ATÉ QUANDO ESPERAR?

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Em dezembro de 2010, quando o calor começava a despontar no quase-verão de Santa Maria, o futuro loteamento Brenner era um descampado a que se chega, bruscamente, no lado Oeste da cidade. No campo que se abre atrás das últimas casas da Vila São João, duas caixas metálicas de um verde-piscina que cintila à luz do sol se destacavam no vazio. Os dois contêineres eram os primeiros de 18 previstos pela Prefeitura Municipal para abrigar, provisoriamente, as famílias que vivem em situação de risco no Beco do Cadena, onde muitas das quais haviam perdido tudo nas enchentes de janeiro de 2010.

Hoje, sete meses depois, o cenário está um pouco alterado. Além do mato e do gramado que já não são mais ralos, apareceram postes de luz, demarcando as futuras ruas do local, e os contêineres agora são 18, ordenados em três fileiras que formam duas vias perpendiculares. Vão sendo ocupados aos poucos, em um movimento tomado de receio: da mesma forma que foi há um ano, é uma decisão difícil sair de sua casa, mesmo em situação de risco, para ir morar em um lugar de metal sem água e sem luz.

Dionatan da Silva e Cristiane Cardoso, moradores de um dos dois primeiros contêineres instalados no local, são hoje referência para as pessoas que chegam para ocupar sua moradia provisória. Além de tomarem a linha de frente nas tratativas constantes e por vezes tensas com a Prefeitura de Santa Maria, eles habitam um dos únicos contêiners com luz e água – condições básicas, mas que só foram conseguidas a muito custo e mobilização – e compartilham a água e o banheiro com os novos moradores que têm chegado nos últimos dias.

O casal, que vive da reciclagem e se dedica à pregação evangélica, conhece bem o sentido do verbo esperar. Foram oito meses até a instalação dos primeiros contêineres. Chegando lá, foram duas semanas até a instalação de água e esgoto. Mais três meses para a instalação de luz. Outro mês até a chegada dos outros contêineres, e mais três meses para que eles fossem dispostos da forma correta – porém ainda sem água e luz. Todo esse período, que soma quase um ano de residência nas casas de metal, foi demarcado por uma sucessão de promessas e datas – remarcadas a cada compromisso furado – e permeado pela espera maior, a da construção da casa própria.

“[…] Ao dia 10 do mês de setembro de 2010, reuniram-se no Guarany Atlântico as famílias e a superintendência da Habitação. Ficou acordado que os contêineres habitacionais serão instalados no loteamento da Vila Brenner com a seguinte programação: dois contêineres a cada 15 dias. Reassentados irão receber o benefício de uma casa padrão Pac […] que deverão ser as primeiras entregues no loteamento. […] a previsão de entrega é no segundo semestre de 2010. A ligação de água se dará no dia 17 de setembro de 2010”. A leitura da ata de uma reunião de quase um ano atrás, escrita à mão, assume um tom que mescla indignação e deboche na voz de Cristiane. Ela e Dionatan guardam cópias de todos os documentos que lhes são entregues em uma pasta, para ter controle das datas e respaldo para as cobranças.

Dionatan e Cristiane, ainda sem luz, em dezembro de 2010. Foto: Tiago Miotto

Exatamente como sete meses atrás, hoje apenas dois contêineres têm luz e apenas um tem água. Os outros 16 que estão no local ainda aguardam a abertura de valas para a instalação de água e esgoto e a colocação de postes para a instalação de luz, ambos os serviços de encargo da Prefeitura.

Até meados de maio deste ano, os contêineres estavam jogados no local de forma desordenada, no chão, sem a elevação necessária para a instalação do sistema sanitário. No período em que ficaram atiradas, as casas-contêiner sofreram saques e, como permaneciam sem luz e água, não apresentavam condições para a remoção dos moradores do Beco do Cadena – que, no último verão, enfrentaram outras cheias do arroio, ainda que não tão destrutivas quanto a de janeiro de 2010.

