LATINOS: SINFONIA ROUCA NA SELVA DE PEDRAS

A vida e a obra do poeta da Paulicéia, a voz rouca do samba paulistano – Por que mesmo não tendo um centenário completo, Adoniran Barbosa merece homenagens

Calam-se as vozes que profetizavam em tom de sentença que o samba morria na estação da capital paulistana. Calam-se os morros do Rio de Janeiro diante do fervoroso caldeirão de notas simples e cantantes acompanhadas da voz rouca de um sujeito ítalo-brasileiro.

Diante das vozes que se calam nos morros cariocas, irrompe no silêncio das madrugadas paulistas a voz conhecida de João Rubinato. Mas Rubinato não faz samba. O samba surgiria de um nome que se pudesse criar uma identidade caricatural? Sim. Nascia um símbolo paulistano, carro-chefe da melodia do ritmo mais brasileiro de que se tem notícia… Mas isso não foi há exatos cem anos atrás. Apesar de, ontem no dia seis, o Brasil inteiro bradar o nome e a memória de um dos nossos sambistas mais querido, ele ainda vai esperar para completar cem anos de memórias.

O CENTENÁRIO QUE AINDA NÃO ACONTECEU

João Rubinato não precisou de escola. As contas que fazia de cabeça eram sempre durante o seu contínuo ofício de marmiteiro, emprego que conseguiu aos quatorze anos. No trajeto de entregas a domicílio, abria as marmitas com destreza e calculava com perspicácia, como declararia depois da fama: “No caminho eu tinha fome, sabe? No caminho eu abria a marmita e contava os bolinhos, se a família tinha duas pessoas e tinha seis bolinhos eu afanava dois no caminho, se era quatro pessoas e tinha dez pasteizinhos eu comia dois… não era malandragem, era fome.

João era filho de italianos, Ferdinando e Emma Rubinato, que migrados da Itália passaram a perambular pelo Brasil: primeiro se estabeleceram em Valinhos, mais tarde em Jundiaí, um pouco depois em Santo André e só mais tarde na metrópole paulistana. Além do casal e de João, a família ainda alimentava mais sete bocas. As circunstâncias obrigaram João Rubinato a trabalhar muito cedo para ajudar a dar conta de toda a família. Nascido no dia 06 de agosto de 1912, viu sua data de nascimento ser alterada para o ano de 1910, como revelaria posteriormente: “Eu nasci em 12, né? Mas pra mim trabalhar, depois me arranjaram um batistério, hoje é atestado, naquela época era batistério. Me arranjaram um com dois anos a mais pra mim poder trabalhar”. Sendo assim, o centenário comemorado em todo país na sexta-feira (ontem) não coincide com a verdadeira data de nascimento do poeta urbano.

JOÃO QUASE ADONIRAN

Os anos trinta foram os anos dourados do rádio no Brasil. Este pequenino aparelho de comunicação em massa chegou aos ouvidos do Brasil, e tornou-se um símbolo querido de comunicação e entretenimento. Estava nos lares brasileiros, e era a casa de atores das radionovelas e de cantores dos mais diversos estilos musicais. João (que só mais tarde seria Adoniran) queria ser ator. Bem sabia do futuro brilhante que o rádio emanava nas capitais brasileiras, do charme da época de ouro – da sensação meteórica que era a profissão charmosa de ator, cantor e locutor. Porém, sem ser apadrinhado por viv’alma alguma, João vê seu talento ser esbarrado em dúzias de portas fechadas. O samba lhe surgiu como o acaso, apenas acidental.

Quando entrou pra valer no mundo da música já tinha uma bagagem própria, vinda do seu próprio mundo. Cantava um cotidiano que era extremamente seu, com um olhar atento ao que acontecia ao seu redor, aos problemas de sua comunidade, aos costumes e as manhas dos paulistas de classe baixa, João-quase-Adoniran escrevia seus sambas com a ideia de seu povo, na intenção de trazer ao país inteiro a característica que era muito sua e de sua comunidade. Mas além de esperto, João era antenado. Antes mesmo de mergulhar numa carreira artística já sabia que os compositores viviam em parcerias com os cantores, sempre em vantagem econômica. Não, ele preferiu ser intérprete.

Nasce de dentro de João Rubinato o caricato Adoniran Barbosa – pseudônimo emprestado de um cumpadre conhecido como Luiz Barbosa, também cantador de sambas. Sua primeira interpretação de peso que lhe abre as portas do mundo do rádio é a belíssima canção do poeta e cantor Noel Rosa, Filosofia. O ano é 1933.

