COMPREENDA, MAS ESTAMOS EM GREVE

A história é escrita todos os dias. A poltrona é templo para aqueles que diariamente negam o incessante caminhar da história. A história não apenas existe para ser consumida, estudada, questionada. Ela existe, principalmente, para servir de combustível inspirador aos motores do mundo.  O dia que tivermos a clareza de que cada ato, cada decisão, cada movimento é uma manifestação da história acontecendo, visível aos nossos olhos e produto de nossas mãos, talvez tenhamos mais coragem e menos melindres para colocar em xeque a sociedade que tanto criticamos. Tão lindo quanto o passado deve ser o hoje, tão inspiradora quanto a última vitória deve ser a próxima batalha. E nesse contexto, de construção da história forjada na luta, não existem melhores exemplos que a luta dos trabalhadores ao redor do mundo. Que resistem aos golpes e ao tempo. Nesse enredo, com papel de protagonista, está aquela que pertence aos trabalhadores e ninguém mais: a greve.

Não sendo exatamente a greve uma novidade, é provável que, em um primeiro momento, surjam questionamentos sobre a validade dessas palavras. Se faz realmente necessário que se diga mais do mesmo?

Sim.

É necessário no momento em que, mesmo aqueles que dizem estar na trincheira dos trabalhadores, esqueceram-se até do “mais do mesmo”. Assim, não parece de primeira importância fazer aqui um grande resgate histórico do que foram as manifestações grevistas. Esses dados são amplamente conhecidos. Como rápidos exemplos podemos citar a greve que ocorreu em Chicago nos primeiros dias de maio de 1886, onde a repressão policial feriu e matou muitos manifestantes. Alguns dos trabalhadores considerados pela polícia como lideres grevistas dessa ocasião foram condenados à forca, outros foram presos. Alguns anos mais tarde o 1º de maio passaria a ser considerado o dia do trabalhador, data de reivindicações, lutas e paralisações. Alguns governos ao redor do mundo, inclusive do Brasil, determinam a data como feriado nacional, desarticulando, assim, a lógica originalmente proposta. Quando feriado, o 1º de maio não pode mais causar impacto nos patrões, é um dia onde não se trabalha, um descanso, um “regalo” aos trabalhadores. Distorcendo ainda mais a proposta original do 1º de maio, o feriado fica institucionalmente determinado como “O dia do trabalho” e não do trabalhador.

No Brasil temos nas greves do final da década de 70, no ABC paulista, o exemplo mais conhecido. Em Lula, na época presidente do Sindicato dos Metalúrgicos, temos a figura central do processo, alcançando visibilidade nacional por sua atuação nesse período.

Desrespeitando, inclusive, o espaço e o tempo, as opressões impostas pelos patrões aos trabalhadores muitas vezes sequer mudam de nome. As motivações grevistas se repetem dia após dia, no Brasil ou em qualquer lugar do mundo. As condições de trabalho não são compatíveis com a responsabilidade cobrada e com o desenvolvimento pleno do labor. O custo do sustento de si mesmo e da família, não segue o cálculo dos benefícios necessários para isso.

É assim hoje, da mesma forma que fora no ano de 1917, gravado na história dos movimentos grevistas brasileiros. Com greves gerais em diversos setores, as mobilizações inspiraram trabalhadores em todo o país. A revolução russa eclodia no outro lado do oceano e, mesmo sem a ideologia como principal fator influenciador, os trabalhadores brasileiros recebiam noticias da transformação do sistema vigente em outro país. Eram trabalhadores se organizando. O historiador Henrique Cignachi teve como objeto de estudo em seu trabalho de conclusão de curso as duas greves dos ferroviários de Santa Maria, Rio Grande do Sul, que ocorreram entre final de julho e inicio de agosto e final de outubro e inicio de novembro de 1917. Essa “greve teve motivações principalmente econômicas. Era uma situação em que, por causa da primeira guerra mundial, o Brasil, e principalmente o Rio Grande do Sul, exportavam muito alimento para a Europa. E com isso ocorria um processo de inflação dos alimentos, porque como a maioria dos alimentos eram exportados para a Europa que estava em guerra, o preço dos alimentos no RS subiu bastante. E esse aumento do custo de vida para o trabalhador, para as pessoas pobres, não foi acompanhado por um aumento salarial. Então o que aconteceu foi uma defasagem, um processo de deterioração das condições dos trabalhadores”, afirma Cignachi. Na época, o serviço de ferrovias estava sob o controle de uma empresa belga/francesa e a guerra impedia a importação de maquinário. O Brasil, por sua vez, não produzia os equipamentos necessários para que as ferrovias funcionassem de maneira segura principalmente para aqueles que nelas trabalhavam. Eram comuns os acidentes que mutilavam ou matavam ferroviários em Santa Maria. Foi divulgada pela imprensa “uma estatística que saiu em fevereiro de 17, com uma média mensal de 25 mortes de ferroviários por causa de acidentes”, complementa Cignachi baseado em suas pesquisas no arquivo municipal.

