LOUCURA E ARTE, DUAS AMIGAS QUASE INSEPARÁVEIS

Cruzando vias, surgindo passos, a loucura por vezes cruza nosso andar. A loucura que aprendemos a perceber e denominar como. Uma loucura aparente, que cremos entender e que nos dá margem ilusória à competência de apartar os socialmente adestrados pela civilidade dos irredutivelmente sem razão.

Censurar todos os racionalistas, indiferentes ao mundo e a invisibilidade real, que não podem ser entendidos ou decifrados separadamente por meio da razão e do cálculo objetivo, como assim fizeram os artistas neoclássicos formados nas rígidas academias francesas, compõe, talvez, uma célebre discussão: até onde vai a razão, onde a emoção se insere e, há como ser totalmente natural, conseguindo equilibrar a razão perante a emoção? O teólogo humanista Erasmo de Rotterdam, conseguiu em seu “Elogio da loucura”, censurar todos os racionalistas e escolásticos ortodoxos que expunham o homem somente ao serviço da razão. Quando a loucura se apresenta, não há aquele que não se identifique com uma face desta musa contemplada pelo autor.

Cruzar a fronteira do pensamento da psicologia, onde a loucura pode ser tratada como uma condição da mente estonteada por pensamentos atípicos, pode acarretar em uma sucessão de desacertos, pois nem mesmo o maior dos estudiosos conseguiu definir verdadeiramente esta psicopatologia. Tratar-se-á aquela loucura que se elogia e se apresenta como “nascida na mente de Pluto¹ […]; esse Pluto que, hoje como outrora, desarruma à vontade e põe de pernas para o ar todas as coisas profanas e sagradas; esse Pluto que conduz a seu capricho a guerra, a paz, os impérios, os conselhos, os tribunais, assembléias do povo, os casamentos, os tratados, as alianças, as leis, as artes, o que é sério, o que é divertido[…]

Interpreta-se, junto a essa crítica aos racionais dada pela loucura de Roterddam, uma apresentação da loucura como a fórmula de manter a felicidade sobre os terrenos. Quem, dos mortais, respiraria mais de alguns segundos antes da lembrança de um ato quase ou de loucura? Como frase inicial, Erasmo, escrevendo na primeira pessoa como Loucura, aprova que digam o que quiserem dela (pois essa ignora como é difamada todos os dias, mesmo pelos que são os mais loucos), porém, somente ela, por suas influencias divinas, é quem espalha a alegria sobre os deuses e sobre os homens.

Uma questão trivial provém da ligação, observada na sucessão dos dias, entre a arte e a loucura.  A arte, por vezes, se vê mergulhada nas inquietudes da mente de seus construtores. Na vida, tudo é significação. Cada homem interpreta seu momento dependente de tudo o que já viveu. É o relacionamento com as outras pessoas, geralmente com os nossos semelhantes intelectuais, que formamos nossos sentidos do mundo e das coisas. Tudo é experiência. Camille Claudel, a escultora francesa, compactou as histórias e experiências próprias, mas também arquivou os sentimentos, ideais e experiências de pessoas a sua volta. Acabou suportando o experimento da vida na clausura de um manicômio.

Para o romantismo, que antes de ser um estilo, é um modo existencial de perceber o mundo, junto com o culto ao onipresente, aplicam-se valores intrínsecos a subjetividade, dá-se valor a emoção e a imaginação. A arte se vê livre, longe a imposição acadêmica de formato e pensamento, vive o momento de abertura ao inconsciente e da aceitação da inspiração gritante. O mundo é assombrosamente sublime e ao mesmo tempo trágico e assustador. O chamado real é imposto e linear. O invisível surge diferente para cada um na consciência.

É a partir desse pensamento, que os artistas viverão a dicotomia entre razão e emoção, intuição poética ou aceitação de imposições recriadas. E, paulatinamente, a predominação da análise diária da consciência humana. Assim, dependendo da força que a pessoa libera no tratamento que todos exercemos sobre as experiências do mundo, há uma facilidade para a exaustão do pensamento, da análise da vida, do ser. Há uma facilidade para o cansaço mental. O artista romântico deve liberar essa potência poética oculta, essa poesia involuntária do inconsciente.

É, especialmente, a partir do romantismo, trabalhando a obscuridade do inconsciente,  que o artista adquire os rótulos de excêntrico, raro, dessemelhante, não adaptado, louco, que a sociedade moderna impõe. Fica então evidente que a loucura é consecutivamente um sinal assíduo nos artistas e poetas românticos. A face da “loucura” romântica, como doença ou como atitude, é evidenciada em Van Gogh, um legítimo paciente dos tratamentos psiquiátricos acidentais que o homem insiste em aplicar. Lembremos da dúvida: quem é mais louco, Van Gogh ou seu médico ínvido e possessivo Dr. Gachet? Na vertente do maldito, Baudelaire, Rimbaud, Artaud e Camille Claudel.

Camille Claudel constrói o espírito romântico tanto por sua vida quanto por sua obra. A escultora, nascida em 1864, tem reconhecimento maior por sua atormentada vida do que por suas esculturas de amor e solidão. Vale incidirmos agora em sua história.

Nascida em Fère-en-Tardenois, Camille cedo está já estava criando uma identidade díspar, uma coordenação perfeita para esculpir pequenas imitações de ossos, uma personalidade que a diferenciava do estilo francês padrão de jovens meninas, a qual o pai vê como um possível futuro brilhante e a mãe critica ferrenhamente.

