FUGERE URBEM

Aqui o campo se abre

À fúria vegetal do pasto

À paisagem de ovelhas

Afogadas no silêncio do rebanho

A romper a claridade da manhã

Com seu corpo de lã

(Pampeana, Luiz de Miranda)}

O campeonato

A lona branca protegia do céu, que se armava pálido para a chuva, embaixo dela mesas retangulares e bancos de madeira, a fumaça do churrasco e pessoas que conversavam, algumas uniformizadas para o jogo de futebol. Ao redor, campo verde de plantações, cães e vacas gordas pastando, um ambiente próprio para uma poesia árcade.

São 25 anos do Movimento e, para a comemoração, foi retomado o Campeonato da Reforma Agrária, que já havia acontecido em 1995. O ano de 2009 é uma festa pelo que já foi conquistado, por isso os representantes dos times de assentados do Rio Grande do Sul estão reunidos em Tupanciretã. São 12 times classificados da região de Porto Alegre, Bagé, São Miguel, Itacurubi. À noite, um baile – todo mundo vai dormir aqui? É, depois do baile?! – com uma banda da cidade e músicos do movimento. No domingo, a chegada de mais pessoas da região de Tupanciretã.Os times se misturam em idades e se dividem em masculino e feminino.

Todas as delegações trouxeram sua alimentação, cada ônibus tem sua estrutura para dormir. A comunidade aqui já tem um processo organizativo, e aqui tem uma vida ativa, digamos assim, então a comunidade tem um suporte, estruturas.

Faz parte da direção do MST de Viamão (375 famílias, mais ou menos 9 mil hectares) Cedenir Oliveira, de 30 anos, que é assentado desde 1999 e casado com a militante Luciana Frosi,  que conheceu no assentamento. Ele comenta o que é que representa aquela festa de foguetes, narrações e jogos: a convivência, a educação, a saúde, o lazer e o esporte: eles têm que estar vinculados ao desenvolvimento, principalmente no campo,então, essa é uma forma também de apresentar esse aspecto cultural que é a reforma agrária. Eles não vivem só de luta, querem valorizar o que ainda é precário na cultura do interior.


Tupanciretã

Quem sai da cidade e vai procurar um acampamento para depois assentar-se, normalmente está em conflito com a situação de vida que se estabelece diante das condições sociais impostas pelo sistema, pelas inviabilidades de raízes históricas. As dificuldades, e não a falta de vontade como muito se ouve, põem a maioria das famílias na busca por um espaço fecundo para sua força de trabalho. Quando se vê as plantações verdes e saudáveis, pergunta-se imediatamente – como quem não sabe a resposta – por que apenas o lado negativo desse modo de vida no campo é levantado pela grande mídia, qual é o medo que os coloca agressivos e incompletos diante de uma realidade que não é só espinhos e apoio indevido.

Antonio Carlos Lima da Silva está assentado em Santa Rosa há dez anos (desde 1999, o início). Foi acampar em 1996  para tentar mudar de vida, para ter um pedaço de terra, na cidade não tava fácil, acompanhado da esposa. Hoje, tem 38 anos e dois filhos. Em Santa Rosa são 129 famílias, 2200 hectares de terra, média de 15 hectares por família. Pela extensão do assentamento de Santa Rosa, foi dividido em 4 bolsões, cada um uma comunidade, Carlos mora no bolsão 2. São mais de 50 municípios (pessoas originadas de 50 municípios do RS) só aqui nesse assentamento (Tupanciretã), e são 17 assentamentos em Tupã. Pelo mapa de Tupã são três blocos de assentamento, em volta da cidade tem 350 famílias, aí na divisa de Cruz Alta são mais 150, e na divisa com Jóia tem mais trezentas.

Quando nós chegamos teve muita dificuldade, nós aqui começamos a mostrar pra sociedade essas famílias, hoje, aqui em Tupã é uma grande produção de leite. Uma oportunidade pra trabalhar, pra desenvolver o trabalho. Quase todos os acampamentos deram certo e é uma saída alternativa.

Tudo que é produzido nos assentamentos é consumido, e aquilo que não é mais necessário para a subsistência é vendido. Carlos tem vacas produtoras de leite, além desse, que é um dos produtos de maior produção, também há comercialização de arroz, feijão, verduras, legumes, queijo. Até chegar ao aproveitamento da terra, existe uma caminhada de preparo e organização. Inicialmente, o solo era bruto e a estrutura pouca, muitos passaram sem luz, água encanada ou estradas – faltas ainda existentes em alguns acampamentos, sem falar nas condições contrárias da natureza.

Uma adversidade levantada por Carlos é a falta de escolas para as crianças que estão assentadas. Elas estudam na cidade e têm uma formação incompatível com a realidade de suas casas, isso não quer dizer limitá-las, apresentá-las apenas uma possibilidade, mas trabalhar a idéia de que as suas origens e a vida no campo não são piores, pelo contrário, devem desenvolver-se a sua maneira. Por que tu sai do interior e vai pra cidade e começa a criar os hábitos da cidade. Muito pouca matéria do interior, a valorização do homem no campo, do trabalhador, da pequena propriedade. A questão dos grande latifundiários, a questão do agronegócio tá muito forte e eles discutem mais essa questão dos grande produtores, não da agricultura familiar.

