CRÔNICA DA MORTE ANUNCIADA

Quem percorre as ruas de Cachoeira do Sul, cidade interiorana da região meso-central do Rio Grande do Sul, topa, vez ou outra, com cartazes simples em folha de ofício colados nas paredes dos locais mais pontuais e tradicionais da cidade. À primeira vista o visitante poderá estranhar o costume, mas perguntar aos moradores pode pouco esclarecer. A verdade é que, para aqueles que moram na cidade, não há nada de diferente nos cartazes – eles estão ali, parte integrante da cultura cotidiana cachoeirense.

Ninguém sabe como o costume começou, ao certo. Entre os mais antigos proprietários de funerárias locais a dúvida persiste. Informações desencontradas dão conta de duas ou três funerárias que podem ser as mais antigas da cidade. O Arquivo Histórico também dá poucas pistas sobre o caso. Nota-se que, seja como for, o hábito ultrapassa gerações. E, na verdade, a pouca informação sobre a tradição provém também da naturalidade como ela é vista pelos habitantes de Cachoeira.  Afinal, se os cartazes estão ali todos os dias, colado nas paredes, quem há de perceber algo de especial neles?

Seu Milton, da Funerária Madre Tereza, percebeu. Até porque os cartazes fazem parte de seu cotidiano. Diariamente é ele quem atende as famílias que, quase sempre, chegam a sua funerária por motivos pouco satisfatórios. Quando Seu Milton decidiu sair de férias, encontrou nas paredes medievais de Toledo, cidade espanhola de 78 mil habitantes, uma semelhança com a sua Cachoeira – com pouco mais de 80 mil. Um amigo que viajava junto foi quem percebeu e mostrou a Milton os papéis, igualmente simples, brancos, com apenas letras pretas e em tamanho grande, colados nas paredes da cidade espanhola. Estava ali, fincado no Antigo Continente, um elo com a cidade gaúcha de onde haviam saído. As “participações de falecimento” (talvez por lá elas tenham outro nome) são tão comuns aos habitantes de Cachoeira do Sul, que nem lhes ocorre se perguntar quando e como o  costume de colocá-las na parede iniciou.

Cachoeira do Sul costumava ser o “Império do Arroz”, e às margens do rio Jacuí formou-se uma cidade inteira, que há algumas décadas atrás, concentrava a produção de arroz nacional. Anos mais tarde, a cidade sobrevive em espaço mais modesto, com cerca de oitenta mil habitantes e com pouco daquilo que um dia foi um império de arroz. A Princesa do Jacuí, como outrora conhecida, reforça diariamente um costume que atravessa décadas, senão séculos. Os moradores mais antigos ainda vivos fazem força na memória para lembrar de uma possível origem para o costume. Apesar do esforço, a maioria deles se lembra dos cartazes desde a infância.

A chamada “Participação de falecimento” ou “Convite de enterro” é um cartaz simples, apenas uma folha de ofício confeccionada pelas funerárias locais. Mas na cidade o costume leva as famílias a tomarem, como primeira providência depois do falecimento de alguém, uma rápida busca pelo serviço de impressão do “convite”.

Todas as funerárias locais oferecem, já a partir do “pacote básico” de funeral, o serviço de confecção e colagem dos cartazes pela cidade. Nomes do falecido e dos familiares que convidam para o velório, local e hora do funeral – Informações básicas que integram a mensagem disposta nas paredes da cidade.Com fita adesiva, muitas vezes são os próprios donos das funerárias que saem, assim que acionados pelas famílias, colando os convites em pontos estratégicos da cidade: antigo Café Freeza, Imobiliária Rodrigues, Padaria do Comércio, Clube Comercial, Rua Sete de Setembro e Rua Júlio, muro da galeteria Querência, na Doce De Leite (antiga sorveteria Damasco), na churrascaria Urca, no antigo Bar América, nas antigas Rodoviária e Ferroviária e nas portas das igrejas católicas.

Apesar de não existir um registro formal que comprove há quanto tempo existe o hábito das “participações de falecimento”, é consenso entre os moradores mais antigos que este costume anteceda a década de trinta do século passado. Júlio César Caspani, prefeito de Cachoeira do Sul entre os anos de 67 e 82, lembra-se que o hábito existe há mais de 30 anos – porém, acredita que seja ainda mais antigo. Na lembrança de Caspani, a primeira foi a funerária Hausen, com o pai Oldemar Hausen. O ex-prefeito recorda, até mesmo, que Oldemar costumava ler em voz alta, aos que passavam, o convite de enterro. Anos mais tarde, a funerária Hausen foi vendida, e o dono passou a ser José Albino Schuck.

João Alves (“bota aí que eu tenho 75, que eu ainda não fiz 76 anos”) lembra-se de ver os convites colados nos postes e nas paredes desde os seus oito anos de idade. Recorda também que a Funerária Hausen costumava colar em um quadrinho as suas “participações de falecimento” – para depois distribuir em toda a cidade. Seu João também lembra que é obrigação das funerárias, logo após o enterro do memorado, retirar todos os cartazes que foram colados antes. “Sempre colaram em pontos estratégicos. Antes era até os trilhos (onde localizava-se a antiga Ferroviária), depois até o Trevisan (ponto central da cidade), depois até o Hotel União (quase na saída da cidade). Colavam também nas portas das Igrejas!”

Alguns não conseguem se lembrar de uma funerária mais antiga que confeccionasse os convites de enterro, mas é de comum acordo que ela, em algum momento, já existiu.

Os moradores Ariovaldo Alves (69) e Saul da Silva (80) lembram que além dos convites de enterro, a cidade também escutava o sino da igreja tocar. “Agora isso é só com os alemães”, referem-se à comunidade luterana da cidade, que ainda cultiva o hábito de tocar o sino quando um de seus membros falece.

