AS ESPORAS DA TRADIÇÃO

Parece bagunçado, escuro e faz frio. Ainda mais frio dentro do CTG (Centro de Tradições Gaúchas) Cancela da Fronteira, em São Vicente do Sul, onde dez jovens, entre 11 e 15 anos, espalham-se pelo salão a formar o grupo de dança Terra Doce. São 18h15min da já noite e as botas dos guris chacoalham as esporas enquanto andam. Quatro mães buscam por cadeiras e o instrutor de dança tenta ligar o aparelho de som. Além dos bailarinos presentes na noite, outros quatorze também dançam no grupo.

Parecem bagunçados, cada tantos para um lado, sem ordem – até então: “vamos lá”! E pronto: eles se enfileiram. Se estavam cansados, tristes ou sentiam qualquer outra coisa, foi-se. Levantam o rosto, erguem as costas. Guris seguram a mão das gurias; gurias dão a mão aos guris. Começa a música: não são mais guris e gurias.

Eis o mais óbvio dos grupos de dança gauchesca, mais conhecidos como invernadas. Guris e gurias deixam de sê-los para se tornarem, respectivamente, peões e prendas. Peões fortes, destemidos, ativos; prendas doces, frágeis e passivas.

A música inunda o CTG. As rodas de madeiras que foram penduradas no teto para servirem de candelabros não iluminam lá muito bem. O patrão do CTG (algo como o presidente de um clube) decidiu desenroscar as lâmpadas incandescentes e deixar só as fluorescentes – albinas e fracas – a dar indícios de luz. As solas das botas batem com força no chão, as saias de ensaio rodopiam. Os pés se enveredam para um lado e para outro. Pareciam bagunçados, mas todos dançam ao mesmo ritmo e às mesmas ordens agora.

A música se agita e os rostos sorriem, peões e prendas se fitando num flerte musical. Um passo se segue ao outro, todos bailarinos a fazer o mesmo. Rodopiam, sapateiam, urram. Movimentos que, isolados, seriam só espasmos, convergem a cortes no ar e fazem vento. Dançam!

Enquanto os jovens dançam, os pais dividem o chimarrão e falam das miudezas do dia-a-dia: o vestido da fulana que está curto, a aba do chapéu do sicrano que está muito grande, os próximos eventos regionais de dança. Aliás, quem está lá são as mães. Os pais não dão as caras, fora aqueles que estão envolvidos com a coordenação do CTG. Vai ver é tarefa de mãe [sic]!

No primeiro dia em que estive com a invernada, uma quinta-feira, estava lá o instrutor Sandro, de Santa Maria, a ditar os passos e a corrigir a postura e o tempo dos bailarinos. A certa altura, ele grita que todos deveriam dar “passos de macho” e interpreta o que poderia ser descrito simplesmente como passos grandes e firmes. Pobres fêmeas, que não sabem caminhar! Já no segundo dia, na sexta-feira, tão fria quanto a quinta, é um casal de instrutores, também de Santa Maria, que dita a dança: Sílvio e Tássia. Ela manda que todos se posicionem no salão: é a dança?! Não, é o alongamento. Estica ali e aqui, quer dizer, Tássia se esticava, os bailarinos, em contraponto, talvez não estivessem assim tão flexíveis.

Quando converso só com os peões e as prendas – agora só guris e gurias -, tenho uma pista do pequeno fracasso do alongamento. Fora os ensaios, eles têm aulas, alguns praticam algum esporte aqui e ali, mas todos se unem para dizer que olham muita tevê ou ficam ao computador por muito tempo.

No grupo Terra Doce, a bailarina mais nova tem 11 anos e o mais velho, 15. Todos vão à escola, têm algum acesso à internet e só um deles tem certos problemas em financiar as roupas e as viagens do grupo. Os pais são professores, bancários, comerciantes, funcionários públicos. Ninguém ali passa por graves dificuldades financeiras. Também pudera! Segundo a coordenadora do grupo, a Dida, às vezes conhecida como Adriana Saurin, uma indumentária masculina completa chega a custar R$ 500,00, isto é, um salário mínimo. A feminina, então, é ainda mais cara.

O grupo existe desde 2004, quando a maioria dos atuais bailarinos estudava no mesmo colégio, o famoso Tio Patinhas da Profª. Herodi. Desde então, alguns saíram e outros ficaram. Entraram porque os pais “incentivaram”, mas ficaram por quê? “Pelo sentimento da dança”, diz-me Gabrielle, de 15 anos. Os outros completam com “pela amizade”, “pelo companheirismo”. Alexandre, de 14 anos, inclui um “para defender as tradições”.