Inicialmente quem cuidava das questões religiosas era um Frei também assentado. Hoje, muito bem integrados com a igreja, mantém uma igreja católica em cada comunidade, onde os paroquiais vêm fazer missa e encontros. Os assuntos que abarcam toda a comunidade são discutidos democraticamente, os próximos passos, os problemas que surgem, todos têm voz ativa e devem posicionar-se; alguns representantes gerais levam esses assuntos para instâncias de abrangência regional. A comunidade assim exercita-se em um mecanismo de diálogo e respeito. Algumas coisas relacionadas, bem como já havia dito Cedenir Oliveira, com a comemoração devem ser melhoradas – sempre há o que se melhorar. Precisa-se de um espaço maior para o esporte e para o lazer, precisa-se modificar a cultura de apenas trabalho… Não existe recurso federal pra isso mas há outras possibilidades. Mesmo sem um campo de futebol adequado, o campeonato estava sendo realizado, e esportes como a bocha e o bolãozinho são próximas tentativas.

Organização e Cooperativa de Prestação de Serviços Técnicos, Coptec

A Coptec foi fundada em 1996, depois passou por um processo que foi chamado de Projeto Lumiar (Projeto do Governo Federal, realizado pelo INCRA, destinado aos serviços de assistência técnica e capacitação às famílias assentadas em projetos de reforma agrária) que foi até o ano de 1999, a partir daí conveniaram-se ao governo do estado e ao INCRA (mais ou menos de 2002 a 2008) para atender os assentados do estado. Hoje existem em torno de doze mil famílias assentadas no Rio Grande do Sul. A partir de 2009 o INCRA abriu uma licitação publica, o estado foi dividido em 18 núcleos operacionais, a Coptec tem responsabilidade sobre 8 e a EMATER sobre 9 e uma região a cargo do CETAP.

Em Tupanciretã, são oito técnicos responsáveis, um veterinário, um agrônomo, uma farmacêutica, uma técnica em enfermagem, uma professora formada no magistério, dois técnicos em agropecuária e um em agroecologia, uma secretária e um historiador que foram contratados para auxiliar nos PRAs, Planos de recuperação dos assentamentos, dentre eles alguns são filhos de assentados, porém, todos moram na cidade. No estado são 22 PRAs encaminhados, é feito um diagnóstico  e, a partir dele, um levantamento para ver a situação dos assentamentos e abrir planos e programas  para os próximos passos de melhoria. Além disso, são feitas palestras para orientação sobre manejo do gado, manejo leiteiro, manejo de poda, projeto de crédito, enfim, tudo que é demanda das famílias, no entanto, os técnicos são poucos.  São oitenta e cinco famílias por técnico, o que em meio rural se torna difícil devido à distância entre as casas, e se considerar a especialidade de cada técnico o número acaba sendo integral para cada um deles.

Os técnicos têm acesso à internet no escritório, todavia os assentados ainda não possuem a chance de manterem-se conectados, para que isso ocorra no futuro, existe um projeto, Casas Digitais, que é uma tentativa de levar a rede às escolas dos assentamentos – onde elas existem, claro,  proporcionando essa integração cibernética, melhor seria ter uma repetidora lá, um lugar onde ampliasse o sinal e as pessoas conseguissem ter acesso, mas pela dificuldade que tem no campo, o pessoal tem que se deslocar pra estudar na cidade, eu particularmente acredito que  futuramente tenha que trabalhar com estudo superior no campo sem que eles precisem sair do campo, ou trabalhar com vídeo-aula, disse Rodrigo Cidade, veterinário da equipe que está acompanhando os assentados desde fevereiro de 2006. São os assentamentos que possuem escolas de ensino fundamental o Nossa Senhora de Fátima (150 famílias), Nossa senhora de Aparecida (70 famílias) e Cachoeira (180 famílias).

Rodrigo Cidade (ver banda dele nos Extras) veio do interior de São Paulo, formou-se em Medicina Veterinária na Universidade Federal de Santa Maria em 2005 e, nessa vontade de fazer algo efetivo por questões da reforma agrária, ficou seis meses sem receber salário. Se o cara não compreende isso, aí jamais vai aceitar. A dificuldade continua, nós estamos tentando ver se a gente consegue encontrar uma harmonia pra que se consiga atender as necessidades da família, pra que a gente consiga ter uma infra-estrutura mínima adequada, pra que a gente consiga ter uma periodicidade de atendimento dentro dos assentamentos. Nesse ano foram 1030 visitas, o INCRA contrata os técnicos para trabalhar com 42 famílias e o número é bem maior, existem famílias irregulares, outras que foram embora.

