MEDIDAS ILUSÓRIAS: A HISTÓRIA

Em 1º de fevereiro de 2011, os deputados e senadores eleitos para o Congresso Nacional já iniciaram as atividades do novo mandato com a “pauta trancada” – ou seja, sem poder votar nenhuma nova proposta legislativa – por 11 das 24 medidas provisórias herdadas do governo Lula. Este instrumento, que surgiu para dar agilidade ao Poder Executivo na realização das metas do governo, suscita discussões há muito tempo e tem sua origem no autoritarismo dos decretos-leis criados nos obscuros períodos autoritários do Estado Novo e da Ditadura Militar.

A medida provisória permite ao presidente da república editar medidas com força de lei, que vigoram por tempo determinado e devem ser votadas pelo Congresso, o qual as aprova ou rejeita. Apesar de, teoricamente, proporcionar agilidade ao governo na execução de certos atos, a aceitação das medidas provisórias como um instrumento necessário não é unanimidade. A discussão acerca da necessidade do instrumento é baseada em dois pontos fundamentais: o desequilíbrio entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário e o abuso do poder eventualmente exercido pelo Poder Executivo.

Recentemente, duas medidas provisórias relacionadas às universidades federais têm causado polêmica no meio universitário: a MP 520, que cria uma controversa empresa pública de direito privado para gerir os hospitais universitários, e a MP 525, que banaliza a contratação de professores substitutos – os quais não podem realizar pesquisa e extensão, preceitos básicos da Universidade – e oficializa o que seria uma situação extraordinária como prática comum.

Por este motivo, a Seção Sindical dos Docentes da Universidade Federal de Santa Maria (SEDUFSM) realizou, em seu projeto Cultura na SEDUFSM, o debate “Medidas Provisórias ou Emergências Ditatoriais”, em que se discutiu sobre a linha tênue existente entre a justa necessidade desse instrumento e a possibilidade de práticas autoritárias que ele evoca.

A origem

No ordenamento jurídico, a possibilidade do presidente da república de editar medidas com força de lei e vigência imediata remonta à Constituição do Estado Novo, outorgada pelo então presidente Getúlio Vargas, em 1937. Cláudio Santos, assessor jurídico do Sindicato Nacional dos Docentes do Ensino Superior (ANDES-SN) e um dos debatedores, acredita que essa ligação com regimes autoritários ainda sobrevive na questão das MPs. “A primeira relação que a gente pode fazer na sua origem é associar esse poder excepcional que o presidente da república tem de legislar e apresentar um ato com força normativa, com força de lei desde o momento de sua publicação, à instauração de um regime de exceção ou de um regime não democrático”, afirma.

A Constituição de 37 trazia quatro possibilidades de expedição de decretos-leis, incluindo “decretos-leis autorizados pelo Parlamento, que fixa as respectivas condições e limites” (art. 12). Com o estabelecimento do regime ditatorial, todavia, o Parlamento Nacional não foi reunido durante o período, o que deixou o caminho propiciamente livre. Resultado: até 1946, foram expedidos nada menos do que 9.908¹ decretos-leis.

Em 1946, com a redemocratização da República, o instrumento foi excluído da Constituição do país e assim permaneceu até o Golpe Militar de 1964 e o início da nova ditadura. O Ato Institucional (AI) n.º 2, de 1965, reviveu o decreto-lei, que poderia ser expedido pelo Presidente da República para tratar de questões de segurança nacional – e, durante o recesso legislativo, quaisquer outras. À medida que os atos se sucediam, até o AI nº 4, as possibilidades do decreto-lei eram estendidas, primeiro às questões financeiras, depois a todas as matérias, em caso de recesso do Congresso Nacional, das Assembleias Legislativas e das Câmaras de Vereadores. Na Constituição de 1967, estabelecia-se que, caso os decretos-leis não fossem apreciados pelo Congresso Nacional em até sessenta dias, seriam aprovados – afinal, ficou implícito o provérbio ditatorial, quem cala consente. Em consequência, com a dissolução posterior do Congresso feita pelo Regime Militar, os decretos-leis tinham aprovação garantida.

Os decretos-leis permaneceram como parte do sistema jurídico do país até a redemocratização, em 1988. Para se ter uma ideia do quanto o instrumento foi útil aos interesses daqueles que comandavam o país com mãos de ferro, Cláudio Santos cita o número de decretos expedidos pelos governantes até a Constituição de 88: Castello Branco expediu 318 decretos-leis; Costa e Silva, 468; a junta militar, 264; Médici, 254; Geisel, 357; Figueiredo, 593; e Sarney, 209 decretos-leis.

