PARA NÃO EMPEDRAR UMA HISTÓRIA

Imóvel. Olhar empedrado. Fixo e sem mãos. Ali, por onde todos, muitos, circulam, ele não tem pés. A moldura: uma praça. Talvez lugar mais ativo de convívio antes, hoje é espaço de alguns eventos, algumas conversas de banco. Bocas das pernas seguem rumando a outros destinos de chegada. Ali, convivendo em mudez com outros personagens acimentados, o homem, o rosto do homem, está disposto.

Não, não sei quem é.

Hum… Por cima dos óculos olha para o homem. Empedrados, ambos. Não sei não…

Jose Gervasio Artigas nasceu em 1764. Defendeu a autonomia, e também independência, da Banda Oriental, região que hoje compreendente o Uruguai e outras províncias argentinas. Aclamado pelo povo uruguaio, desconhecido pelos vizinhos santamarienses. Em uma tarde, 100% das pessoas interrogadas quanto ao senhor ali não sabiam dizer qualquer informação a respeito dele.

Ouve-se um pacote de bolachas se abrindo no banco ao lado. Uma jovem, sozinha, come, em meio aos ruídos laminosos, o lanche da tarde.

Faz muito tempo que eu parei de estudar para saber quem é…

E eu não conheço, não…

Jose Artigas estudou no Colégio dos Padres Franciscanos e no Convento de São Bernardino.  Depois, almejou carreira no Exército. Era uma época em que iniciar vida militar dava chances de ascensão social. Artigas não era pobre, mas também não era rico. O jovem tinha interesse por questões políticas, e, dentro do Exército, cresce. Logo adere às propostas da Junta de Buenos Aires. Esta queria uma centralização de poder na cidade portenha, a região portuária mais fortificada dentre as colônias espanholas na América. Era centro econômico e político poderoso. Além disso, na proposta de união de províncias, as ideias portenhas incluíam um governo que abrangesse o que é hoje a República Oriental del Uruguay.

Montevidéu, entretanto, também tinha um porto com potencial. Era grave concorrente, caso não unisse suas forças as de Buenos Aires. Assim, a Junta projetava-se política e economicamente a várias regiões e províncias, incluindo o território com a potencial cidade concorrente.

Jose Gervasio Artigas desde cedo iniciou carreira militar. Artigas não era pobre. Tampouco era rico. Vinha de uma família de muitas posses, mas muito numerosa. Lidava com os criollos mais ricos e com os estratos mais “baixos” da sociedade colonial Ibérica. Por isso, iria obter simpatia tanto de estancieiros ricos como da população pobre. Conhecia os jogos de poder, bem como conhecia as carências populares.

Quando já tinha muito prestígio dentro da vida militar, é designado a comandar as forças da Junta. Incumbido a liderar revolução na Banda Oriental, obtém vitórias e êxitos, mas quando chega perto de Montevidéu, em 1811, o governador da cidade, Elio, se assusta e pede auxílio às tropas luso-brasileiras. Eis que a Coroa portuguesa, nessa época já instalada no Brasil, resolve interferir por Elío e, é claro, por seus próprios interesses expansionistas.

Homenaje Del Congreso Nacional de Ediles Del Uruguay. Três meninas riem em um banco atrás de Artigas. Jose não ri, a boca descascada permanece imóvel. As jovens colocam uma máquina digital em um muro baixo de pedra e ficam a programar auto-retratos.

Artigas e seu contingente recebem uma resposta pelas audaciosas vitórias. A Junta de Buenos Aires faz um acordo com Elio e com os lusos. Elio continuaria no poder de Montevidéu e os portugueses deveriam deixar o território, o que não acontece. Apenas sairiam com a interferência inglesa que, mais tarde, em missão diplomática (e missão de organizar como melhor lhe coubesse a região interessante comercialmente), ordena a retirada das tropas.