Nesse período de indefinição, alguns contêineres foram ocupados por outras pessoas, que chegaram ao local em situações delicadas, sem ter moradia, e contaram com o apoio de Dionatan e Cristiane. É o caso de Pequeno, catador que teve sua casa desapropriada para a abertura de uma rua, e Argeu, antigo morador do Beco do Cadena que está reconstruindo sua vida após um período na prisão.


No dia 21 de maio, uma reunião com o prefeito estava marcada com Dionatan e Cristiane na sede da Administração Municipal. Na tarde daquela sexta-feira, ao chegarem ao local, o casal descobriu que não só o direito à moradia, mas também o direito ao atraso é exclusividade de alguns em Santa Maria: chegando lá com minutos de atraso, foram cobrados por isso e informados de que a reunião havia sido movida para outro prédio. O deslocamento até lá não garantiu a sua participação na discussão, que transcorreu sem a sua presença e lhes rendeu, após uma hora de meia de espera, uma promessa: a de que, no primeiro dia de sol, os secretários estariam encarregados de fazer a devida instalação dos contêineres.

Conforme o combinado, na semana seguinte foram organizados em fileiras e suspensos sobre cilindros de concreto, de maneira a permitir um espaço entre o fundo do objeto e o chão de terra, necessário para a instalação do sistema de esgoto.

Para definir questões referentes ao translado dos moradores, uma reunião foi marcada para o dia 26 de maio no ginásio do Guarany. Nessa reunião estavam moradores que ainda estão na área de risco, algumas das famílias que já estão nos contêiners e representantes da prefeitura. Na ocasião, o secretário de habitação, Sérgio Cechin, apresentou aos moradores um representante da defesa civil que ofereceu um caminhão para fazer a mudança. Para isso bastava agendar. Segundo os representantes da prefeitura, o caminhão deveria ser utilizado para levar tudo que fosse de desejo dos moradores que estão às margens do Cadena.

O material que permanecer na área de risco será recolhido pela prefeitura. O argumento para isso é de que os materiais utilizados para construir as casas, se deixados na área, podem servir para que outras pessoas se instalem no local e sigam correndo os riscos das enchentes. O que preocupou alguns dos moradores foi o fato de a mudança ter que ser feita rapidamente – sob o risco de perder o que for deixado.

Mesmo morando de maneira muito precária, as casas que estão nas margens do arroio ainda são compostas por algumas peças – o que oferece um espaço maior que aquele dos contêiners. Dessa forma, alguns moradores demonstraram preocupação com essa brusca mudança e o risco de perder o pouco que têm, caso deixem algo para trás. A prefeitura, no mesmo sentido, deu um ultimato. Quem recusar os contêiners e seguir na área imprópria para a habitação será retirado a partir de liminar judicial.

O caminhão da defesa civil foi utilizado apenas por algumas famílias – nem todas deixaram, até o momento, a área de risco. Nessa mesma reunião, um dos representantes da prefeitura comentou sobre a abertura de processo licitatório para a construção das casas do PAC, para onde irão definitivamente esses moradores. A licitação estaria liberada no decorrer dessa primeira semana de junho e, se tudo acontecesse conforme o previsto, as casas estariam prontas ainda em 2011. No site da prefeitura municipal de Santa Maria, no entanto, não consta nada a respeito disso.

Wagner Oliveira, morador do Beco do Cadena e catador, se mudou para uma das casas-contêiner logo após a reunião. Ocupou o contêiner da ponta de uma das fileiras, a que fica em frente às duas casas metálicas iniciais, para que pudesse construir uma baia de madeira na lateral. O abrigo serve para acolher o cavalo que o leva, duas vezes por dia, catar material reciclável nas ruas da cidade.

Por esse motivo, Wagner questiona a disposição final dos contêineres – praticamente “colados” um ao outro lateralmente. “Será que eles não pensam que a maioria do pessoal aqui é catador?”, comenta. “Muitos vizinhos têm carroça, precisam de espaço para colocar o material, mas o pátio para cada um ficou pequeno”.