Enfim, a democracia

Com a redemocratização do país, foi realizada a Assembleia Nacional Constituinte. A Constituição de 1988, resultante da Assembleia, passa a vigorar e exclui o dispositivo dos decretos-leis. Em seu lugar, cria um novo instrumento jurídico: a medida provisória. A principal novidade em relação às MPs foi a limitação do prazo de vigência. A MP, quando editada, passava a vigorar imediatamente e o Congresso tinha 30 dias para apreciá-la. Se isso não ocorresse, ao invés da aprovação tácita que ocorria com o decreto-lei, a medida provisória perdia a sua eficácia.

Outra novidade que as MPs traziam era a determinação de critérios para sua edição: o artigo 62 da nova Constituição determinava que apenas em situações de “relevância e urgência” poderiam ser editadas as medidas. Termos fluidos, que estariam submetidos ao julgamento um tanto subjetivo dos poderes Legislativo e Judiciário.

No meio jurídico, discute-se que a medida provisória tenha sido importada da legislação italiana. O artigo 77 da constituição italiana estabelece, na verdade, um dispositivo muito semelhante às MPs brasileiras: o decreti-legge. Como a Itália é um regime parlamentarista, alguns teóricos argumentam que este instrumento fora criado na Constituição de 88 visando a um regime parlamentarista. Esta teoria é refutada por Cláudio Santos, que acredita tratar-se muito mais de uma concessão política: “Não é pelo fato de que nós pensávamos no parlamentarismo que nós importamos esse instituto da Itália. Me parece que foi um acerto da maioria formada à época da constituinte, que nós tínhamos a proeminência do centrão na condução daquela legislação. Ao trazermos esse instituto da Itália, e sendo sucessor do decreto-lei, nós temos essa competência constitucional extraordinária do presidente da república”.

Apesar da semelhança do modelo, a Constituição italiana pressupõe alguns requisitos para a edição dos decreti-legge. Enquanto isso, o artigo 62, que trata das MPs na Constituição de 1988 no Brasil, não fazia limitação acerca das matérias que poderiam ser tratadas nas MPs. A única restrição eram os pontos que já eram de iniciativa privativa do presidente da república – ou seja, aquelas em que só o governo poderia criar projetos de lei, como é o caso da remuneração dos servidores públicos.

Os abusos

Apesar de serem muito mais restritivas do que os antigos decretos-leis, a forma como as medidas provisórias estavam dispostas na Constituição de 1988 davam margem para abusos por parte do governo. A imprecisão acerca das matérias que as MPs poderiam tratar fez com que surgissem MPs que tratavam dos mais diversos assuntos – como afirma Santos, tudo era possível abaixo da inscrição “e dá outras providências”.

Os planos econômicos que tentavam reverter a crise e salvar a imagem de presidentes, no início dos anos 90, foram todos editados via MP: o Plano Verão (01/89), o Plano Collor (03/90), o Plano Collor II (02/91) e o Plano Real (06/94) – todos eles questionados nos tribunais. Collor, quando presidente, tentou até mesmo alterar em alguns pontos o Código Penal por meio de MPs – as quais revogou, antevendo sua inconstitucionalidade.

Além da abrangência temática difusa, outra questão que permitia abusos do governo na edição de MPs era a possibilidade de reedição das medidas. Assim, quando uma medida não era apreciada no Congresso dentro dos 30 dias, ela era simplesmente reeditada. Quando se cansou de dar uma nova numeração a cada reedição da MP, elas passaram a ser nomeadas com o número da edição original mais um traço e o número da reedição. Entre diversas medidas com um número elevado de reedições, a recordista foi a MP nº 470, de 11 de abril de 1994, que “Dispõe sobre os títulos da dívida pública de responsabilidade do Tesouro Nacional, consolidando a legislação em vigor sobre a matéria”: foi reeditada nada menos que 89 vezes² antes de transformar-se em lei.