A resposta deles é bem diferente da resposta de Dida, mãe da bailarina Brenda, de 15 anos. Segundo Dida, os pais gostam que os filhos participem do grupo porque são “cobrados pela disciplina, pela responsabilidade. É um ambiente bom para eles”. Dida conta ainda que, fora dos ensaios, os jovens passam muito tempo juntos, “fazem tudo juntos”. Nas viagens seguidas que fazem para outros eventos, conhecem pessoas de outras cidades, fazem amigos com quem mantêm contato depois.

Há alguns meses, o grupo Terra Doce deixou de existir por um curto tempo. Eles contam que o grupo lhes ocupa bastante e, sem a dança, todos até pensaram em entrar para a academia [a essa revelação seguiram largas gargalhadas]. Para o desgosto financeiro da dona da única academia da cidade, a Profª. Ângela, a invernada voltou aos salões.

Todos eles querem, um dia, sair de São Vicente do Sul para fazer faculdade. Medicina, Direito e Medicina Veterinária dominam os planos acadêmicos. Alguns dizem Agronomia. Gabriel, de 12 anos, está sozinho na decisão de fazer Engenharia Acústica. Eles dizem que querem continuar dançando, mais tarde, num grupo adulto. Esperam estar juntos, mas não perceberam que, provavelmente, não estarão já todos na mesma cidade. Mas isso não importa agora, o ensaio tem que continuar: lá vem o chote carreirinha!

A FIGURA DO GAÚCHO E O TRADICIONALISMO

O gaúcho permeia a história moderna do Rio Grande do Sul. Está nos causos, nas pinturas, nas músicas a que a invernada Terra Doce saracoteia. Não há estudos antropológicos que classifiquem o gaúcho como um etnia no sentido biológico, mas são, de fato, um corpo social que se distingue de súbito. O gaúcho é uma mistura de indígenas, espanhóis e portugueses que viviam nômades pelas terras “sem dono” da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul (atual estado do RS), de todo o Uruguai, dos pampas da Argentina e chegaram até o sul do Chile.

O nome vem provavelmente dos nativos das Ilhas Canárias, território espanhol na costa do Marrocos: os guanches, povo berbere. Aliás, os berberes são os povos que ainda habitam o Norte da África, especialmente o Marrocos e a Argélia; eles chamam a si mesmos de Imazighen (homens livres). Quase dizimados, os guanches foram enviados para o atual território do Uruguai para que fizessem o que os primeiros austríacos fizeram no Rio Grande do Sul na primeira metade do século XIX: povoar e marcar fronteiras entre os domínios espanhol e português. Há, no entanto, outras explicações para o nome. Pode ainda ter se originado do quíchua – língua andina – huachu (vagabundo) ou do árabe chaucho (relho para domar animais).

Independente da etimologia, o gaúcho sempre foi sinônimo de andarilho, homem sem lei, que vagava pelos campos a transportar gado. No Rio Grande do Sul, o gaúcho se misturou com os austríacos, os alemães, os italianos, os russos, os libaneses, os poloneses e tantos outros que colonizaram o estado e, hoje, é sinônimo de quem nasce por aqui. Os argentinos e os uruguaios, porém, fazem questão de diferenciar os gaúchos dos gauchos. O primeiro é o gentílico para quem nasce no Rio Grande do Sul; o segundo, os ginetes rio-platenses.

Até a primeira metade do século XX, o gaúcho ainda era visto como um marginal. Diz-se que, à época, um homem do campo levava um par de calças para pôr no lugar das bombachas quando chegasse à cidade. O chimarrão, então, era tomado só dentro de casa, longe das janelas. Entretanto – e ouso dizer felizmente -, essa ordem fascista foi sendo superada a troco dos folcloristas, como Pereira Coruja e João Simões Lopes Neto, que começaram a valorizar a pessoa típica dos pagos do sul.

E, assim, em 1968, foi criado o Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG), responsável pela manutenção do folclore gauchesco. Dele, vêm o CTG, as califórnias da canção nativa e os grupos de dança.

DE RESISTÊNCIA A IMPOSIÇÃO

Se o MTG tirou o folclore gaúcho das margens da sociedade, também instaurou uma nova ordem social, baseada em costumes históricos e em regras originárias das interpretações dos folcloristas sobre esses costumes. Quer dizer, de movimento que cultiva a história, tornou-se quase uma religião, a ditar as regras de comportamento, de vestimenta, enfim, de como um indivíduo deve levar sua vida.