Embora ainda não institucionalizadas na figura dos sindicatos, os ferroviários de Santa Maria organizavam-se, em 1917, em estrutura muito similar aquela que hoje vemos. Democráticas e eleitas a partir de assembléias, as associações agregavam aqueles que viviam a mesma situação, o descaso dos patrões, que eram e ainda são poucos, atingia diretamente a vida dos muitos trabalhadores. Assim, quando se é maior em número, a organização é fator fundamental para que se equipare o poder. “Se no inicio da greve a Associação dos Empregados da Viação Férrea do Rio Grande do Sul tinha 400 membros, logo depois que começou a greve passou a ter 1500… Para ter uma greve tu precisas ter organização. Para ter essa organização tu formas de certo modo um sindicato, mesmo que não tenhas o nome de sindicato” aponta Cignachi. Nesse momento, mesmo que de forma comedida, a greve passa a ter motivações políticas, visto que a identificação enquanto classe é o principal fator de exposição das contradições do capitalismo.

A movimentação grevista mais próxima do que conhecemos hoje surge a partir do século XIX. Antes disso as atividades reivindicatórias mais comuns por parte dos trabalhadores eram os boicotes. Em determinadas situações destruíam-se maquinários visando atingir financeiramente o patrão e, em alguns casos, reconquistar para o homem o posto tomado pela máquina. Nesse contexto, tendo o patrão o poder econômico em suas mãos, a tentativa de dano era irrisória perante suas aspirações. Assim avança o conteúdo político que agrega os trabalhadores para além de suas afinidades de caráter econômico. “Nesse processo de formação de consciência de classe os operários começam a perceber que eles têm que se unir em entidades e não só quebrar as máquinas, matar o patrão. Isso não vai mudar, depois vai ter outro. Eles começaram a perceber o sistema capitalista como um todo, não só o burguês da sua empresa mas de todas as outras empresas e a perceber que os operários da minha empresa e das outras empresas também são meus camaradas e eu tenho que me unir a eles” afirma Cignachi.

Uma vez organizados os trabalhadores passam a perceber os principais problemas que atingem a atividade produtiva de forma generalizada, ou seja, todos eles. Da mesma forma, ficam evidentes as condições de vida, normalmente ditadas pelo trabalho enquanto mediação do homem com o capital. Sendo eles os eternos desfavorecidos do capital, não lhes resta algo que não seja reivindicar melhores condições de vida, que extrapolem a básica idéia do apenas sobreviver para saltar ao plano do viver plenamente, podendo suprir não apenas suas necessidades, mas, também, os anseios de todo e qualquer ser humano.

A deflagração de uma greve, nesse contexto de luta por melhorias, é um processo horizontal e, por isso mesmo, trabalhoso. Nenhuma organização trabalhista em sã consciência opta por uma greve a partir de decretos e sem antes ter tentado inúmeras vezes através do diálogo e da negociação. Assembleias são realizadas, propostas e contrapropostas são ouvidas. Uma vez elaboradas as principais reivindicações, o processo de negociação é iniciado sem grandes probabilidades de sucesso. “A decisão de uma greve é um processo difícil e decidido quando se esgotam as possibilidades de diálogo com o patrão ou, no nosso, caso o governo. No caso das nossas reivindicações é necessário dizer que estamos desde 2004 com uma pauta que até hoje o governo não cumpriu. Portanto, todas as tentativas  de diálogo com o governo são feitas, várias reuniões e até atividades com paralisações são feitas, para que o governo sinalize reajustes à categoria. Mas, infelizmente, este processo não ocorre e então a categoria acaba tendo que usar o último recurso de pressão política, que é a deflagração da greve”, afirma Loiva Chansis, coordenadora geral da Associação dos Servidores Técnico-administrativos em Educação da Universidade Federal de Santa Maria – ASSUFSM, entidade que aderiu à greve nacional dos servidores técnico-administrativos em educação no primeiro semestre de 2011. Claudenir Teixeira Freitas, secretário geral do Sindicato dos Bancários de Santa Maria e região, faz afirmação no mesmo sentido. Os bancários, uma vez tendo a minuta de reivindicações decidida, também partem para um primeiro momento de diálogo e negociações “e, a partir daí, começa toda a luta. Porque o que os banqueiros fazem, a truculência deles é de anos, eles engavetam e não discutem, e a gente tenta negociar e eles marcam uma reunião e desmarcam e a gente fica sempre correndo atrás. No momento que a negociação não avança, a categoria reúne e decide se entra em greve ou não. A gente vai até a última tentativa. No momento que a gente vê que não tem retorno, aí não tem outra solução que não seja greve. Acho que é a única forma do trabalhador enfrentar o poder dos banqueiros”.