No ano de 1881, chegando a Paris com uma vontade imensa de reproduzir e aprender ingressa na Academia Colarossi. A partir daí, hoje se pode refletir, a vida de Camille entra em um túnel profundo e obscuro sem saída. A escultora, mostrando-se extremamente promissora, desperta em Auguste Rodin – que na época tinha quarenta e três anos, vinte e quatro a mais que Camille – já sendo um escultor oficialmente consagrado, uma inusitada boa impressão. Rodin e ela se confinarão à uma vida de episódios e histórias controversas sobre criação.

Camille se torna rapidamente aprendiz de Rodin, impressionado pela solidez de seu trabalho. É neste momento, que os parisienses e o mundo das artes começariam a conhecer uma obra dúbia, duas mentes que se descobriram e se fundiram. Para os anos e obras vindouras, a crítica gritaria e o público se escandalizaria: a obra é de Rodin, Camille, ou de ambos?

A relação do mestre com sua pupila se estende para fora das portas do ateliê. Uma paixão ardente e arrebatadora se prolongará por dez anos. Camille para sempre se torna a amante. Viverá uma efêmera fama baseada no apoio de Rodin, conseguindo até manter-se à custa de suas competentes invenções. A vida se torna pesada rapidamente à escultora, quando seguidamente se vê coagida a contrapor sobre quem plagia quem, e até mesmo apareciam declarações de que tudo assinado por ela era na verdade trabalho completo do mestre. Para completar, Rodin não consegue desfazer a relação com Rose Beuret. Camille é colocada no patamar tanto amoroso quanto de legitimidade autoral, como a segunda, a seguidora.

Quando Rodin realmente se afasta, retornando ao antigo amor, começa a real tragédia de Camille. Os dias se tornam pesados, a artista vem a se trancar em seu estúdio e se entrega inteira à solidão obsessiva, vindo a acarretar na pobreza e no desgaste físico, mas principalmente mental.

A psicóloga Jana Zapp, formada em 2001 pela Universidade Federal de Santa Maria (RS), salienta o ponto destrutivo inicial de muitos estados de artistas depressivos: “O depressivo tem que reconhecer o que realmente ele perdeu para reelaborar a vida, ao contrário, a sensação de vazio vai aumentando e ganhando espaço na mente da pessoa. O artista, quando acuado por sentimentos de profunda tristeza, resignifica aquilo que evidencia e sente, levando conscientemente à obra. Na obra, surge uma imagem do sentimento, um valor artístico, a arte é uma forma de curar as feridas. Porém, sucessivamente, surgem casos em que somente a arte não suporta todo o sofrimento, há um limite máximo em que ela pode ser a única válvula calmante. A dor se alia ao corpo e a mente e é esmagador o surgimento de um comportamento destrutivo”.

Camille está desorientada e imersa em um mundo próprio, e suas atitudes principiam certa estranheza. Em 1906, com surtos que só se repetiriam, destrói parte de sua própria produção. “Possivelmente como exorcismo, como uma maneira de libertar-se daquilo que ainda a vinculava com o homem amado e com a obsessiva dor do abandono”, explica o crítico e pintor uruguaio Victor Sosa, em um ensaio. A paranóia de que Rodin estaria a lhe roubar peças para então copiá-las e que pessoas a estariam seguindo, dão sequência a surtos quase diários.

Ao dia 10 de março de 1913, por ordem do irmão, o escritor Paul Claudel, Camille é internada em um manicômio. Sua mãe nunca irá visitá-la, o irmão, durante os trinta anos de internação a visita por dez vezes. Rodin, o motivo de tanto desvario, continua a mandar dinheiro e mantimentos a amiga e amante. Trinta anos depois, Camille Claudel morre em sua prisão psiquiátrica, esquecida por todos. Seus restos são enterrados em uma vala comum.

Erasmo de Roterddam, o teólogo, dando voz a loucura, escreveu: “Há necessidade de falar aqui (Elogio da Loucura) dos que professam as belas-artes? O amor-próprio é tão natural a todos que talvez não haja um só que não preferisse ceder seu pequeno patrimônio do que sua reputação de homem de gênio […] Todos esses loucos encontram, porém, outros loucos que os aplaudem; pois, quanto mais uma coisa é contrária ao bom senso, mais ela atrai admiradores”.

LOUCURA E ARTE, DUAS AMIGAS QUASE INSEPARÁVEIS, pelo viés de Bibiano Girard

bibianogirard@revistaovies.com

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Um comentário sobre “LOUCURA E ARTE, DUAS AMIGAS QUASE INSEPARÁVEIS

  1. Bibiano, estou confuso… Talvez por que demorastes para recorrer a uma fonte para definir a linha do conteúdo. Qual seria sua intenção? Dizer que a loucura é inerente à arte? Apesar de concordar, uma vez que aceito o fato do artista viver num mundo à parte, amplo, com espaços não ocupados pelas mentes mais práticas, não vejo como tomar Eramus como eixo referencial, ainda mais em seu Elogio… Ainda mais, amarrar com a existência de Camille… Uma temeridade, considero Aliás, além do autor ser usado, não sem razão, na área do direito e leis, o livro não é – ao meu ver – uma linha demarcatória que divide o racional da loucura. Pelo contrário, é um texto até irônico que se assume como louco, mas carregado de (bom) senso, crítico ao mundo real e legal.
    Certamente, a loucura expressada é um simulacro da mesma. Dessa forma, vem daí minha confusão…

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