Jose fora traído. Com grande número de seguidores começa uma caminhada até Entre Ríos, em uma marcha que ficou conhecida com o Êxodo do Povo Oriental, e que colocou o líder sob a alcunha de Chefe dos Orientais. Lá, Jose muda definitivamente sua posição quanto ao projeto político que crê ser o melhor no processo de independência. Quer, agora, constituir a independência do território então governado por portenhos.

Não mais centralização em Buenos Aires. Autonomia dos povos. Províncias autônomas com um poder maior as regendo, mas não as subalternizando. Tais idéias fazem parte de um projeto de formação da Liga Federal, apoiada por Santa Fé, Corrientes e regiões de Córdoba (hoje, todas províncias argentinas), as quais eram independentes das Províncias Unidas do Rio do Prata, aquelas com centralização em Buenos Aires.

General Jose Artigas, Protetor dos Povos Livres. Inaugurado na Semana de Santa Maria, 1986. Um homem lê o dizer, que é um dos três que explicam o busto. Força os olhos e balança a cabeça: Não, não conheço.

Em Entre Ríos, a nordeste do atual território da Argentina, Artigas concentra forças. Simpatizantes se unem à causa. Em 1813, Buenos Aires conclama uma Assembleia Constituinte, na qual as províncias, teoricamente, teriam voz. Artigas, por sua vez, conclama o Congresso Oriental, para tomar a decisão sobre quê posicionamente ter em relação aos orientais de Buenos Aires. O resultado é uma série de propostas de governo, as Instruciones Del año XIII. Dentro delas, reivindicações da Província Oriental por independência, federalismo e república. Como são o oposto das idéias de Buenos Aires – defensora de monarquia e centralismo -, e como defendem um pacto entre as províncias, e não uma hierarquização, as propostas são totalmente ignoradas. A fúria pela exclusão leva Artigas a declarar guerra.

1814. O rumo é a Montevidéu conquistada pelos buenairenses. Artigas vence. O homem e seu contingente conseguem ocupar a região. Os portenhos abandonam Montevidéu e Entre Ríos. Começa, então, um novo governo na região devastada por anos conflituosos. Em 1815 Artigas está no governo de toda a Província Oriental. Juntamente com aquelas regiões que o apoiavam – Santa Fé, Entre Ríos, Corrientes e Córdoba – cria a planejada Liga Federal. A intenção era ir de encontro à centralização de Buenos Aires. Por tal medida, Jose Artigas recebeu a alcunha de Protetor dos Povos Livres.

O governo de Artigas duraria pouco. Entretanto, foi o período em que mostrou na prática os seus intentos. Entre as primeiras medidas do governo: expulsão dos grandes proprietários das fazendas. Expropria terras e gado daqueles que eram inimigos. Divisão das terras entre índios, gaúchos, escravos libertos, e brancos menos abastados. Nas pequenas propriedades, deveriam recuperar rebanhos ou cultivar terras – ou ambos. Caso contrário, corriam o risco de perder a propriedade.  Era preciso revitalizar a produção que, como quase todos os outros setores econômicos, encontrava-se em estado caótico. Seria a primeira e única fez que uma reforma agrária em tais moldes seria colocada em prática no Uruguai.

Seilá, o nome até me lembra alguma coisa, mas não sei.

Báá, não sei não.

Outras medidas de revitalização do comércio no porto de Montevidéu foram tomadas, bem como o controle do contrabando. Acordos com os ingleses são realizados, a fim de movimentar os portos. Era necessário recuperar a economia local, mas sem esquecer as causas sociais. Como conseqüência: a ira dos criollos, a elite colonial e um pretexto para nova invasão luso-portuguesa. Ideais republicanos e federalistas não eram interessantes para os arcaicos ou interesseiros projetos de governo circundantes.

Sob alegação de conter as agitações da fronteira com o Rio Grande, tropas da corte portuguesa tomam a Província Oriental novamente em 1816. Queriam colocar ordem na chamada “anarquia” que se tornara a região sob governo artiguista. É claro, também desejavam estender território, consolidando o tão sonhado domínio do Rio do Prata. Buenos Aires se opõe, mas não tem forças (talvez nem desejasse ter) para conter o avanço lusitano. Entrando no território da Província Oriental, dizem estar levando paz e prosperidade aos habitantes.

