser porque gostavam de mim, não é!?” gaba-se., enquanto me servia uma xícara de café. “Quem toma café sentado aqui sempre volta!” E é ela que tem as histórias de fãs mais curiosas para contar. O recente caso do galã que foi arranhado na entrada e teve que fugir pela janela lateral do prédio para escapar das unhas ferozes na saída; A fã que chegava com horas de antecedência, ia para o banheiro maquiar-se, e depois ficava sentada na escada da entrada, chorando à espera de seu ídolo; As tietes que roubaram a espada que um ator havia soltado no palco, em uma montagem de “Romeu e Julieta”, e que ficaram relutantes em devolver, mesmo o ele parando a peça e pedindo-a de volta; E as fãs que iam abraçar Renilda para saber se ela estava com o cheiro do galã com quem ela havia conversado minutos antes. Enfim, todas as histórias que se esperam de um teatro que recebe de atores ainda desconhecidos, aos mais consagrados (pela crítica e/ou pelo público).

Quando o movimento está muito grande e Renilda precisa de ajuda na cafeteria, surge Alexandra Milla para ajudá-la, embora habitualmente trabalhe na limpeza, há mais de seis anos e meio. Alexandra mora longe, tem que pegar ônibus sempre às seis horas da tarde para voltar para casa, pois o lugar é longe e perigoso. Não assiste às apresentações, mas está por dentro de todas. Admite que não se furta a assistir aos ensaios e, claro, tem suas preferências: “Não gosto dos que fazem muita sujeira”, diz, se referindo às apresentações de balé, por causa das purpurinas, e aos shows de rock, devido às garrafas espalhadas pelos camarins. Seus dois filhos freqüentam o teatro, seja para verem as peças que são encenadas às tardes, ou para assistirem aos ensaios.

Luís Honório, Ana Paula e Ruth

Lembram-se das escadas que ligavam a passarela ao palco? Pois descendo mais quatro lances (além dos oito já citados), chega-se aos camarins e à sala da administração. E é entre essa sala e o hall que Luís Honório Rodrigues, o mais novo funcionário do teatro (no dia que o entrevistei ele estava no cargo há uma semana e um dia) dividirá seu tempo. Ele tem 36 anos, é casado e pai de uma filha. Em 2002 trabalhou com um dos diretores do teatro e isso o guiou para o atual emprego. Anteriormente trabalhou em uma grande empresa de comunicação, na bilheteria de eventos e na administração, função idêntica à que realizará no Treze. Mostra-se atencioso com os que atende, embora tímido ao falar de si.

Ana Paula Fank é, há três anos, a relações públicas Theatro. Também trabalha na sala de administração, sob um piano que fica ali suspenso (que é içado para o palco, quando necessário), mas ela não tem medo, embora há muito tempo um piano já tenha despencado do local. Natural de Santiago, Ana Paula formou-se em 2008, pela UFSM, e, mesmo tendo pouco tempo de carreira, já teve muita experiências na área: Já foi RP do Centro de Ciências da Saúde da universidade, dos Parceiros Voluntários e de uma loja de autopeças. Estava distribuindo seu currículo quando passou em frente ao teatro, que nem estava em seu itinerário, e questinou-se: “Por que não?”. Entrou, deixou uma cópia e foi chamada. Ri-se ao dizer que, entre todos os profissionais do lugar, os relações públicas são os que duram menos tempo, visto que já foram vários nesses doze anos e meio. Assiste a alguns espetáculos, muito bem selecionadas, e o melhor que já viu foi a gravação do DVD de Nei Van Soria, um de seus artistas preferidos.

No outro lado da sala está dona Ruth Pereyron, diretora administrativa. Vinda de uma família muito envolvida com o teatro gaúcho, Ruth é professora aposentada do curso de Farmácia, na UFSM. Entrou para a Associação Amigos do Theatro Treze de Maio em 1993 e foi uma das que liderou a mobilização que levou o público santa-mariense a reabrir a casa. Anos de planejamentos e ações que culminaram na sempre lembrada noite de 26 de maio de 1997. Hoje ocupa o cargo chefe no local e mostra-me, orgulhosa (com todo motivo), o primeiro “Livro de Ouro”, onde os artistas que se apresentaram ao longo desses anos deixaram recados, geralmente elogiosos, às instalações e à equipe. O primeiro volume ficou pequeno para tantas boas recordações e, por isso, já está em seu segundo. No site do Theatro está disponível alguns comentários selecionados, como o deixado por Tônia Carreiro: “Que a alegria estar enfim me apresentando no “13 de Maio”. Ele é lindo, como linda e prazeirosa é a cidade também. Vou-me, dizendo a mim mesma que hei de voltar! P.S Esta jóia tem um defeito: não posso carregá-la para o Rio…”

