REFÚGIOS, CÁPSULAS E MIRAGENS

Trabalhar por vinte, trinta, quarenta anos e, de repente, parar. Assim se apresenta a aposentadoria para quem só a considera um descanso pré-mortem àqueles que, então, tornam-se a população economicamente inativa. Mesmo quem não enxerga a aposentadoria como o fim de uma jornada tem turbulhas tentando re-arranjar sua vida, que até aquele momento existia para os outros: para os chefes que já não existem mais, para os filhos que já cresceram ou para os pais idosos que possam já ter passado. Aposentar-se é um momento de reencontro consigo mesmo – e isso assusta. O que fazer?

“Pode parar de trabalhar, mas não pode parar, senão enferruja”. Com essa dica monástica, apresenta-se Luciana Olga Soares à minha mãe, que segurava nas mãos um livro sobre a aposentadoria ser uma oportunidade de vida como quem segura uma batata fumegante. Fugindo do Carnaval, meus pais e eu nos exilamos na serra, em São Francisco de Paula, a pouco mais de cem quilômetros de Porto Alegre e habitada por um tanto mais do que vinte mil pessoas (de acordo com o IBGE, enquanto D. Luciana diz serem doze mil). 

 Há dez anos, D. Luciana viu-se na situação que minha mãe começa levemente a mirar: parar de trabalhar. Professora aposentada de História – sem formação universitária, como ela mesma bem aponta -, D. Luciana se uniu à irmã na gestão de um bazar. “Mas eu vou vender livros” foi o recado que ela deu à irmã. Comprou alguns livros infantis, vendeu-os e, quando piscara novamente, tinha montado sua própria livraria. Para os mais afobados, que não têm tempo ou vontade de prolongar um chasque com D. Luciana, ela responde que abriu uma livraria “porque sempre estive cercada de livros”. Ela, mais do que qualquer outro, sabe que não foi só por isso.

De família pecuarista, Luciana Olga Soares nasceu em Porto Alegre há sessenta e alguns anos, mas nunca residiu na capital. Sua mãe foi em busca de melhores condições médicas para a cesárea de um bebê que, ainda por anos, teria problemas em ganhar peso. No dia quinze de janeiro, mais frio do que o verão mas nem perto do inverno de São Chico, D. Luciana sentava-se em frente a mim, a uma mesa de madeira que servia também de tabuleiro de xadrez. Sentávamo-nos a uma enorme janela pela qual víamos a Av. Júlio de Castilhos. Seis e meia da tarde e D. Luciana tinha recém acabado de comer um lanche, como me avisou uma das vendedoras da Miragem Livraria…

voilà! E aparece o cenário: a nova Miragem Livraria. Por causa dela, D. Luciana já deu dezenas de entrevistas e todos os dias recebe um penca de turistas que se assustam com um empreendimento como aquele numa cidade pequena. Segundo D. Luciana, a RBS (Rede Brasil Sul) compilou 500 histórias na rede e classificou a primeira reportagem em que a Miragem Livraria apareceu como a quarta mais acessada. “Eu já ficaria muito feliz se eu fosse a número cinquenta”, disse D. Luciana duas vezes.

Em 2003, D. Luciana resolveu levar sua livraria mais adiante e começou a construção de um complexo de mais de dois mil metros quadrados, que incluem uma livraria, uma casa de chá, salas a alugar e um salão de eventos. Em 2007, a obra ficou pronta. Foi por causa dela que a Miragem Livraria ficou famosa – “tem gente até de Portugal que já soube da livraria”, conta D. Luciana.

Ela disse duas vezes que ficaria feliz se ela fosse a número cinquenta e ela realmente quis dizer isso – se ela fosse. D. Luciana investiu dinheiro que seria suficiente “para literalmente viajar o mundo inteiro” numa cidade cravada na serra, com vinte ou doze mil habitantes, sem nenhuma outra livraria ou centro cultural tal qual. A Miragem Livraria é a D. Luciana; de domingo a domingo, até as sete e meia da noite e mesmo quando ela está em casa, na sua fazenda.

Passar pela principal – e única – avenida da cidade é um convite à Miragem. Um prédio de tijolos à vista, com enormes janelas, tudo muito bem pensado e decorado. A parte de dentro é toda de madeira, com cadeiras sob medida, conversadeiras sob medida, estantes sob medida nomeadas com pequenas placas sob medida que indicam a divisão dos livros, que estão “dispostos descontraidamente”. Dois andares e um sótão. Muito espaço, diferente de qualquer Nobel, Americanas ou Cultura que “ainda vão acabar com as outras livrarias”. A Miragem é mesmo uma miragem. Sem necessidade de perguntar o porquê do nome.