Um busto de Artigas doado pelo Rotary do Uruguai está na praça Saldanha Marinho, em Santa Maria, Rio Grande do Sul. Incoerências? Amistad por El Rotarismo Uruguayo a La Comunidad de Santa Maria, diz a placa. Deixar o homem sério ali, rodeado pelo povo do território que teve grande peso em suas derrotas.

Artigas sabe que não há como enfrentar as tropas invasoras. Pede aos invasores que tomem a região pacificamente. Depois disso, ainda tenta organizar uma operação de guerrilha. Duas frentes de combate são compostas: uma no enfrentamento contra os luso-brasileiros e uma no enfrentamento contra Buenos Aires. Porém, entre os numerosos embates naquela região mesclada de diversas forças e interesses (lusos, portenhos, espanhóis, ingleses), só obtém derrotas.

Diante dos fracassos, organiza ataques à região das Missões, governada pela Coroa portuguesa e à fronteira com o Rio Grande. São atos de resistência à presença estrangeira naquela área. Para desgosto dos artiguistas fiéis, em 1819 as regiões de Colônia do Sacramento, Maldonado e o curso do Rio Uruguai estão sob domínio luso. Piorando a situação, caudilhos começam a apoiar os buenairenses. Grandes estancieiros estão aliados aos portugueses e seus valores senhoriais. As tropas de Artigas sofrem baixas e mais baixas. O filho do protetor, Andresito, que também lutava pela Província Oriental, é capturado e preso no Rio de Janeiro.

Não sei. He-he.

Não tenho opinião nenhuma.

A derrota final é ver os portugueses anexarem ao Brasil o território porque tanto guerreou. Agora os lusos tinham sob seu governo a Província Cisplatina. Seria impossível para Artigas retomar a popularidade, o apoio caudilhesco e, muito menos, o criollo. Todos estavam assustados.

Em 1820, Jose Artigas é definitivamente derrotado. Nunca mais voltaria ao território que sonhava em unificar (correspondente, contemporaneamente, ao Uruguai, às províncias argentinas de Entre Ríos, Missões e Corrientes, e ao Rio Grande do Sul). Sem mais forças, com grande perda de simpatizantes e outras tantas traições de companheiros, busca exílio no Paraguai. Este país estava sob ditadura de Francia, que o aloja como prisioneiro. Quando o ditador morre, Jose Artigas começa uma vida simples, em uma pequena propriedade. Dedica-se a estudar e ensinar os princípios franciscanos. Morre em 1850, quatro décadas depois de ter iniciado a luta por seu ideal de nação.

Catadores passam com suas sacolas de lixo. Povo livre, queria aquele homem simbolizado na praça. Senhoras e senhores, moças e moços passam com sacolas de comprar. Divisão, pretendia ele. Poderia ser, aquele busto, um pretexto para reflexão. No entanto, é como uma pedra em cima dos fatos.

Imóvel. Olhar empedrado. Fixo e sem mãos.

PARA NÃO EMPEDRAR UMA HISTÓRIA, pelo viés de Liana Coll

lianacoll@revistaovies.com

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2 comentários em “PARA NÃO EMPEDRAR UMA HISTÓRIA

  1. Minha ignorância nâo é tanta quanto a daqueles que passavam pelo busto.Mas o texto
    ajudou-me a lembrar boa parte da história e de Brizola que tinha ideais semelhantes
    aos de Artigas.
    Parabéns!!

  2. Parabéns pela maturidade da interpretação e pela qualidade da redação!Teus temas são profundos , sensíveis , escritos com qualidade , com vontade! És uma apaixonada e chegarás tão longe onde teu sonho quiser , que orgulho fazer parte da vida de uma pessoa assim…. carinhos e carinhos….. Ana Luíza

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