O mundo me condena, e ninguém tem pena
Falando sempre mal do meu nome
Deixando de saber se eu vou morrer de sede
Ou se vou morrer de fome
Mas a filosofia hoje me auxilia
A viver indiferente assim

Começou ali sua carreira radiofônica, mas seu Adoniran interior teimava em compositar. Ganhou, um ano depois, o prêmio de melhor canção carnavalesca (Dona Boa), concurso organizado pela prefeitura de São Paulo. Em mil novecentos e quarenta e um ele começa a criar personagens para programas humorísticos na rádio Record. Mesmo tendo alguns fracassos no início da carreira, Adoniran Barbosa ficou conhecido e querido e surgiu diante do samba como a figura do italiano pobre que conhecia sua São Paulo através da música – através do samba.

É na sua fala informal, nos trejeitos e nos cacoetes paulistas de se falar (além da sua inconfundível voz rouca) que Adoniran incorpora o personagem, nascido da malandragem paulistana – muito longe do Rio de Janeiro de outros sambas atrás. Personifica em seu canto os tipos brasileiros carentes de igualdade – seu canto é a voz da cidadania brasileira, uma tentativa de dar voz também aos milhares de despejados, amantes, pobres, famintos, traídos, abandonados. Através da comicidade do samba, a história se conta pelos excluídos, detidos da dignidade nacional.

PAULICÉIA DESVAIRADA

Foi Adoniran Barbosa quem cantou a cara e a coroa da Paulicéia – perpassando pelas ruas e pelos bairros da cidade. Suas músicas estão recheadas com os nomes dos lugares por onde o poeta do povo perambulou e musicou: é Jaçanã (imortal do Trem das Onze), Vila Ré (do Casamento do Moacir), Ermelindo (Vide Verso Meu Endereço), Casa Verde (lá  no Morro da Casa Verde), Rua dos Gumões (alí babá e os quarenta ladrões), Bixiga (na rua Major, na casa do Nicola) e Cantareira, e Vila Esperança e Morro do Piolho…

Não posso ficar nem mais um minuto com você
Sinto muito amor, mas não pode ser
Moro em Jaçanã,
Se eu perder esse trem
Que sai agora as onze horas
Só amanhã de manhã.

Nascido na São Paulo, o samba mais famoso de Adoniran Barbosa só vai crescer é nas ruas cariocas. O sucesso de Trem das Onze (canção conhecida por 10 entre 10 botequeiros) foi regravada pelo conjunto musical Demônios da Garoa – grupo também paulistano, que criou o nome a partir do apelido da cidade de São Paulo, a “terra da garoa”. Apesar das minguas que recebia pelo sucesso de sua canção, Adoniran Barbosa via seu samba cair na boca e na graça do povo brasileiro. Além de Trem das Onze, o povo também ficou conhecendo um dos sambas mais tristes e mais belos de Adoniran: Saudosa Maloca.

Só se conformemos quando o Joca falou:
“Deus dá o frio conforme o cobertor”
E hoje nóis pega a páia nas grama do jardim
E prá esquecê nóis cantemos assim:
Saudosa maloca, maloca querida,
Que dim donde nóis passemos dias feliz de nossa vida

O POETA DO POVO

Adoniran volta aos rumos da atuação, agora com o personagem Charutinho no programa radiofônico de humor “Histórias das Malocas” no ano de mil novecentos e cinquenta e cinco. Mas depois que provou do sabor da composição, Adoniran não mais a perdeu de vista. Mesmo mantendo seu personagem no horário nobre da rádio por mais quatorze anos, a composição alimentava Adoniran e o povo brasileiro, em especial o paulistano de classe baixa que finalmente se identificava com um compositor.

Apesar dos frutos gloriosos que suas canções colhiam por todo o Brasil, o destino de Adoniran não foi muito diferente de tantos outros intérpretes do rádio que experimentaram o gosto da fama, mas que perambulavam pelas oscilações de oportunidade, pelos salários instáveis e pelo reconhecimento meteórico – resultando drasticamente no ostracismo. Alegam os entendidos que as canções de Adoniran eram barradas pelas rádios devido ao seu caráter coloquial, aos diversos erros gramaticais (propositais, diga-se) e às temáticas simples – tracejando a história de vida das pessoas humildes.

