ANÔNIMOS CONGELADOS

Há uma antiga brincadeira, provinda das regiões mais frias do globo, a qual as mães, bem encasacadas, e seus filhos, cheios de blusões, cachecóis e chapéus, encaram o início da noite levando ao fundo dos pátios, ao muro lateral ou à quinta das casas, uma bacia, forma de alumínio ou qualquer recipiente mais raso, com água. Tal brincadeira é realizada nos dias gélidos do inverno, tendo a finalidade de, quando amanhece e toda família acorda para trabalhar, ir à escola ou qualquer atividade rotineira, encontrar uma camada de gelo que se forma sobre a água, sendo fina alguns dias e bastante espessa quando o frio se intensifica, chegando aos graus negativos na escala Celsius.

Se fossemos imaginar o corpo humano em tal situação, desprovido de algum tipo de proteção térmica, a situação se agravaria. O nosso corpo sobrevive com temperatura corporal normal de 35ºC. Se essa temperatura cai inferiormente ao nível adequado, de maneira não propositada, o metabolismo humano é rapidamente afetado.  Quando a temperatura do corpo cai em algumas horas, por exposição a ambientes frios e alcança os 32ºC, nosso metabolismo pode entrar em colapso e com rapidez a situação se agrava, podendo chegar à morte. Estamos expostos, então, à Hipotermia subaguda.

A tarde de um domingo anônimo é de doer. Às cinco, sensação de abandono. Às seis, decadência do ser. Às seis e trinta, o peso doinconstante. Às sete, a brisa se apossando das aleias da praça, insensibilidade de amar e sensibilidade de imaginar afeto. A luz do domingo é sem igual.  Amarelava fracamente dentro e fora dos apartamentos. Assim, surgiam as saudades dos lugares onde nunca esteve. Assim, se emancipa a vontade de não voltar para casa pela vergonha de permanecer perto dela.

A Hipotermia leve faz a pessoa sentir frio, tremores, os músculos parecem não mais corresponder às ordens do cérebro e a pele se esfria. As pontas dos dedos se acinzentam e as unhas recebem um tom arroxeado. Tudo o que se vê ou se sente pode não ser verdade. A confusão mental se aproxima.

Com a temperatura corporal ainda mais baixa, nem se treme mais. Um sono pesado surge, a incapacidade motora detém o ser, os músculos estão rígidos, a inconsciência trata de alterar a memória, o cálculo de espaço e tempo e a fala se diferencia. Quando o corpo tem uma temperatura medida abaixo de 30ºC, a imobilidade e a inconsciência retardam qualquer reação e a freqüência cardíaca diminui. Sem cuidados, a morte é inevitável.


Ninguém sabe a tristeza da praça. Ou tenta não ver. Ela se deita aos pés dos enormes prédios que noturnamente tentam fugir verticalmente de coração do pequeno parque fazendo reluzir quadrados aéreos onde uma luz parece aquecer. Há nisso tudo, um quê de tristeza falsa, marqueteiros do contra-humanos idênticos, fugitivos dos semelhantes, distribuindo varandas quanto melhor mais altas, com achaques e perigos menores para tão sofisticada sociedade mediana. Prozac solto, tarjas-preta, calmantes, água de melissa, uísque, lareira, silêncio, taquicardia, medo. Mas o frio e a tristeza estão na praça, sempre.

A população sem condições de enfrentamento do frio, com casebres acanhados, falta de roupas e cobertores e alimentação adequada, já sente na pele, literalmente, essas mudanças drásticas. Alguns, por mais um ano consecutivo. O Rio Grande do Sul não é um estado pobre, mas seu contingente de pessoas pobres é enorme. Avaliações institucionais calculam que aproximadamente 2 milhões de gaúchos vivem na pobreza. 

Em 2008, o estado do Rio Grande do Sul tinha ainda 1,82 milhão de pessoas vivendo na linha da pobreza, sendo 17% da população sujeita a uma renda domiciliar per capita de R$724 por mês. Ainda no mesmo ano, 530 mil gaúchos viviam na extrema pobreza, com salário mensal de R$87,57.


Notadamente, a velhinha da varanda interessou-se pelos que no coração da escuridão verde-negra denegreciam. Quem eram aqueles pobres moços, esses moços, que as sombras tinham clarão maior que seus próprios futuros? E o vento gelado assobiava nas curvas das calhas. Recostou-se ao parapeito da varanda. Encostou a cabeça alvejada na mão velha que tremia e decidiu ficar a perceber os passos, os gestos, os desenhos das sombras nas aleias como um enorme cinema. Gigantes amargos.

