NOS MOLDES DAS RUAS

A arte de rua vem sendo progressivamente aceita em diferentes meios – das galerias de arte à publicidade de grandes corporações. Em um processo natural para seus praticantes, a busca por técnicas distintas do grafite “tradicional” segue causando polêmica quando as experimentações acontecem em seu locus por excelência: as paredes da cidade. Riqueza de manifestações para uns, vandalismo para outros, o fato é que as ruas de Santa Maria são povoadas pelas mais distintas expressões, dentre as quais o estêncil – que utiliza moldes vazados para gravar marcas com spray – chama atenção por suas peculiaridades.

Che Guevara, Seu Madruga, Malcolm X, Hommer Simpson: basta caminhar pela cidade de Santa Maria para topar com estes ícones da cultura popular em gravuras de uma só cor (normalmente o preto) distribuídas amplamente pelo mobiliário urbano. Por vezes, as gravuras que se repetem pela cidade contêm palavras de ordem ou símbolos conhecidos: a imagem de um boneco jogando a suástica nazista no lixo é tão expressiva quanto um Che Guevara com aspecto aborrecido advertindo eu não sou mercadoria.

Essas imagens e muitas outras que podem ser encontradas em diferentes locais da cidade são gravadas por meio de uma técnica específica: o estêncil (do inglês stencil), que utiliza moldes previamente recortados para deixar com tinta spray a marca desejada. Essa prática se apropria da arquitetura da cidade, juntamente com outras formas de expressão urbanas – grafites, adesivos, colagens, tags (“assinaturas”) e pichações. A própria denominação dessas expressões como arte de rua não é aceita por todos, devido ao grande número de controvérsias que começam pela violação da propriedade alheia e vão até o questionamento do valor estético de rabiscos inteligíveis apenas para alguns, como é o caso das tags.

Nos últimos anos, alguns interventores urbanos obtiveram projeção internacional e ostentam de forma irrevogável o status de artistas de rua. O londrino sem rosto Banksy, por exemplo, é célebre em todo o mundo por suas obras de conteúdo ácido e seus estênceis executados em locais irreverentes, como o contradito muro entre Israel e Palestina. Contudo, o reconhecimento é mais uma exceção do que uma regra. A maioria dos adeptos da arte de rua tem na clandestinidade seu berço e seu refúgio.

O estêncil em Santa Maria

As manifestações urbanas começaram a aparecer em Santa Maria entre o fim dos anos 90 e o início dos anos 2000, mais ou menos quando outros elementos relacionados a esta cultura, como o skate e o BMX (bicicleta), já estavam disseminados na cidade. Rafael*, um dos primeiros a utilizar os muros da cidade como suporte, conta que o marco inicial não é algo bem delineado. “O que começou primeiro aqui foi o grafite. Depois, à medida que o pessoal ia se informando, buscando outras técnicas, as variações foram surgindo. Aí, vieram os adesivos, o estêncil”.

Nessa fase, surgiram diversas crews – como os grafiteiros e pichadores chamam seus grupos –, algumas das quais são atuantes até hoje. Entre as crews pioneiras, o grupo Latinos foi um dos primeiros e mais ativos na prática do estêncil. “Começamos a fazer estêncil porque era mais rápido, e portanto menos arriscado, e também esteticamente mais agradável. Além disso, as formas podem ser trabalhadas com calma”, conta Bueno*, Latinos desde o princípio.

A Latinos é, na definição de Bueno, uma família. Nasceu das diversas pretensões ligadas à arte que seus membros tinham em comum – a arte de rua entre elas. Mais do que isso, as manifestações que foram parar na rua são o resultado da insatisfação com os valores americanizados que viam na sociedade. “O negócio é latino, sangue quente, valorização do que é daqui. Por isso a utilização de ícones como o Seu Madruga, o Che Guevara”.

Uma ampla gama de estênceis da Latinos resistiu ao tempo. Eles ainda podem ser vistos pelas ruas de Santa Maria, muitos dos quais já imbricados à paisagem da cidade. Um legado respeitável ou uma degradação persistente, dependendo do ponto de vista. Hoje, a maioria dos membros do grupo está envolvida em projetos pessoais e tem pouco tempo para as ruas. O que não significa que a inspiração ou a inquietação tenham diminuído.

Uma parede lisa ainda instiga Matheus*, outro dos Latinos. Ele hoje estuda publicidade e pratica serigrafia em um ateliê nos fundos da casa afastada do centro. Lá, entre pinturas, pôsteres, latas, tintas e o material próprio para serigrafia, tem uma coleção de cadernos com desenhos antigos e recordações dos “rolês”, como algumas das primeiras máscaras recortadas em placas de raio-x. Hoje, dedica mais tempo ao design e à serigrafia, um processo que tem o estêncil em suas origens. “Eu gosto disso. Envolve tudo, me permite várias possibilidades, experiências. Acho que na serigrafia, cada um tem o seu próprio processo”, diz Matheus, enquanto instala uma tela recém secada no aparelho de impressão. Com o estêncil, explica, foi a mesma coisa, até aperfeiçoar a técnica e chegar ao raio-x como molde ideal.