Nove personagens, nove histórias totalmente diferentes de pessoas que fizeram do Theatro Treze de Maio suas casas, seus trabalhos e seus lazeres. Admirados pelos artistas que se apresentam no local, mas desconhecidos para a maioria do público que o freqüenta. Assim são Alexandra, Ana Paula, Fernando, Luís e Luís Honório, Renilda, Rodrigo, Ruth e Saulo. Eles, sim, merecedores de uma salva de palmas.

E que caia o pano.

GRANDES PERSONAGENS QUE NÃO SOBEM AOS PALCOS, pelo viés de Felipe Severo

felipesevero@revistaovies.com

Para ler mais reportagens acesse nosso Acervo.

10 comentários em “GRANDES PERSONAGENS QUE NÃO SOBEM AOS PALCOS

  1. Bravo, Felipe!! Foi uma leitura muito prazerosa.
    Lembrou-me meu poema favorito de Bertold Brecht:
    Perguntas de um Operário Letrado
    Quem construiu Tebas, a das sete portas?
    Nos livros vem o nome dos reis,
    Mas foram os reis que transportaram as pedras?
    Babilónia, tantas vezes destruida,
    Quem outras tantas a reconstruiu? Em que casas
    Da Lima Dourada moravam seus obreiros?
    No dia em que ficou pronta a Muralha da China para onde
    Foram os seus pedreiros? A grande Roma
    Está cheia de arcos de triunfo. Quem os ergueu? Sobre quem
    Triunfaram os Césares? A tão cantada Bizâncio
    Sò tinha palácios
    Para os seus habitantes? Até a legendária Atlântida
    Na noite em que o mar a engoliu
    Viu afogados gritar por seus escravos.
    (…)
    Tantas histórias
    Quantas perguntas

  2. Felipe , lembrar que a História não é feita somente pelos nomes que aparecem em destaque , sempre foi uma obrigatoriedade pra mim em minhas aulas . E seu texto leva -nos a refletir que em muitas situações , os considerados “pequenos” atos , são na verdade aqueles que dão a verdadeira beleza ao todo.
    Parabéns pelo belo texto e para a revista O Viés ,que já tem a minha admiração pelas excelentes produções.

  3. Felipe, gostei muito de conhecer essas pessoas: fazem seu trabalho sem subir ao palco do teatro, mas o que seria dos atores e diretores se eles não estivessem ali? Consegui sentir uma atmosfera de cumplicidade, cada um faz o seu trabalho, mas buscando um mesmo objetivo: que tudo saia de forma perfeita. Parabéns. Vou colocar um link no meu blog para cá, ok?

  4. Nem sei o que dizer. Estou tão orgulhosa que fiquei sem palavras. Simplesmente fantástico. Sempre admirei os seus textos, mas você está cada dia melhor. Adorei o assunto que você trouxe de forma maravilhosa. O teatro é encantador! E você disse uma coisa certa: nem sempre damos o devido valor a quem está atrás das cortinas. O que é um erro porque sem eles não haveria o show! E o show tem que continuar! Com isso, te desejo sucesso, meu querido, porque você merece!

  5. Existe uma tendência a admirar apenas quem aparece nos palcos, quem já conhecemos, já somos fãs. Interessante saber do trabalho difícil de iluminar, montar os cenários, administrar o teatro adequadamente, e outros tantos papéis desempenhados fora dos palcos. E mais interessante ainda, saber como cada pessoa que torna tudo isso possível chegou até ali.
    Tu sempre escreveu muito bem, Fê… Aqui não poderia ser diferente. Parabéns!

  6. Nossa, adorei seu texto, Felipe! O tema é leve e descontraído, algo tão necessário ao leitor quanto textos reflexivos. E é sempre bom mostrar um outro lado das coisas, né? Geralmente as pessoas só se interessam pelos atores, cantores, dançarinos… já quem fica por trás das cortinas raramente tem seu trabalho gratificado.
    Adorei. 🙂

  7. Muito legal! Adoro teatro, tanta assistir quanto encenar, e essa matéria me interessou bastante!
    Parabéns, ótimo texto!

  8. Me identifiquei muito com os trabalhadores do Treze! esse negócio de subir e descer cenário é fogo… mas é divertido hehehe
    ou melhor, gratificante =)

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