O impasse da água e da luz

A ausência de água, luz e um sistema de esgoto dificulta o dia-a-dia e torna a vivência bastante precária. Como muitas das famílias têm crianças pequenas, a instalação definitiva só será feita quando essas necessidades básicas forem supridas, por motivos óbvios. A insatisfação é geral e a sensação de descaso é manifestada por muitos moradores. Além das crianças uma situação em especial chama a atenção. Em um dos contêiners está o casal José Renato Assunção de Oliveira e Ilda Wernes Ele já está no conteiner há três meses, ela apenas há alguns dias. Ilda já realizou diversas operações, uma delas, a mais importante, no coração. Durante as madrugadas frias dentro dos contêiners, muitas vezes é acometida por crises de falta de ar. Sem luz para fazer nebulização só o que resta é sentar-se na cama. Em casos mais críticos o marido massageia seu coração. Sem luz o risco de vida é iminente, até maior do que estar ao lado do Cadena.

A instalação da rede elétrica é feita pela AES Sul e depende da colocação dos postes e das caixas de luz em frente às moradias – encargo da Prefeitura. Para muitos dos moradores existe uma indefinição em relação a isso, e a demora gera inquietação com a possibilidade de terem que arcar, eles próprios, com a instalação dos postes, proposta feita pela prefeitura para acelerar o processo. “Um poste custa uns 300 reais, com a caixa de luz, daria uns 500, a maioria aqui não tira isso nem em um mês”, calcula Wagner.

As pessoas já se movem para os contêineres, que continuam sem água e luz. Foto: Tiago Miotto

Na realidade, a ausência de água e luz é, também, uma opção dos próprios moradores. Seria possível realizar “gatos” na rede elétrica tranquilamente, ao invés de esperar pela instalação dentro dos parâmetros legais – o que ainda os isentaria do pagamento da energia. As mangueiras da rede d’água, procuradas aparentemente sem êxito pelos funcionários da Prefeitura, também já foram encontradas.

Os moradores, no entanto, preferem fazer as coisas “pelo certo”, como diz Argeu. Por isso, esperam providências da Prefeitura e pressionam a administração municipal pelo cumprimento das promessas feitas. A opção moral feita pelos moradores espera – e não se sabe até quando é possível esperar – ser correspondida, no mínimo, à altura.

A escolha por uma residência, mesmo que provisória, dentro dos conformes legais, fica clara a partir da ideia de recomeço que muitos deles carregam. Alguns não tinham nada, já moraram na rua, de favor com alguém ou em áreas de risco. Por isso os contêiners representam uma nova caminhada e não o fim.

A luta pela moradia segue e vai além. “Quem está satisfeito com uma casa-contêiner quer viver na mesmice”, comenta Dionatan. A espera maior é pela casa definitiva. “Não estamos contentes com isso aqui. De jeito nenhum”, afirma ele, ao passo que Cristiane, sua esposa, complementa: “nós queremos progredir”. 

ATÉ QUANDO ESPERAR?, pelo viés de Rafael BalbuenoTiago Miotto

A situação das famílias que vivem no Beco do Cadena e estão sendo movidas para as casas-contêiner em Santa Maria já foi tratada pela reportagem UM LUGAR AO SOL, na edição impressa de aniversário da revista, que pode ser acessada aqui.

rafaelbalbueno@revistaovies.com

tiagomiotto@revistaovies.com

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2 comentários em “ATÉ QUANDO ESPERAR?

  1. Acabei de voltar de lá para uma reportagem aqui da TV. É uma situação indescritível para quem não a vê com os próprios olhos. Me senti um lixo como pessoa.

  2. “Na tarde daquela sexta-feira, ao chegarem ao local, o casal descobriu que não só o direito à moradia, mas também o direito ao atraso é exclusividade de alguns em Santa Maria.”
    Mais uma baita reportagem, parabéns pra toda a galera da revista!

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