Quando se calou a voz da maioria silenciosa

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E quando canta arrepia os fios mais leves dos braços que o vento ouriça. A multidão treme. Emocionada. A maioria silenciosa fala pelos lábios finos de um rosto cheio de serenidade.  Sobe ao palco e convoca palmas que acompanham sorrisos enquanto dizem em um canto único, grave: Soy pan, soy paz, soy más. E nas ruas atuais o povo questiona se serão necessários outros tempos escuros de espadas e armas para que surjam vozes. Para que surjam Mercedes.

Hoje é 4 de outubro e a corpulenta senhora se despede da situação atual. Num corpo que índios e sul-americanos se reconhecem, a sobrancelha de afáveis fios negros atrelados sem falha alivia-se dos anos. Olhinhos puxados, finos como pequenas aberturas na pele feitas por corte de folha. O nariz como o bico dos pássaros. Uma negritude forte, amedrontada e ao mesmo tempo calma que transmite paz. Paz que fora necessário encenar durante os anos militares que fizeram da América do Sul um grande limbo, o purgatório de quem sonhava. E os ianques ordenaram e os militares acenaram com as espadas em riste desconstruindo toda a conjuntura humana de um povo díspar.

Mercedes gritou e uniu-se aos desiludidos. Tinha em Violeta Parra a imagem do inconformismo político e social, sendo Gracias a La vida, a música mais conhecida na voz de Sosa, escrita por Violeta. O espírito de contestação permeou o resto das vidas musicadas da argentina e da amiga chilena. Em uma frase da música “La carta”, cantada pelas duas, a frase “os famintos pedem pão; chumbo lhes dá a polícia” resume o comprometimento com a luta pelos direitos dos acanhados. “Luna de los pobres siempre aberta, yo vengo oferecer mi corazón, como um documento inalterable, yo vengo oferecer mi corazón. Daí a legenda dada à Sosa desde sempre: a voz da maioria silenciosa.

Assim, nos idos da década de 60, numa Argentina tumultuosa onde compatriotas lutavam contra as forças militares, La Negra impulsionou o surgimento do Movimento Nueva Canción. Na década, universidades eram invadidas pelos militares tendo alunos e professores expulsos das salas de aula a cacetadas. Os militares viam as instituições de ensino superior como o berço dos subversivos comunistas, enquanto na política externa davam condições para que grandes monopólios multinacionais se inserissem na Argentina. Nesse contexto, acompanhada de Victor Heredia e dos chilenos Victor Jara e Violeta Parra, Mercedes surgiu com esse folk engajado de descontentamento. Heredia continua cantando. Violeta, após ver seu sonho de erguer uma tenda de agregação cultural do folclore chileno fracassar, suicida-se em 1967. Logo, em 1973, Victor seria assassinado na ditadura de Pinochet. Seus restos mortais permaneceram desaparecidos por 36 anos até junho do ano passado, quando uma série de investigações comprovou que os restos em um túmulo miserável eram do cantor. A Fundação que leva seu nome fez, então, em 2009, o verdadeiro funeral de Jara, tendo uma multidão cantarolante acompanhando a passeata que levava os restos ao cemitério. Entre os presentes estava Ángel Parra, filho de Violeta.

As letras que estruturaram o movimento prezavam por uma convocação social e luta aliciada contra as ditaduras estabelecidas em toda a América. Depois da morte de Jara, Sosa persistiu com o hino sudamericano de angústia. Nascida em San Miguel de Tucumán, o maior brado, a voz maior da América Latina ostentava o cabelo negro e liso marcante, contrastando com a pele de uma senhora que viveu e amou durante o canto. Cantava por um motivo, não apenas sonoro, vulgar, triste descompasso de apenas declamar acompanhado de uma sonoridade. Sosa cantava com o peito estufado e os lábios enrijecidos, as sobrancelhas arqueavam e os olhos surgiam com as bolitas pretas que falavam aos quatro ventos: canta, América, grita!

Foi difícil suportar o próprio governo e fácil tornar-se persona non grata para o mesmo. Foi durante esse período que o álbum Hasta La Victoria de 1972 ganhou visibilidade estrondosa. A proximidade de Mercedes com movimentos comunistas da época e seu apoio aos partidos de esquerda atraíram a censura do governo militar, acarretando no episódio mais notório na trajetória da artista militante. No ano de 1979, enquanto cantava para estudantes do último ano da faculdade de Veterinária, Sosa foi retirada do palco e presa, juntamente com outras 200 pessoas que a assistiam. Após pagamento de uma fiança e pela pressão internacional contra a atitude do governo, depois de 18 horas de prisão e liberta de seu momentâneo cárcere,  Mercedes sentia o desgaste entre a persona non grata e o governo de sua própria terra. La Negra estava sendo ameaçada pela AAA (Aliança Anticomunista Argentina). Militares da marinha e do serviço secreto a seguiam. Em 1978, Mercedes Sosa vai para o exílio. Para a amante de seu povo e seu chão, a expratiação fora o pior dos castigos.

As prisões de ativistas, estudantes, professores, civis ligados a movimentos revolucionários e tantos outros adversos ao comando ditatorial tiveram como conseqüência milhares de mortes. Sosa acompanhava tudo, primeiramente em Paris e depois em Madri. Os anos passam, a Argentina está sufocada, estrangulada. A batalha das Malvinas torna a circunstância ainda mais dura e abatida. Os militares caem. Sosa está de volta.

É nessa década que La Negra, Milton Nascimento e León Gieco apresentam um dos maiores concertos da carreira dos três. Corazón Americano vem e arrebata tudo e a todos. Depois de tanto canto escondido, tanta palavra não dita, Corazón marca uma década inteira em um continente integral. No amplo espetáculo são cantadas músicas de León Gieco, Chico Buarque e Milton Nascimento, Violeta Parra e vários outros compositores de nossa América.

Mercedes teve 48 álbuns espalhados por toda sua história. A voz dos silenciosos se calou na manhã de um domingo que não só a Argentina marcou. O carisma de Mercedes Sosa levava multidões a um cântico único de um continente em coro. Por onde passava distribuía a serenidade e a esperança da luta e de não se deixar calar. Mesmo tendo alcançado o posto de uma das maiores cantoras da história mundial, por vezes dirigia-se a pequenas cidades, brasileiras, argentinas, não importava a nacionalidade, e cantava para públicos de poucos milhares em festivais de pequeno porte físico, mas grandes em suas finalidades para a cultura. O povo sentiu a notícia na manhã de um domingo melancólico com o pesar da morte de um ente-querido. Em 2008 a cantora disse que “cantaria até os últimos dias, como uma cigarra”. As ruas de Buenos Aires viraram grandes caminhos abertos para o adeus. As cinzas foram enfim espalhadas. A utopia também.


A seguir, um belo exemplo de como as multidões se despediram de La Negra. A qualidade do primeiro vídeo não importa, verão!

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As duas ilustrações entre o texto são de Rafael Balbueno, Jornalista e redator da revista o Viés.

Quando se calou a voz da maioria silenciosa, pelo viés de Bibiano Girard

bibianogirard@revistaovies.com

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Um comentário sobre “Quando se calou a voz da maioria silenciosa

  1. Belíssimos texto e resgate histórico. Mercedes Sosa foi, sem dúvida, uma das mais expressivas vozes do mundo e da América do Sul. Um perda irreparável. Restam-nos suas canções.

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