O costume, que parece não ter data de início, quase foi extinto no ano de 2006. Ignorando a tradição popular, a Câmara de Vereadores da cidade decidiu por diminuir a poluição visual nas ruas. Dentro de “poluição visual”, encaixavam-se cartazes em excesso, panfletos, colagens diversas – e até mesmo as “participações de falecimento”. Os vereadores argumentavam que o “tira e bota” de cartazes acabava por estragar a pintura dos prédios, além de poluir visualmente a cidade.

Mas, hábito tão popular não terminaria assim, na base do canetaço político. A população não demorou para se manifestar contra a medida. Ani Frey, uma das vereadoras da época, conta que recebia telefonemas lhe pedindo para manter as “participações” coladas nas ruas. Foi ela quem encabeçou o movimento contra a proibição dos cartazes. Além das ligações, moradores e donos de empreendimentos locais declararam na época que cederiam os espaços de suas paredes para a colagem dos “convites”.

A intenção de proibir a colagem nas paredes foi superada, e a legislação só passou a proibir as colagens em postes de luz da cidade. A vereadora Ani Frey comemorou a decisão à favor da tradição da cidade “um costume como o das ‘participações de falecimento’ faz parte da comunicação local da comunidade, já está implantado na rotina das pessoas”.

Acredita-se que algumas pessoas prefiram as “participações de falecimento” coladas pela cidade não apenas em consequência do costume, mas também pelo baixo custo delas. Qualquer máquina fotocopiadora é capaz de imprimi-las a custo baixíssimo, o que barateia o processo para as funerárias e, consequentemente, para as famílias. Além disso, a família pode escolher os locais onde serão coladas as “participações”.

Érico Gomes, há mais de vinte anos no ofício e dono da funerária Cachoeirense (a mais antiga da cidade em funcionamento), lembra que o preço alto cobrado pelos jornais faz com que as famílias optem pelas “participações”. Além de economizar mais de cem reais, muitos moradores, certamente, olharão primeiro os cartazes espalhados pela cidade antes de olhar nos jornais. “É uma forma de interagir com a comunidade sem pagar muito para sair no jornal”, como diz Seu Milton.

As pessoas que chegam às funerárias normalmente pedem as “participações de falecimento”. São raros os casos de familiares que não desejam a “participação”, e nestes casos o normal é que mais nenhum recurso seja usado – tais como rádio ou jornal impresso.

“Lembro que desde a minha infância, vemos as ‘participações de falecimento’ coladas pelas ruas”. Érico descreve que quando ele começou em Cachoeira do Sul, as “participações” eram feitas nas tipografias, durante a madrugada. Contava-se letra por letra, e as máquinas iam confeccionando. Depois de prontas, ainda eram revisadas – caso precisassem ser alteradas antes de ir para a rua. Quando estavam erradas, com letras trocadas ou faltando, precisavam ser refeitas e mais uma vez confeccionadas e impressas “na mão”. A tipografia que confeccionava na época de Seu Érico era a Tipografia do Comércio, que se localizava bem ao centro da cidade. Depois que a Tipografia do Comércio fechou, ficou mais complicado confeccionar as “participações” e por algum tempo o povo ficou sem elas – até que o negócio foi retomado pela Tipografia Lopes. Depois vieram as gráficas, massificando um pouco mais o processo. Mesmo assim, Seu Milton diz que o tempo ainda era bem grande entre o pedido de impressão e a entrega.

“Hoje é uma facilidade“, comemora Seu Érico. Atualmente as “participações” são feitas no computador. Os donos de funerária têm, inclusive, modelos prontos da “participação”. Com poucas alterações e em questão de segundos a “participação” já está  impressa.

Conforme os tempos vão passando, algumas coisas vão e outras ficam. Entre a rapidez e a facilidade com que a rotina perpassa-nos, é curioso e ao mesmo tempo interessante, pensar em como uma comunidade estabelece, desenvolve e mantêm seus próprios costumes, seus hábitos legítimos. “Eu não me lembro de ver em outro lugar o costume igual ao nosso. Tenho compadres que têm funerárias, e nenhum deles faz as ‘participações de falecimento’” diz Seu Érico.

Seu Lídio Gehrke mora há mais de 40 anos na cidade. ”Eu acho que é um costume muito interessante que não deveria acabar nunca. Eu moro há muito tempo no mesmo lugar, vou todos os dias na Padaria do Comércio e depois vou atrás dos convites de enterro para saber quem faleceu. Acho muito bom, pois gosto de saber. Vai que um amigo meu falece, preciso saber…”

É correto afirmarmos que as novas gerações da cidade são capazes de manter a tradição? Ou permanecemos com a ideia taxativa de que os jovens tendem mais a inovar do que a reproduzir um costume? Entre todos estes fatos e argumentos, podemos compreender que é, de certa forma, impossível prever com certeza o que será da tradição. Mesmo que os tempos mudem, e que a primeira coisa que as pessoas façam ao acordar seja abrir a janela do e-mail antes de abrir a janela da própria casa, um hábito, ou uma tradição, é sempre uma característica da sociedade em que está inserido. Pode ser que as novas gerações de Cachoeira do Sul utilizem outras tecnologias para se informar, ou mesmo para se comunicar, mas é como os exemplos mostram: mais importante do que manter a tradição, a interação das comunidades é aquilo que as torna tão coerentes e – hoje em dia – tão peculiares.

CRÔNICA DA MORTE ANUNCIADA, pelo viés de João Victor Moura e Nathália Costa

Desenhos de Rafael Balbueno

joaovictormoura@revistaovies.com

nathaliacosta@revistaovies.com

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