Os CTGs são a materialização da tradição e, dentro deles, a dança é um ato cênico que refaz a própria sociedade. No CTG Cancela da Fronteira, donde partimos, há uma bandeira sobre o palco que estampa o mote “tradição não se compra, cultiva-se”. Cultiva-se, apresenta-se, impõe-se, “defende-se”. Não parece, no entanto, haver nenhum ataque para os membros do grupo Terra Doce. Antes do ensaio, alguns deles estavam de calça verde-limão e tênis roxo. Muitos, infelizmente, estão na onda da banda Restart, mas eles dizem que são coisas distintas, usar calça verde e tênis roxo não interfere no sentimento deles. Inclusive, eles dizem achar estranhas certas regras de vestimenta dentro do CTG. No Cancela da Fronteira, por exemplo, em dia de baile, só entra quem estiver em trajes sociais (assim mesmo, sem detalhes) ou em trajes típicos. As regras dizem ainda que as bombachas não podem ser em cores “extravagantes”. Álvaro, de 15 anos, diz “que é ruim porque o cara que só quer vir aqui para ficar com os amigos se divertir e não pode”.

Mesmo assim, os dez jovens que, em pares, rodopiam pelo salão, talvez não tenham se dado conta, mas estão ensaiando para a vida que o resto da sua sociedade espera deles. Homens deixam de ser homens para serem peões; mulheres viram prendas. Aqueles, fortes; estas, delicadas. Peões de um lado e prendas do outro, nunca se misturam, estão sempre em lados opostos. Dois passos para cá e dois para lá. Não há espaço para “frescuras” nos movimentos. A dança é regrada, cronometrada.

O Movimento Tradicionalista Gaúcho passa a ser um esporo de xenofobia quando deve, por exemplo, ser escrito com letra maiúscula. A cultura gaúcha deixa de ser o modo de vida cotidiano para se tornar uma instituição, com regimentos e hierarquia. Os gaúchos não percebem, mas, quando um grupo de pessoas se reúne para decidir pelos outros o que faz alguém ser gaúcho, confirmam as suspeitas de bairrismo sobre nós.

No Rio Grande do Sul, confunde-se muito tradição com cultura. A tradição é rígida, traiçoeira, apara as especificidades do indivíduo e o atola num mesmo molde. A cultura é diária, está no cotidiano. O gaúcho não está no CTG, vestido – ou, às vezes, fantasiado – de bombachas, botas e chapéu, ele está no despertar, na fala, na comida, nas festas, no sono.

Pode ser que os jovens do grupo Terra Doce não percebam, mas talvez sejam mais gaúchos fora do CTG. A bandeira do Cancela da Fronteira diz que tradição não se compra, eu diria ainda que não se impõe, só se cultiva.

AS ESPORAS DA TRADIÇÃO, pelo viés de Gianlluca Simi

gianllucasimi@revistaovies.com

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9 comentários em “AS ESPORAS DA TRADIÇÃO

  1. Eu tenho uma visão completamente negativa com essa coisa de ‘cultura’ ou ‘tradição’ gaúcha. É uma coisa imposta e criada por um grupo de pessoas. Quem senta e resolve o que é tradição e cultura? Tradição se modifica, se transforma. Acho o cúmulo da ignorância cultivar a figura machista de peão e prenda. Enfim, tem vários buracos essa tradição: inclusive com a vestimenta, não se encaixa na história. Tem peças que vieram depois, que não eram usadas, ou que foram usadas por diversas razões, entre elas comerciais. Enfim, como já disse, tenho uma visão completamente negativa disso aí.
    😛

  2. BAITA GRUPO TCHE!!!
    Quando o Cancela abre o peito e mostra a cara
    Leva o orgulho e amor por esse chão
    O Terra Doce poem a alma na palavra
    Canta o Rio Grande com a voz do coração!!!!!!
    :-)))))

  3. E eu ja tenho uma visaão completamente diferente da tua, Se nós não cultivarmos as coisas la do nosso passado , quem é que vai cultivar? CTG é um lugar sério onde exige respeito e disciplina, Gastos em tudo o que fizermos vai ter gastos, e quem discuti sobre a tradição é o MTG pra quem não conhece (movimento de tradição gaucha) que é onde Modificam ou criam outras normas, e mudam para cada vez mais termos respeito na nossa segunda casa(“pra mim”), e quanto a vestimenta, queria falar que tudo muda, se você acha que a roupa do peão mudou, imagina a sua? Por que você não se veste igual como seu pai se vestia? A resposta é imediata Por que as coisas mudaram, então é a mesma coisa Quanto o vestimento 🙂