Situações como essa eram comuns, e limitavam a atuação do Congresso. Caso se negasse a votar ou aprovar a medida proposta pelo governo, ela era simplesmente reeditada, quantas vezes fosse necessário. Cláudio Santos ainda destaca outras situações problemáticas: “além da reedição, tínhamos aquilo que se chamava de engravidamento das MPs. Você tinha uma MP de cinco artigos, e na reedição ela estava grávida de quadrigêmeos, porque tinha mais quatro artigos. E na outra reedição já sumiam os quatro, já eram dois. São vários os exemplos dos abusos que o poder executivo cometeu e ainda comete com esse instrumento que é excepcional, requer relevância e urgência da matéria”. Isso só foi possível, afirma, porque o fenômeno da reedição contou com o consentimento do Supremo Tribunal Federal (STF), que não viu prática inconstitucional nas reedições de MPs.

Novos limites

Depois de mais de uma década de abusos do Poder Executivo na utilização das medidas provisórias, foi criada a Emenda Constitucional nº 32. A emenda, que vigora desde 2001, estabelece limites e parâmetros à edição de medidas provisórias. Além de determinar quais as matérias que o governo pode tratar em medidas provisórias, ela altera a maneira de tramitação das MPs.

Se antes, as medidas valiam por 30 dias e podiam ser reeditadas quantas vezes o governo julgasse necessário, agora a reedição não é mais possível. O tempo de tramitação, ainda, foi alterado: ao invés dos 30 dias de antes, a medida vigora por um prazo de 60 dias, prorrogável por mais 60, período em que deve ser votada no Congresso Nacional. A partir de 45 dias, entra em regime de urgência – ou seja, “tranca” a pauta do Congresso. Se não for votada dentro do prazo, a medida perde a validade.

Um indicativo de que a mudança foi eficaz em reduzir os abusos do Poder Executivo no uso das MPs é a redução drástica da quantidade de medidas editadas após a Emenda 32. Antes dela, ao longo de 13 anos, haviam sido editadas 619 MPs originárias, ou seja, sem contabilizar as suas reedições. Contando-se as reedições, o número salta para 6109³ medidas provisórias editadas e reeditadas. Com a modificação da Constituição, o número de MPs editadas, de 2001 até hoje, é de 527. Destas, 22 se encontram, atualmente, em tramitação no Congresso Nacional.

As novas restrições à edição das MPs diminuíram também as inconstitucionalidades materiais das medidas – ou seja, aquelas irregularidades que eram consequência da falta de regras sobre as matérias abordadas. “Se nós pegarmos as MPs que foram editadas após a Emenda 32, basicamente elas versam sobre orçamento e finanças, abertura de linha de crédito, financiamento público e muito pouco sobre a tributação, além da MP sobre o salário mínimo. Parece que houve de certa forma uma limitação àquela farra que havia antes, do Poder Executivo”, afirma Cláudio Santos.

A relevância e a urgência

Apesar da regulamentação imposta pela Emenda Constitucional nº 32 à edição de Medidas Provisórias, não significa que a utilização do instrumento seja absolutamente satisfatória hoje. Os problemas de abuso pelas reedições e pela falta de limite às matérias tratadas foram superados, mas a discussão sobre os requisitos para que se edite uma medida provisória – a relevância e a urgência – ainda é latente.

O controle desses requisitos na edição das MPs é papel dos Poderes Legislativo e Judiciário. O primeiro, no papel do Congresso Nacional, tem o dever de rejeitar as medidas que não se enquadrem nesses dois critérios. Contudo, poucas MPs foram rejeitadas durante sua tramitação. Antes da Emenda nº 32, muitas vezes, elas nem chegavam a ser apreciadas, devido ao instrumento da reedição. Após a Emenda, entretanto, a situação mudou: das 527 medidas provisórias propostas pelo governo, desde setembro de 2001, apenas 23 perderam a validade por não terem sido apreciadas dentro do prazo no Congresso. Das 484 que foram votadas, apenas 29 medidas foram rejeitadas pela Câmara de Deputados ou pelo Senado Federal. A grande maioria das medidas votadas foram aprovadas e convertidas em lei.

No caso do Poder Judiciário, compete ao Supremo Tribunal Federal (STF), última instância jurídica a guardar a Constituição, julgar a constitucionalidade das MPs editadas pelo governo, o que significa garantir que as medidas não firam a Constituição. O desrespeito aos critérios de relevância e urgência é uma forma de inconstitucionalidade.

Conforme explica Santos, logo que a Constituição de 1988 foi promulgada, o STF decidiu não interferir na decisão do governo sobre o que era urgente e relevante. A posição do órgão mudou discretamente ao longo dos anos. “O STF tem uma posição muito oscilante em relação a esse controle. Vai da composição do tribunal – que muitas vezes é alterada –, vai da situação da medida provisória – o plano Collor foi julgado constitucional pelo STF – e não exerce esse controle efetivo que nós esperaríamos”.