Atualmente, um dos principais grupos a povoar com estênceis as ruas de Santa Maria é um movimento social de juventude que prefere não se identificar. O estudante Flávio*, um dos membros do movimento, explica que a utilização da técnica surge em um contexto maior, de agitação e propaganda. “Basicamente, o objetivo é causar uma sensação de estranhamento para as pessoas que veem. Desnaturalizar, de certa forma, o que na sociedade está posto como natural, inevitável”.

O conceito de agitação e propaganda surgiu na União Soviética, como uma forma de difundir as bandeiras da Revolução Russa e angariar o apoio do povo. Como grande parcela da população era analfabeta, a arte era uma forma de atingir as pessoas de uma maneira direta e eficaz.

Seja por meio de panfletos, manifestações de rua, intervenções artísticas de qualquer tipo e até iniciativas mais sutis como a conversa, a finalidade da agitação e propaganda é provocar a reflexão das classes populares e politizar as massas. Assim, apesar da proibição e do problema da repressão, a técnica do estêncil é bastante eficaz por seu caráter conciso e impactante.

Além disso, Flávio destaca que a arte de rua serve também para gerar um debate sobre os meios de produção cultural. “A maioria dos artistas no Brasil não debate uma arte engajada, não se tem uma arte política. Assim, não é só um debate político: é também um debate cultural”.

O movimento social de que Flávio faz parte acredita também que a prática da arte de rua sirva como um meio de comunicação alternativo, para dar voz à parte da sociedade que não costuma ter espaço nos meios formais. Por esse motivo, realizam oficinas de estêncil com outros grupos e movimentos, para “difundir a técnica e permitir que mais gente possa, com ela, se expressar”.

A técnica

Embora a prática do estêncil como manifestação urbana e no contexto da arte de rua seja relativamente recente, a técnica de gravar imagens com o uso de moldes vazados não é exatamente nova. Tristan Manco, artista e estudioso do assunto, traça em seu livro Stencil Graffiti um histórico da prática ao redor do mundo. Segundo ele, há evidências de que o estêncil – ou um parente próximo seu – possa ser uma das formas mais antigas de expressão artística. Existem marcas de mais de 22 mil anos em que teria sido utilizada a tinta soprada ao redor da mão para gravar a sua impressão invertida nas paredes das cavernas. Essas gravuras seriam as precursoras do estêncil.

A prática de gravar imagens por meio de moldes também era comum na ornamentação de imagens de Buda, na China, na decoração das paredes internas de pirâmides egípcias e na Europa, a partir da Idade Média, no adorno de paredes, muros e igrejas. Já no século XX, serviu como base para o desenvolvimento de outras técnicas mais sofisticadas. Na França, o pochoir utilizava máscaras para realizar pinturas à mão com guache, o que dava às ilustrações o aspecto de aquarela ou pintura a óleo.

Na década de 30, surge a técnica da serigrafia, um processo mais elaborado que traz a possibilidade de reproduzir peças artísticas em grande quantidade. A praticidade que a pintura por meio de máscaras propicia, ao mesmo tempo em que garante a uniformidade das reproduções em série, faz com que o estêncil seja popularmente utilizado até hoje como técnica de decoração de ambientes, móveis, papeis de parede e para a pintura de placas de sinalização, entre muitas outras.

Nas ruas


Os primeiros registros da utilização do estêncil como forma de expressão nas ruas são oriundos do século XX. Durante a Segunda Guerra Mundial, os fascistas na Itália utilizavam a técnica para disseminar imagens de Mussolini no espaço público. A maior parte das expressões, contudo, costumava partir de pessoas que protestavam contra o sistema vigente sem ter acesso aos meios de comunicação formais. Foi assim no caso dos Bascos, nos anos 70, e em diversos momentos na América Latina, em que o estêncil serviu como uma maneira alternativa de chamar a atenção da população.

A contemporânea arte de rua cresceu em meados dos anos 90 nas grandes metrópoles, caracterizou-se pela incorporação de técnicas e estilos diversos ao grafite “tradicional”, este originado nos subúrbios da Nova Iorque dos anos 60 e 70. As novas expressões, além de utilizarem cartazes, adesivos, pincéis, estênceis e tinta spray, fazem uso de técnicas de marketing e publicidade para atingir os transeuntes. Resgatam, ainda, elementos da Pop art, como as experimentações com a cultura de massa e a reprodução em grande escala feitas por Andy Warhol.

O autor Tristan Manco descreve as manifestações de rua como uma resposta barata e acessível ao crescimento das comunicações de massa de alta tecnologia – inacessíveis à maior parte da população.

Na arquitetura urbana, palavras e ícones fazem parte da composição do ambiente, chamam a atenção e têm um caráter autoritário – basta pensar na mensagem “Pare” das placas de trânsito. A utilização de ícones da cultura popular – ou da luta social – e palavras de ordem em estênceis se aproveita disso para chamar a atenção dos transeuntes e ainda tirar proveito de seu caráter imperativo. Aí reside, também, a proximidade entre a arte do estêncil e a cultura punk: além da assimilação do lema “Faça você mesmo”, comum à arte de rua em geral, ocorre a apropriação e utilização de símbolos autoritários para subvertê-los em seu conteúdo.