A paralisação da atividade produtiva, contudo, não deixa de ser um processo de negociação. Nessa situação, porém, os papéis se invertem, visto que a pressão exercida pela interrupção dos trabalhos faz com que os patrões passem a negociar a partir de outra ótica. A roda da indústria deve voltar a girar, o dinheiro deve voltar a entrar na conta do patrão e para isso precisa-se que o trabalho funcione dentro da ordem planejada por este. Quando está paralisada a fábrica, por exemplo, passa a estar pela primeira vez nas mãos dos trabalhadores.  Nesse momento, para alguns, a greve serve como importante processo de formação política, quando se consegue perceber a situação para além das condições de trabalho, passando-se a analisar o sistema e suas contradições. Provavelmente a mais clara dessas incoerências tem na atividade produtiva seu melhor exemplo. A greve “tem num primeiro momento uma motivação econômica, devido a necessidade material, mas no processo de greve e de associação da camaradagem, da identificação de tu operário da tua fabrica e dos operários das outras fabricas, tu começas a perceber que tu é uma classe coesa e que tu podes mudar a sociedade e que tu podes enfrentar aquele que te explora. Nesse processo o operário percebe que aquilo que é produzido na fábrica, se ele não produzir, ninguém mais vai produzir. O patrão não vai produzir porque o patrão é um ente que não trabalha, só explora o trabalho do operário. Então ele vai começar a pensar politicamente na sociedade que ele vive, porque ele vai ver que a polícia serve ao patrão, que o governo serve ao patrão, os jornais vão dizer que são baderneiros”, aponta Cignachi. Loiva complementa afirmando que “a greve é um grande processo de formação política para a categoria, onde se discute para além das questões econômicas, que são sim necessariamente importantes, porque os trabalhadores e trabalhadoras devem ter dignidade e qualidade de vida. E esta qualidade de vida passa pelo salário, pela qualificação dos quadros. Mas  a greve fortalece a consciência de classe, reforça a capacidade da categoria se colocar em movimento e, principalmente, incorporar-se na luta das nossas bandeiras históricas que é a defesa da educação, saúde e serviços sempre públicos. Nem sempre conseguimos todos os nossos propósitos salariais, mas, sem dúvida, conseguimos reforçar e reativar a necessidade da luta constante”.

Se apenas por curiosidade tentássemos imaginar uma greve dos patrões, é provável que nos depararíamos com uma situação onde os serviços realizados seguiriam, pelo menos, em 90% da sua funcionalidade habitual. Completamente antagônico a isso é a greve dos trabalhadores que, uma vez paralisados, geram um pequeno colapso na sociedade pelo não oferecimento de bens e serviços. E é para ser assim mesmo. Quando os trabalhadores cruzam os braços, só então se retiram da comum condição de invisibilidade em que estão. Em um Brasil que cada vez mais ataca os trabalhadores, só se reconhece a importância do trabalho oferecido quando esse pára. O pensamento lógico nos leva, então, a conclusão: se o funcionamento pleno de determinado serviço é importante, então é necessário que aqueles que o realizam estejam o fazendo de forma plena tanto em seu ambiente de trabalho como em sua vida para além deste. Como afirma Loiva, “quanto aos ‘ prejuízos’ à população, uma greve é assim mesmo, tem que criar impacto para que os governos, que são omissos, possam, assim, resolver o que poderiam ter feito e não fizeram”.

Mesmo assim o processo de identificação entre os trabalhadores grevistas e a população é lento e dificultoso. Ainda mais decepcionante é ver setores da sociedade que antes apoiavam inquestionavelmente a luta dos trabalhadores, erguerem as bandeiras burguesas do senso comum que reivindicam que a ordem estabelecida seja mantida. Embora na contemporaneidade tenhamos uma modificação da estrutura clássica do operariado, o fabril, com o surgimento de novas formas de trabalho principalmente individuais, as identificações enquanto proletariado ainda existem e devem prevalecer no momento de entendimento de uma greve. Como explica Cignachi, para aqueles que “vendem a força de trabalho para sobreviver, a situação material de exploração é a mesma, só o processo de identificação de classe é que talvez se modifique. E leva um tempo”.  Além disso toda greve busca melhorias para as condições de trabalho e as melhorias dessas condições representam, automaticamente, melhorias na qualidade dos serviços prestados e nos bens produzidos. Como afirma Teixeira Freitas, “a nossa luta não é apenas por índice, por aumento salarial, isso engloba várias questões e também a luta pelo próprio cliente e usuários dos bancos. Quando a gente reivindica maior número de funcionários significa que nós não queremos tanta fila nos bancos, quando a gente reivindica um reajuste digno é porque as tarifas são exorbitantes”. Loiva complementa, “nós vivemos numa sociedade capitalista, que somente o que lhes interessa são os seus objetivos próprios. A formação política, a consciência de coletividade e solidariedade ainda é um processo de construção. Portanto, a população e infelizmente os jovens estudantes não conseguem perceber que as greves muitas vezes são para garantir a dignidade dos servidores, que precisam ser qualificados e bem remunerados, porque somos nós, exclusivamente nós, servidores públicos, que garantimos serviços públicos à população. Portanto, deveriam estar ao nosso lado. Não compreendem que, por exemplo, se os serviços públicos ainda são gratuitos é porque muitos embates travamos para assegurar esta gratuidade. E precisam entender que as culpas das  greves não são nossas, mas dos governos autoritários e descompromissados com a educação e saúde pública neste País. Portanto, devem cobrar dos governantes e sim, deveriam apoiar os trabalhadores”.