Dentro dos levantamos feitos pelos PRAs sobre os níveis de produção de leite, soja, ovelha, mel, gado  em Tupanciretã a renda bruta seria de  R$ 17,6 milhões anuais, o que quer dizer 2 milhões de reais recolhidos em ICMS por ano, mas como os produtores são isentos desse imposto, esse valor acaba girando dentro do comércio local. Aquece a economia, se tu for conversar com o pessoal da cidade sobre o que tinha antes da chegada do assentamento e depois da chegada do assentamento, vai ver que tudo isso fica aqui dentro da cidade. A gente trabalha mais ligado a Coptec e a produção gira em torno de 500 mil litros de leite por mês, é uma coisa significativa e o custo é baixo e viável. Outro dia fui em um assentamento e um assentado disse que o dono da fazenda foi lá visitar ele e começou a olhar, nossa! como isso daqui tá mudado, tem mais gado, tem mais árvores. Hoje lá tem quarenta famílias, lugar onde tinha um dono, cada uma com seu sonho, trabalhando seu objetivo de vida, criando seus filhos, então, é um espaço onde tem gente.

Por iniciativa de 30 produtores de leite, o produto forte, no ano de 2001 surgiu uma cooperativa; um caminhão foi conseguido e iniciou-se o recolhimento do leite. A COPERTERRA fez com que quem produzia leite recebesse mais através de concorrência e aumento de preço, no início eram R$ o,18 por litro, hoje a média é de R$ 0,45, o que elevou a arrecadação do produto de 60 para 500 mil litros por mês. Tudo isso é um processo que a gente construiu, tem que se considerar que quando essas famílias chegaram aqui não tinha nada.

Os técnicos da Coptec também auxiliam no embelezamento das casas, trabalhando a auto-estima das pessoas, propondo um ambiente agradável, valorizando o conhecimento popular e exercitando a cidadania dos assentados. A saúde é uma questão do município, porém, o atendimento não é completo. Existem unidades móveis, mas médicos são o que se necessita; eles não se dispõe a trabalhar nessas regiões do interior ou simplesmente passar entre as casas para esclarecer pequenas dúvidas, é uma lacuna na estrutura que se tem. Também existem as preocupações ecológicas dentro da agricultura familiar, como o uso reduzido de agrotóxicos, manutenção de nascentes, cuidado com reservas legais.

A realidade é mesmo essa, as casas estão tranquilamente postas atrás de suas plantações, uma senhora passeia com um filho no colo e outro no chão enquanto três cães correm ariscos como cães que não conhecem apartamentos e são livres, donos de suas patas. Como em todas as situações as coisas podem dar errado, podem frustrar mentes esperançosas, mas apenas por um tempo. Os momentos difíceis, onde o financiamento não pode ser pago pela produtividade baixa ou a luz que ainda não chegou, intercalam-se e baseiam-se nas expectativas que se fecharam com êxito. Bem como disse Rodrigo, o trabalho é feito com e por seres humanos, os projetos articulados e planilhas mil serão moldados e postos na dinâmica da natureza. Seres humanos têm suas peculiaridades, seus desejos, os sonhos de cada um, com isso não tem como tu pegar e dizer: ó, agora tu vai ter que fazer isso aqui. Isso não é, isso não acontece.

É um pedaço do que pode e dá certo, é uma faceta de um movimento que está obscurecida para grande parte das pessoas. Não significa um projeto perfeito, não quer dizer absoluta ordem, estrelas mil de incríveis realizações intocáveis, ao contrário, é uma luta que já deu seus primeiros passos, uma luta abraçada por alguns com mais força, por outros com nem tanto. A idéia de reforma agrária está mais estruturada, caminha não para ficar em uma solução de outros tempos, mas para ser efetivada passo a passo, para desconstruir alicerces de uma mesa de um dono só. Tem gente trabalhando, construindo, vivendo mais do que sobrevivendo, o que creio ser o direito mínimo de todos nós.

Estado de alerta
Canto aberto
Campo aberto
Corpo aberto
A arte de concentrar a vida
Na polpa clara das coisas
E armo esta terra
Mesmo sem amor de armar
Armo esta terra
Com amor de auroras
Que nela o sangue
Mesmo coalhado
Possa ser ciscado
Por algum bicho
E subir à altura do grito
Estado de alerta
A beleza brilha
Com seu olhar de fogo
E o longe nunca é distância
É medo, segredo
Fogão de lenha
Abrindo a manhã
O longe é uma rua
Entupida de parentes
Que nos levarão sempre
Nos seus pertences de viagem
Nós que éramos apenas menino
Debaixo dos lampiões e da noite
(Estado de alerta, XII, Luiz de Miranda)
Final do Grande Campeonato
[youtube=http://www.youtube.com/watch?v=NVG4l1a01U0]

FUGERE URBEM, pelo viés de Caren Rhoden
carenrhoden@revistaovies.com

Os Extras da Reportagem

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