LATINOS: O HOMEM QUE INVENTOU O 20 DE NOVEMBRO

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I

Dei ô de casa na frente

Bati na porta, não abria.

Dei a volta pelos fundos, entrei na casa, vazia.

II

Ô de casa!

Não tem ninguém em casa.

Nem casa tem, só saudade.

Talvez apenas um passo na vida do garoto fosse pouco para o mundo que vislumbrava sobre cerros e campos infinitos de uma Campanha gaúcha do início da segunda metade do século XX. Os negros e os bailes, a vida que se não fosse o porvir, do Touro-Passo não teria mais notícia o Brasil. Era negro, o menino, filho de pais que não muito tinham. Mas a sabedoria do estudo era dom do pai, que, em esforço, de um galpão, uma sala de aula fez surgir.  Amélia de Oliveira Galeano tem culpa em ter sido a primeira professora do menino que viria a se tornar poeta lido em propaganda na televisão.

Rosário do Sul, um emaranhado de casas antigas com as eiras nas beiras das calçadas era o primeiro passo para sair do Touro-Passo, terra incrustada sobre uma cadeia de cerros que nivelados formam uma parede no horizonte oeste da cidade. Nascido no inverno de agosto de 1941, Oliveira Silveira não podia parar. Estudar era o objetivo do guri que em poesia, anos depois, lembraria das negras, dos trabalhadores das grandes fazendas que ainda resguardavam montantes de negros libertos ou filhos de libertos, da vida, da força e da África não esquecida.

O segundo passo, mesmo com a limitação econômica, foi dado. Como escreveu o amigo-irmão Alsom Pereira da Silva, que futuramente viria a ser prefeito de Rosário, no prefácio do livro “Antologia Poética de Oliveira Silveira”: “terminado o curso ginasial, deveríamos parar de estudar, pois não havia curso de segundo grau em Rosário, ou seguir outro caminho”.

Longes vozes chamaram

Na voz do vento leste

Nas correntes marinhas

Nas veias sanguíneas

No tantã dos trovões

E meu coração tantã

Respondeu

– Aqui estou

Em Porto Alegre os dois foram estudar no Julinho. Julinho, em Porto Alegre, trata-se do grande Colégio Estadual Júlio de Castilhos. Pulando da Pensão Pelotense, na esquina da Rua Avaí com a Lima e Silva, para a JUC (Juventude Universitária Católica), onde conseguiram vagas, os dois foram dando um jeito de se virar. Então Oliveira consegue entrar para o curso de Letras da UFRGS, casar-se com Julieta, filha de um professor do “Julinho”. E assim nasceu Naiara. Entretanto, Oliveira Silveira ainda faria história pela década de 1970 em Porto Alegre.

Para ele, o 13 de maio, data em que a Princesa Isabel assinou a abolição da escravatura, não representava a data máxima do povo negro brasileiro. O 13 representa apenas a lei, pois a liberdade real não ocorreu. Despejaram os negros pelas cidades, não deram trabalho, não ofereceram nada. Os negros partiram para um futuro incerto após serem abolidos. Alsom, o amigo, afirma que desde os tempos do JUC Oliveira já mirabolava tais idéias.

Em 1968 Oliveira lança seu primeiro livro intitulado “Germinou”. Em 1970, confeccionaria “Banzo, Saudade Negra”. Foi então em 1971, após criado o Grupo Palmares, que pesquisava a cultura negra e militava pela raça no Brasil, que Oliveira Silveira, navegando em um navio negreiro mental, fugindo de um feitor qualquer, embrenhando-se na mata à procura de um Quilombo de raciocínio, apresentara a proposta aos companheiros: a data que realmente representa a força, a garra, a labuta e a coragem do povo negro não poderia identificar-se melhor com o dia em que Zumbi, o Rei dos quilombos, morrera: 20 de novembro.

O Grupo Palmares ainda realizaria atos em plena ditadura militar para evocar ícones da cultura negra como Luiz Gama e José do Patrocínio. O poeta atuou em grupos como Razão Negra (entre 1970 e 1980), Tição, Semba Arte Negra e Associação Negra de Cultura.

Entrava em discussão a desconstrução do mito da liberdade concedida, da história sendo contada e hierarquizada pelos historiadores burgueses. Nos livros, os negros eram escravos. Para o Grupo Palmares e para todos aqueles que ouviram e contaram as histórias de seus pais, avós e bisavós vindos da grande África, o negro era exemplo de garra e heroísmo. Com as lutas de vários grupos surgidos nas décadas de 1960, 1970 e 1980, iniciava a aceitação de Zumbi pelos negros brasileiros como seu principal herói. Já em 1971, Porto Alegre comemorava pela primeira vez o 20 de novembro.

Sete anos depois, com a fundação do Movimento Negro Unificado (MNU), nas escadarias do Teatro Municipal de São Paulo, a data fora oficializada e denominada de Dia Nacional da Consciência Negra, atualmente bem difundida pelo país.