O advogado acredita que o STF poderia também tomar como base a teoria do abuso do poder de legislar, nas situações em que o governo ultrapassa as suas atribuições na criação de MPs. A omissão do Supremo Tribunal Federal, assegura, tem relação com a forma de nomeação dos ministros que o compõem – por indicação do presidente – e com outras duas questões. Primeiro, a estrutura do Poder Judiciário e o aumento das demandas com a democratização, que fez com que mais pessoas buscassem o Judiciário e houvesse uma gama maior de interpretações. E, depois, a precariedade dos julgamentos.

As Ações Indiretas de Inconstitucionalidade (ADINs) são o instrumento utilizado para julgar, junto ao STF, situações que ferem a Constituição do país, o que pode incluir as medidas provisórias. “O STF faz julgamento liminar em ADIN. A grande maioria das ADINs são julgamentos liminares, e quando vai julgar o mérito, a composição é outra. Que segurança jurídica é essa, com julgamentos precários?”, questiona Cláudio Santos. “Então, também na questão das MPs, esse julgamento precário, essa análise precária e liminar talvez dificulte uma pauta mais precisa das MPs”.

O poder e as barganhas

O Coordenador do curso de Direito da UFSM, Professor Luiz Ernani de Araújo, outro dos debatedores, levanta outra questão relativa às MPs: a de sua desvirtuação, passando de um instrumento jurídico com alcance político a um dispositivo predominantemente político. “O Estado, o governo, precisa de um instrumento jurídico para alcançar objetivos políticos, para atender de forma rápida algo que ele se propõe a fazer. Ele precisa desse instrumento, que dá agilidade ao Estado, agilidade ao Poder Executivo. Mas com excepcionalidade, não pode ser uma coisa constante”.

A agilidade, que surgiu como justificativa à existência das medidas provisórias, acaba sendo também a motivação de seu uso excessivo por parte dos governantes. A sua tramitação é mais rápida do que a de Projetos de Lei, mesmo quando eles são colocados em caráter de urgência. Desta forma, as MPs tem um duplo valor para o Poder Executivo: além de garantir a aprovação mais rápida de suas propostas, elas podem servir também para engessar o Poder Legislativo.

Uma outra “vantagem” que traz aos governantes, pelo curto prazo de tramitação, é impedir a discussão pública das matérias em questão – o que muitas vezes é estratégico, mesmo que perverso, no caso da aprovação de medidas impopulares ou do esvaziamento do debate político.

Há, ainda, um aspecto mais preocupante, quando se chega às práticas políticas de acomodações e conciliações de interesses. “MP serve até para barganha política”, afirma o Professor Ernani. “Houve várias, mas a última foi agora, há poucos dias: a do imposto de renda. ‘Vocês aprovam o salário que nós estamos propondo, e nós vamos criar uma medida provisória para que se aumente as faixas do IR em 4,5%’. Ou seja, essa MP já foi pensada meses atrás, esse instrumento jurídico passou a ser um instrumento político”.

As controvérsias que envolvem o instrumento da medida provisória, portanto, não resultam apenas do abuso do Poder Executivo na edição das medidas. Há mesmo quem defenda que as MPs editadas no Brasil são de quantidade razoável. Os problemas dizem respeito, também, à morosidade do Poder Judiciário e sua insuficiência ao analisar as medidas, e à inoperância do Congresso Nacional, que normalmente espera a pauta ser trancada para nomear comissões e, só então, apreciar as MPs. Por fim, a discussão sobre as medidas provisórias acaba levantando uma série de questões intimamente ligadas que, na prática, ameaçam o êxito da democracia.

 

¹ RESENDE, Idma. Medidas Provisórias e a Emenda Constitucional nº 32/01

² e ³ ABREU JÚNIOR, Diogo Alves de. Medidas Provisórias – O Poder Quase Absoluto

MEDIDAS ILUSÓRIAS: A HISTÓRIA, pelo viés de Tiago Miotto

tiagomiotto@revistaovies.com

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2 comentários em “MEDIDAS ILUSÓRIAS: A HISTÓRIA

  1. Parabéns pra vocês todos do Viés!
    É bom saber que a iniciativa de vocês, um meio de comunicação independente está dando certo.
    A nova cara do Viés ficou impecável também.
    Vida a longa a vocês.
    Abraços!

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