O estêncil e a arte de rua em geral, muitas vezes, servem de inspiração e instrumento para iniciativas diversas. Em atividades do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (Pibid), por exemplo, estudantes do curso de História da UFSM realizam oficinas de estêncil com alunos do colégio estadual Padre Rômulo Zanchi. Para trabalhar a temática da democracia em atividades extraclasse e tentar se aproximar mais da realidade e dos interesses dos alunos, são oferecidas oficinas como teatro e arte de rua.

“A ideia é discutir as questões relacionadas ao conteúdo de aula por meios diferentes do ensino formal, abordando a função do sujeito histórico na intervenção política, social e cultural”, relata Rodrigo Suñe de Oliveira, um dos acadêmicos do projeto. “A utilização de elementos da arte não formal e que normalmente é coibida, como o estêncil, permite trabalhar a livre expressão na prática e colocar a questão: até que ponto existe democracia de fato na comunicação humana?”

O objetivo do projeto é trabalhar à margem da educação tradicional e construir com os alunos material de suporte ao livro didático que esteja mais conectado à realidade deles. Aí entra a prática do estêncil e a criação de fanzines por exemplo. Se as manifestações urbanas não são nem de longe uma unanimidade e abalam a neutralidade das ruas, na escola Rodrigo destaca que a maior barreira é romper a lógica formal já estabelecida. “Há uma abertura para esses projetos, mas a formação condicionada pela sociedade e a apatia que se encontra na juventude de hoje que dificultam um pouco”.

Artistas que não são exatamente “de rua” – no rigor do termo – mas que buscam alternativas às formas artísticas tradicionais e legitimadas também veem na adoção de práticas como o estêncil uma possibilidade nova. É o caso do coletivo (Des)Esperar, formado por estudantes do curso de Artes Visuais da UFSM. As ações do grupo ocorrem em locais de circulação de público e se caracterizam por utilizarem materiais de baixo custo.

A intervenção Santa Maria da Boca da Xícara, realizada em maio de 2010, elencou e percorreu os “quatro cantos” da cidade, gravando em estêncil no tecido – representando o líquido que escorria da xícara – as paisagens santa-marienses. As gravuras foram feitas em locais públicos, em meio aos transeuntes. “Escolhemos os quatro cantos da cidade de uma forma que acreditamos que represente Santa Maria e sua diversidade. A aplicação do estêncil, ao vivo, foi interessante pela praticidade, além de chamar a atenção das pessoas devido ao uso do spray”, explica Fábio Purper Machado, um dos membros do (Des)Esperar.

As controvérsias

As várias formas de manifestação urbana guardam entre si diferenças técnicas, estéticas e práticas. Enquanto o objetivo do pixo – que subverte até o termo, com x mesmo – é espalhar a marca da crew de forma compulsiva pela urbe, com especial preferência pelos “picos” difíceis ou arriscados, o estêncil costuma ter seu foco na mensagem. Apesar das particularidades, ao fazer uso indiscriminado de paredes, muros e itens da arquitetura urbana, todas essas expressões trazem inerente a elas a contestação a um dos valores mais básicos da sociedade: a propriedade privada.

No momento, tramita na Câmara de Vereadores de Santa Maria um projeto de lei municipal que pretende instituir na cidade um Programa Antipichação. Para o autor do projeto, o vereador João Carlos Maciel, a violação da propriedade alheia é “uma afronta à sociedade”. O vereador acredita que esse tipo de atitude possa ser visto como uma forma de expressão, mas não concorda com o uso de paredes públicas ou particulares sem autorização.

O projeto que toma como base leis municipais de mesma finalidade instaladas em outras cidades, como a de São Paulo, pretende coibir a pichação – termo que abrange no texto todas as manifestações ilegais – por meio de multa, prestação de serviço para limpar muros pichados e da participação da família nesse processo.

João Carlos Maciel acredita que a arte de rua é impositiva. “A democracia é uma soma de pensamentos que permite debates, confrontações, e não de imposições. Todos podem se manifestar no espaço público, desde que não prejudiquemeste espaço”, afirma o vereador.

O projeto de lei, portanto, pretende inibir essa forma de “vandalismo“ e reduzir a “poluição visual” na cidade. “Existem outras formas de manifestação artística. Mas eu acho que deveriam ser criados, então, espaços públicos para isso. Para que o jovem possa se manifestar, ter seu lugar. É até uma contradição que a cidade-cultura, com sete universidades, não tenha um espaço deliberado para a juventude, para suas ações e integração. Essa pichação, por exemplo, talvez seja até a falta disso”. Apesar da perceptível preocupação do membro da casa legislativa municipal, atualmente não existe na Câmara nenhum projeto ou iniciativa voltado para a criação de espaços legais para a arte de rua em Santa Maria.

* Para preservar a identidade dos entrevistados, foi utilizado apenas seus primeiros nomes.

NOS MOLDES DAS RUAS, pelo viés de Tiago Miotto

tiagosmiotto@revistaovies.com

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