Oliveira Silveira, além de ter publicado 10 livros, atuou como Conselheiro da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial durante dois anos do governo de Luís Inácio Lula da Silva. Recebeu menção honrosa da União Brasileira de Escritores pelo livro “Banzo, Saudade Negra”; medalha cidade de Porto Alegre concedida pelo Executivo Municipal em 1988; medalha Mérito Cruz e Sousa em Florianópolis e ainda foi o homenageado do II Congresso Brasileiro de Pesquisadores Negros, na Universidade Federal de São Carlos, São Paulo, entre outros.

Em entrevista para o Portal-Afro, Oliveira disse que “a literatura surgiu para mim ainda em Rosário do Sul, durante a infância, em meio a poesia popular, quadrinhas e versos de polca entoados durante os bailes campeiros. Ritmos típicos da região. É um momento especial, onde as mulheres tiram os homens para dançar e aí se cantam versos, o par diz uma quadrinha um para o outro. Também me lembro dos causos contados ao redor do fogareiro”.

Em 1958, um poema de Oliveira foi publicado em um jornal de Rosário. Começava a vida de um poeta.

A poesia de Oliveira Silveira, de início, transparece simples, quando o rápido olhar de leitor quer primeiro reconhecer o livro que tem em mãos. Ao passo que os olhos riscam as palavras simples e versos às vezes finitos de propósito, a poesia se torna densa e subjetiva. Os fins que não existem ficam martelando a mente em busca de explicações. O coração do negro velho que saudades a África deixou, a poesia com estilo gauchesco do início que lembra o velho pampa friorento das noites de Verissimo, e os atabaques e o sangue negro que jorra pelos livros de Oliveira, fazem de sua poesia uma vontade engatinhada de pertencer ao mundo sem a hierarquização e permissão de uns sobre outros, de raças sobre outras. Deixa o nêgo tocá, ia-iá:

Esses negros loucos batendo

Já com a cor de Exú-Bará nos dedos,

Couro contra couro,

Mas o couro do inhã é mais forte,

Lá vai se ronco de trovoada

E a terra vai rachar em fendas

– toque de Xangô

A filha Naiara, em entrevista à Secretaria da Justiça e do Desenvolvimento Social, exemplifica o pensamento do pai. “A importância do Dia da Consciência Negra vai além do tom da pele. É um jeito de ser, de viver e de entender a vida. Ter consciência de tudo isso nem sempre é um ato fácil em uma sociedade racista como a nossa. É muito difícil ser negro e assumir a negritude. É uma questão de auto-estima. Trezentos anos de escravidão dizendo que tu não és gente não poderia dar em outra coisa”.

O Dia da Consciência Negra veio exatamente para marcar uma tomada de consciência de quem nós somos, através do fortalecimento de nossa identidade”. [para ler toda a entrevista clique aqui]

Às 22 horas e 30 minutos de uma quinta-feira, no dia 1º de janeiro de 2009, morria, vítima de câncer, no hospital Ernesto Dornelles, em Porto Alegre, o poeta, professor, pesquisador e militante gaúcho, Oliveira Ferreira da Silveira, com 67 anos. O movimento negro perdia a força física e intelectual de um forte aliado. Mas o Brasil, ao mesmo tempo, como num pedido de perdão, já de hábito, começou a reconhecer o trabalho de Oliveira Silveira como um dos maiores poetas da poesia negra do país. Sua cidade natal expôs uma placa em frente a seu túmulo e a Caixa Econômica Federal, em propaganda comemorativa ao 20 de novembro de 2010, leu, ao som dos instrumentos negros trazidos da África que enriqueceram a música brasileira, o poema “Encontrei minhas origens”

PARA VER A PROPAGANDA, CLIQUE AQUI.

Encontrei minhas origens

Em velhos arquivos

Livros

Encontrei

Em malditos objetos

Troncos e guilhetas

Encontrei minhas origens

No leste

No mar em imundos tumbeiros

Encontrei

Em doces palavras

Cantos

Em furiosos tambores

Ritos

Encontrei minhas origens

Na cor da minha pele

Nos lanhos de minha alma

Em mim

Em minha gente escura

Em meus heróis altivos

Encontrei

Encontrei-as enfim

Me encontrei.

Ouça também o programa Palavra Falada, em que um dos livros comentados é “Oliveira da Silveira – Antologia Poética”. O Programa faz parte da programação da Rádio Universidade UFSM (800AM) e foi idealizado e coordenado por Paulo Roberto Araújo¹. Este programa teve a participação de Bibiano Girard.


 

LATINOS: O HOMEM QUE INVENTOU O 20 DE NOVEMBRO, pelo viés de Bibiano Girard e colaboração da jornalista Sátira Machado, que mantém o blogue Nós somos mídia.

1. Paulo Roberto Araújo é graduado em Comunicação Social, habilitação em Jornalismo pela Universidade Federal de Santa Maria (1978) e também em Medicina Veterinária pela mesma Universidade (1977). Atualmente é professor Adjunto 4, do Departamento de Ciências da Comunicação – Curso de Jornalismo – da Universidade Federal de Santa Maria, RS. Tem experiência na área de Comunicação, com ênfase em Jornalismo Literário, Contribuições da Entrevista de História Oral à Entrevista Jornalística, Memória e Radiojornalismo.
(Texto informado pelo autor)

bibianogirard@revistaovies.com

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