Não faço muitas perguntas e D. Luciana fala sem inibição. Fala dos livros, fala da vida, fala de amor, mas para de falar quando vê um cachorro de rua passar em frente à janela. Silêncio e a promessa de ir atrás do animal que “está com uma pata machucada” – os cachorros são uma das duas paixões de D. Luciana. Chutes quanto à outra?
Numa cidade pequena, em que ninguém ousaria investir numa livraria, é possível manter um negócio? “Às vezes eu preciso botar dinheiro do meu bolso. Mas, lá em cima, onde estão expostas as obras [de arte], eu quero abrir uma loja de decoração para ver se eu consigo fazer com que ela [a livraria] se mantenha sozinha”. D. Luciana termina o relato dizendo que não pretende ficar rica. Bem, isso é algo com que ela aparentemente não precisa se preocupar. A conversa continua e eu sigo fazendo perguntas minúsculas, mais relatando pensamentos meus, enquanto D. Luciana fala e fala e fala sem medo e como se tivesse sido lhe entregue um pré-questionário. Eu ouço. D. Luciana tem os olhos já fundos, recostados nos óculos a meio nariz. Ela anda de abrigo o dia inteiro e conversa com todos os clientes. Cores sóbrias: cinza, verde, bege. Olhos no chão. “…ler é para poucos”, continua ela sobre as razões de ter construído a livraria. “Não importa a quantidade. Se eu precisar parar uma hora para pensar numa frase que eu li…”.

D. Luciana conta que já demorou três anos para reler um livro e não conta isso com o medo comum aos pseudo-cultos que abominam os baixos índices quantitativos de leitura. Falamos de livros eletrônicos e ela pega da mesa uma obra de João Cabral de Melo Neto e encena uma interação ao folhear as páginas e dizer que “a relação entre o eu e o livro. A poesia entre o eu e o livro; a intimidade, isso eu acho que nunca vai acabar”. Ao falar de tecnologia, diz que faz questão de morar para fora com seus dezessete cachorros, sem televisão, sem rádio e sem internet. A senhora lê? “Leio só uns quinze minutos por noite. Não importa a quantidade. Se eu precisar parar uma hora para pensar…”.

Ela continua falando naquilo que alguns chamariam de viagem. Ela fala do que quer, no seu próprio ritmo, muda de assunto, dá opinião. Eu ouço. Ela ajeita a manga do casaco, cumprimenta um casal de clientes que recém entra e continua: fala de amor, fala de animais, fala de sexo, fala de solidão. Eu continuo ouvindo. “O grande problema da humanidade é a falta de amor. As pessoas não conseguem ficar a sós consigo mesmas”. D. Luciana conta de uma vez em que  daria carona para uma pessoa e pediu dois minutos para escovar os dentes; ao voltar, dois minutos depois, encontrou-a com televisão ligada para “passar o tempo”.

D. Luciana me leva para um passeio pelo prédio. No segundo andar, uma exposição de obras de arte de artistas locais; no terceiro andar, um sótão, sem utilidade primária, onde já houve casamento, festa, palestra. Embaixo do sótão, com entrada pela rua, há quatro salas a alugar, só uma alugada. No primeiro andar, duas portas contrastantes. A da direita, leva à casa de chá que tem tudo pronto para oferecer comida e bebida que “não precise matar nenhum animal”. Tem talheres, mesas, taças, fogão, forno, bancada, menos micro-ondas – “porque é cancerígeno”. A porta da esquerda leva a um prédio separado, réplica do antigo Banco Nacional do Comércio da cidade. É um salão de eventos. Naquele dia, restavam garrafas de espumante e papeis de salgados. Na noite anterior, houve o lançamento de um livro – “não deu muito certo, mas…”. Os acepipes estéticos estão em todas as peças. São fotos antigas da cidade, móveis restaurados, quadros, lenços, malas. Na primeira parede que se avista, a foto de seu avô, a quem rende homenagem por ter sido o primeiro professor da cidade. Nos fundos, a livraria infantil contrasta por ser toda branca. Em cima das escadas, um placa que diz o porquê da livraria.

“Miragem Livraria surgiu da paixão que sempre tive pelos livros. Dessa paixão que, no decorrer do tempo, foi se estendendo a todas as coisas de espírito. Miragem Livraria surgiu também da confiança que deposito nos moradores desta terra, da certeza de que saberão valorizar o que oferecemos: o livro, o brinquedo educativo, a alimentação saudável e esta música que eleva, que acalma, que nos reponta para dentro de nós mesmos”. (Luciana Olga Soares)

Entre as idas e vindas da conversa à mesa-tabuleiro, D. Luciana fala de solidão e do medo de conhecer a si mesmo, por isso os gritos, a música alta, a televisão ligada. A livraria é um mundo paralelo: conversas baixas, música calma e muitos livros. A senhora tem consciência de que a livraria é uma cápsula, um refúgio? Ela para, olha ao redor. Parece que ninguém tinha perguntado isso antes. É o único momento em que ela não engata uma resposta. “Tenho”. A livraria não é só miragem, é também escape. E D. Luciana sabe bem disso.

REFÚGIOS, CÁPSULAS E MIRAGENS, pelo viés de Gianlluca Simi

gianllucasimi@revistaovies.com

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