  4. Eu sou o
    Alexandre de 14 anos , quero dizer que esta na Sala de um concurso não tem preço
    Nós só estamos dançando por que é o que nós faz feliz por que agente ama o que faz
    Para apaixonados que nem nos nem o seu é o limite!
    A dança correm em nossas veias um sentimento puro que faz
    tudo ficar bem,as lagrimas de um derrota vão embora .
    Nosso corpos não nos pertencem mias por que estamos movido
    pela paixão, POR QUE AGENTE AMA O QUE FAZ NADA VAI NOS SEPARAR ,
    NÓS BAILARINOS SOMOS TODOS SEGUIDORES E PARA SEMPRE
    VAMOS AMAR
    Terra doce mais que um grupo uma PAIXÃO
    Uma vez Terra Doce sempre Terra Doce

  5. Gian, só uma pequena ressalva: a Califórnia da Canção Nativa não tem ligação nenhuma com o MTG. O festival surgiu da iniciativa própria de alguns integrantes do CTG Sinuelo do Pago de Uruguaiana e foi o precursor dos inúmeros outros festivais de música regional sul-riograndense que surgiram.
    Quanto à colocação do Vitor, considero importante ressaltar a diferença – exposta no texto – entre cultura e tradição. Cultura é algo volátil, e o conceito abrange todos os aspectos do fazer humano. Cultura ‘vira’ tradição quando ‘cria raiz’ no cotidiano de determinada sociedade, quando se torna tradicional. Logo, a tradição não é algo inventado ou decidido por determinadas pessoas, mas algo oriundo de pesquisas históricas.
    O MTG exerce papel importante no que toca a perpetuar a cultura gerada e praticada pelas gerações passadas do povo gaúcho; Barbosa Lessa e Paixão Cortes foram dois dos maiores pesquisadores da nossa cultura, e deixaram um legado da história cultural sul-riograndense que deve ser levado em conta, quando se trata de tradição. E hoje o MTG se propõe a retransmitir aquela cultura tradicional: No caso da invernada tratada no texto, o MTG dita as normas a serem seguidas nas indumentárias, nas coreografias e na música, de acordo com as pesquisas de Barbosa e Paixão.
    Entretanto, o MTG deve se resumir a essa propagação da tradição, enquanto reprodução histórica. E é aí que entra a confusão de papéis: a cultura como era no começo do século passado não deve ser tomada como molde pra nossa cultura, não deve ser ‘defendida’. Apenas retransmitida.
    Machista, xenófoba ou não, o fato é que a cultura como era antes não se encaixa mais no modo de vida atual do gaúcho. O trabalho do Movimento é válido quando se restringe a trazer às novas gerações as expressões artísticas daquela época, deixando explícitas as fronteiras entre resgate histórico e desenvolvimento cultural.
    ‘No más’, é isso. O assunto é um tanto delicado, pois tudo que se torna tradicional tende a se tornar reacionário, avesso às transformações naturais da cultura de um povo. O desafio é olhar pra fente, evoluir, mantendo o respeito à cultura daqueles que nos antecederam. Parabéns pelo texto.

  6. Pois eu acho q tradição é coisa séria diciplinar e que demonstra para todos o amor q sentimos pelo Rio Grande e o orgulho q temos de viver nele e cultivar as tradições q nos criaram não tem nada a ver com figura machista mas sim com orgulho e respeito CTG é coisa séria coisa para qm ama seu Estado e o respeita se vc não respeita e não me disculpa mas eu respeito gosto e sempre vou gosta
    Mão no peito pra flar do meu estado o melhor lugar do mundo é o meu Rio Grande Amado(8)
    Te agradeço Rio Grande por teres me permitido nascer em ti e sei que eu excolhi ser prenda mas sei foi a melhor escolha e me orgulho pois tal escolha foi a melhor de minha vida

  7. Se é bom ou não ser gaúcho, não sei, cresci no CTG, porém não sou gaucha, mas digo e repito a tradição de vocês pode ser bonita, mas não dignifica quem vocês são. Só vejo gaúchos agindo de forma a infringir a sociedade em diversos aspectos. Enfim, uma raça boa, mas com um ‘paradigma falso de tradição’ para se desculpar pelas más posturas…

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