O apoio de outros setores aos trabalhadores grevistas tem sido fundamental no decorrer da história. Em seus estudos Cignachi confirmou que empresários, principalmente criadores de gado, apoiaram a greve dos ferroviários de Santa Maria em 1917. Obviamente nem sempre existe a possibilidade de ajudar financeiramente um setor grevista, mas esse apoio pode ser mais simples do que o imaginado. A simples clareza de que aqueles que se identificam com a luta devem se unir na pressão contra governo, para que esse atenda as exigências da greve e não o contrário, pressionando os trabalhadores para que retornem ao trabalho. Aliás, confusão comum é essa, quando se identifica na greve um atravancamento da vida rotineira. A paralisação, no entanto, teve motivações e são esses os reais culpados por todas as consequências do processo. Como afirma Claudenir Teixeira Freitas, “ninguém gosta de fazer greve, ninguém quer fazer uma greve, mas é preciso. Os bancários que fazem greve não estão brincando ali na frente, eles pagam esses dias. Ele está parado, mas quando ele voltar ele vai pagar aquele dia não trabalhado. Eu gostaria de frisar que as pessoas tenham mais paciência quando a gente faz uma greve, porque a gente não tem outra maneira de pressionar, não existe outra maneira, se houvesse uma forma de pressionar que não prejudicasse a população, mas não há”.

O que resta é esperar que se tenha a melhor clareza da importância do processo de greve. Os direitos dos trabalhadores ainda não estão nem perto do ideal. Aqueles que não se identificam com uma categoria específica, devem se identificar com a situação de exploração que vivem e é recorrente. Os trabalhadores organizados e paralisados fazem com que a vida e a sociedade parem, ao menos, parcialmente.  Aqueles que afirmam se identificar com a causa dos trabalhadores e criticam as greves devem fazer a autocrítica e perceber que, na verdade, estão reproduzindo o pensamento do patronato. Se uma greve tem seus pontos falhos, e tem, o setor progressista deve ajudar a construí-la da forma que considera ideal e não boicotá-la. Sobre os patrões não se fala, esses sempre criticarão a greve. Eles a temem. E faz todo o sentido. Eles precisam dos trabalhadores, enquanto os trabalhadores não precisam de seus patrões. Não falamos aqui das questões administrativas, mas da concentração dos benefícios gerados pelo trabalho. Um dia, talvez, as explorações acabarão e então os trabalhadores descruzarão os braços para finalmente aplaudir.

“COMPREENDA, MAS ESTAMOS EM GREVE”, pelo viés de Rafael Balbueno

3 comentários em “COMPREENDA, MAS ESTAMOS EM GREVE

  1. Camarada, parabéns por enfrentar este tema de difícil compreensão na atualidade predatória do capitalismo. Enquanto não construírmos uma alternativa de médio e longo prazo o capital continuará a obrigar os trabalhadores a pagar suas crises. A greve, com certeza é um dos principais intrumentos de luta dos trabalhadores, mas sua atuação só passa a ter efetividade nos marcos de uma estratégia de ruptura com o capital – para o qual os sindicatos, demais movimentos sociais e partidos socialistas tem um papel central.

  2. tudo bem henrique.estou interessado em me filiar ao psol. atualmente sou filiado ao pc do b. mas a posição deste partido esta deixando muito a desejar. por favor como posso me filiar. tenho outras pessoas que tambem querem se filiar . um abraço joao carlos

    1. Claro, eu também já fui próximo do PCdoB e entendo o que você quer dizer. Meu e-mail é h.cignachi@hotmail.com. Me envie seu contato para podermos conversar. Se tiver facebook ou orkut me adiciona: Henrique Cignachi. Abraço!

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