Para o Banco Mundial, a pobreza está relacionada à incapacidade de atingir padrões satisfatórios de nutrição, saúde, educação e acessos ambientais (BANCO MUNDIAL, 2004). Desenvolver a sociedade está relacionado às oportunidades que tais indivíduos possam ter de ampliar aptidões e a criatividade conforme suas necessidades e interesses. Fica entendido que cada ser humano tem suas necessidades formuladas por todo seu contorno, o meio onde vive, podendo ser díspares as vontades e necessidades dos seres em pequenos espaços geográficos. O pobre de uma região mais fria demonstra a cada ano sua preocupação maior com os bens que o farão suportar o frio, fazer as crianças irem à escola alimentadas, sem estarem sujeitas às doenças de inverno e propícias ao mal-estar ocasionado pela sensação de frio.

No dia 27 de julho de 2009, em Itajaí (SC), um andarilho foi encontrado morto em um galpão no Bairro Itaipava, pela manhã, pelo próprio dono do imóvel. O corpo de Rafael Alves Machado, de 45 anos, não tinha sinais de violência e o Instituto Médico Legal suspeitava que a causa fosse hipotermia.

Em 2006, no Rio Grande do Sul, uma onda de frio atingiu o estado de maneira drástica. Santa Maria, na região central, registrava temperaturas por dias seguintes beirando o 0ºC . Pelo menos oito pessoas morreram no Conesul durante aquele ano em consequência da onda de frio. No Rio Grande do Sul foi confirmada uma morte por hipotermia em Santana do Livramento, e, até hoje, há suspeitas, pelas autoridades, que outra vítima teve como causa do falecimento, em São Leopoldo (grande Porto Alegre) a baixa temperatura corporal devido à falta de qualquer isolante térmico mediano, como uma roupa de manga ou cobertor.

Em Ametista do Sul, em agosto do mesmo ano, o frio intenso matou João dos Santos Portela, de 36 anos. Na manhã de uma terça-feira seu corpo fora encontrado em uma garagem aberta de um clube local. João costumava dormir naquele lugar, fazendo fogueiras para suportar as noites “cortantes” de inverno. Seu corpo fora encontrado vestido apenas com uma bermuda e uma camiseta. Não foi necessário enviar o corpo para necropsia, pois não havia lesão externa. Os exames feitos por um médico atestaram que João dos Santos Portela morrera de parada cardiorrespiratória e hipotermia. O frio da mesma semana pode ter matado Viviane Franco, 32 anos, moradora de rua na cidade de Viamão (grande Porto Alegre).

Todos os caminhos levam ao coração. E lá se encontram suas células. Uns fumam apoiados em bancos, outros levam à boca cachimbos metálicos feitos de papel metalizado. Um caldeirãozinho surge sobre as pequenas chamas e a mulher gorda o engrossa levando a boca da pequena panela um saco, desses de salgadinho, cheio de alguma coisa poeirenta. Uns quatro itens maiores incidem contra o caldo e a queimam de leve, fazendo-a se lamber.

Surge um apequenado, grandes cabelos claros e sujos, vestido com uma calça e um casaco de general. Carrega achegado ao corpo uma garrafa que minutos antes retirara de uma sacola de mercado. Líquido amarelo, amalgamação de qualquer coisa, centavos de custo, bebe. O isolamento do coreto, o choque das ratazanas, um homem golpeia o pequeno arredio, a gorda ri assentada com os pés inchados, o outro segura a mochila pelo cordão que sobrou da queda, fumaça, fogo, uma clareira, na praça há uma clareira arcaica.

De fato, pobreza distinguisse como um fenômeno de muitas faces. Envolve aspectos relativos, como ter fome, estar sujeito a doenças, não ter abrigo, viver sob vulnerabilidade econômica, sobreviver sendo socialmente excluído, vivenciar situações de difícil coordenação própria, estar sujeito a conjuntura capital desoladora e que a oprima de seu bem-estar social. Pobreza, no inverno, é sinônimo de frio.

A velha não suportou e desceu. Pediu ao porteiro que abrisse, não estava louca. Atravessou a larga avenida, subiu a calçada, adentrou na floresta negra. Tinha medo de alguns, mas mantinha o olhar fisgando a gorda sentada agora sozinha e dormindo. Aproximou-se, tirou o casaco e a enrolou fazendo a volta pelas costas da mulher sentada com o queixo apoiado no peito. Deu volta. Olhou a cara do frio frente a frente e percebeu. Estava também sentada, sem mais tremer. Dormiram, as duas, igualmente abraçadas às pernas, no silêncio de bocas amedrontadas.

ANÔNIMOS CONGELADOS, pelo viés de Bibiano Girard

bibianogirard@revistaovies.com

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