Músicas conhecidas como Tiro ao Álvaro e Samba do Arnesto estão entre as mais conhecidas hoje, mas são também símbolos do ‘português incorreto’, partes da brincadeira poética de Adoniran.

Em setenta e três é consagrado como sambista, e a partir deste momento especial passa a fazer parte da legendária raça dos sambistas nacionais. Gravou seu primeiro disco – que leva o seu pseudônimo como título, Adoniran Barbosa – no mesmo ano. Interpretou suas canções na rádio e conjuntamente com outros cantores famosos (como os épicos sucessos na companhia de Elis Regina, em setenta e oito), participou de produções do cinema nacional ao lado do inesquecível Mazaroppi. Atuou no sucesso Mulheres de Areia (produção da já extinta TV Tupi) e no filme O Cangaceiro, de Lima Barreto.

No ano de mil novecentos e oitenta Adoniran reuniu outros músicos e intérpretes brasileiros para juntar-se a ele em uma homenagem aos seus setenta anos de vida como João Rubinato e quarenta anos de carreira como Adoniran Barbosa. Ao seu lado postaram-se figuras como Djavan, Clara Nunes, Gonzaguinha, mais uma vez a amiga Elis Regina, além de outros convidados ilustres.

A MARIPOSA

João Rubinato/Adoniran Barbosa casou-se duas vezes em toda a sua vida. Seu primeiro casamento não resistiu ao seu emprego instável e aos seus encantos pela boêmia, mas o segundo durou para o restante que lhe coube: Matilde. A esposa compreende a vida incerta de seu sambista, e ao seu lado, ajuda-o a superar os momentos difíceis (que não foram poucos) durante suas vidas. Matilde foi parceira e companheira de Adoniran até mesmo em seu ofício mais primoroso – a música. Parceiros em composições como Pra que Chorar¿ e A Garoa Vem Descendo.

São várias as historietas que vivenciaram Matilde e Adoniran. Em uma de suas mais famosas passagens, Adoniran pega o caminho de casa completamente embriagado e perde a chave. Passa então a berrar para acordar Matilde, visivelmente aborrecida. O dia seguinte seguiu-se em discussão, mas após o incidente Adoniran compôs Joga a Chave para aliviar as tensões do episódio – ou como comumente fazia, para dar risada da desgraça.

O jeito como Adoniran tratou as mulheres foi sempre de uma sensibilidade aguçada: retratava suas histórias de vida como outrora submissas, algumas vezes amantes, quase sempre fugidas e cansadas de trabalhar por seus maridos. Iracema, jovem de sua bela canção homônima, foi uma personagem que Adoniran nem conheceu. Através de uma notícia no jornal, o compositor criou um samba que mistura toda a saudade e a delicadeza suave e triste da perda de uma jovem vida.

SAUDOSO MOLEQUE

Seus últimos momentos de vida foram duros, mas Adoniran não era nem um pouco mole – conviveu com a saúde sendo dilacerada por um enfisema pulmonar, pela consequente e impensável ideia de abandonar a vida boêmia, pela escassez de composições… Em seus últimos anos de vida passa a criar e recriar objetos de metal e de lata, madeira e ferro velho. Recriando um universo para si só, manteve o humor, que sempre foi (e por sempre será) sua característica mais marcante. Em mil novecentos e oitenta e dois a voz rouca do samba paulista cala-se para sempre, com então completos setenta e dois anos.

A figura do sambista é imortal no imaginário e na cultura nacional popular. Ao provar a todos que era possível extrair poesia do cotidiano cinzento e difícil da classe baixa da metrópole paulista, João Rubinato reinventou o samba e construiu uma maloca de poesia e alegria, para sempre saudosa nos corações dos sambistas e dos apreciadores do ritmo. Adoniran Barbosa ensinou aos brasileiros e ao samba que rir da desgraça faz parte de uma raça como a nossa – conhecida pelos problemas, porém reconhecida pela alegria.

SINFONIA ROUCA NA SELVA DE PEDRAS, pelo viés de Nathália Costa

nathaliacosta@revistaovies.com

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Um comentário sobre “LATINOS: SINFONIA ROUCA NA SELVA DE PEDRAS

  1. Muito bom Nathália, senti falta do bexiga, não lembro qual foi a relação de Adoniram com o pessoal do bairro na época. mas tá linda tua matéria.
    bjs. Vanius

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