O SOLDADO INIMIGO DA GUERRA

No dia em que o último pelotão de soldados estadunidenses atravessava a fronteira do Iraque em direção ao Kuwait, dando fim a uma guerra de um trilhão de dólares e quase nove anos, o soldado Bradley Manning, que serviu como analista de inteligência na Segunda Brigada da 10ª Divisão de Montanha no Iraque de 2009 a 2010, encontrava-se na base militar de Fort Meade, em Maryland, nos EUA, participando do terceiro dia da audiência que decidirá seu futuro.

Ambos os fatos, a despeito da aparente insignificância do destino de um único soldado frente ao de toda uma guerra, estão ligados de maneira crucial: preso preventivamente desde junho de 2010, o soldado Bradley Manning fora acusado à época de ser o responsável pelo vazamento de um vídeo que mostra a execução sumária de doze civis por um helicóptero Apache estadunidense. O vídeo, datado de 2007 e chamado de “Assassinatos Colaterais” (“Collateral Murders”), foi disponibilizado na internet pelo projeto Wikileaks em abril de 2010 e mostra o fuzilamento peremptório de civis, confundidos com “insurgentes”, nas ruas de Bagdá – entre eles, dois jornalistas da agência internacional Reuters e o motorista de uma van escolar que parou para socorrer os feridos.

O vídeo do qual Manning é acusado de se apropriar indevidamente e vazar contribuiu para a desmoralização pública da ação dos EUA no Iraque. Com a retirada das últimas tropas ianques no dia 18 de dezembro último, chega oficialmente ao fim de uma guerra que, provavelmente, ficará conhecida como a mais privatizada da história. O trilhão de dólares gastos pelos EUA não foi destinado apenas para a tradicional indústria de armamentos: com 20 mil militares privados, a segunda maior força da frente de batalha era composta de companhias de segurança. Além disso, entram na conta de serviços privados a alimentação, o transporte, os serviços de engenharia, de construção, o treinamento policial, a vigilância aérea, entre outros.

Manning foi denunciado pelo “ex-hacker” Adrian Lamo, para quem teria se gabado dos vazamentos. Segundo Lamo, o soldado levava para o trabalho um CD regravável com músicas, que eram apagadas e substituídas pelos arquivos confidenciais. A possível responsabilidade pelo vazamento do vídeo, entretanto, não é a única acusação que envolve Bradley Manning: no dia 2 de março de 2011, o Departamento de Defesa dos Estados Unidos acrescentou a essa acusação outras 22, e a audiência que teve início no dia 16 de dezembro no quartel que sedia a Agência de Segurança Nacional dos EUA tem por objetivo decidir se Manning será julgado pela Justiça comum ou por um Conselho de Guerra formal.

Embora nenhuma das acusações citasse nominalmente o projeto Wikileaks, ou sua face pública, Julian Assange, todas as acusações estão relacionadas a eventos que vieram a público por meio da ação do sítio especializado em vazamentos: o soldado é acusado de vazar documentos secretos dos EUA sobre as Guerras do Iraque e do Afeganistão e colaborar no vazamento de 251.287 telegramas diplomáticos de embaixadas estadunidenses ao redor do mundo – ação do Wikileaks em parceria com veículos da grande mídia internacional que recebeu o nome de “Cablegate” –, além do uso de softwares não autorizados em computadores do governo para obter informações através de download de dados secretos para divulgação pública. A mais grave das acusações, contudo, é a de “ajudar o inimigo”, que pode ocasionar a condenação do soldado à pena de morte. O Exército já comunicou que a promotoria não solicitará a pena máxima à corte, mas as acusações ainda são suficientes para levar à sentença de prisão perpétua.

A promotoria passou o quarto dia da audiência tentando comprovar a ligação entre o soldado e o projeto Wikileaks, tentativa que não é inédita. Outras investigações já tentaram, sem êxito, demonstrar a ligação entre Bradley Manning e Julian Assange, líder do Wikileaks. O próprio Assange declarou, no início do ano, que não conhecia o nome do soldado até ele obter projeção midiática com as acusações. Segundo Assange, uma das principais preocupações do Wikileaks é com a segurança das suas fontes, de maneira que o sistema de informações do sítio é projetado para que nem os membros do projeto conheçam a identidade da fonte.

Apesar disso, o Wikileaks já divulgou nota em solidariedade a Bradley Manning, a quem Assange afirmou considerar “o preso político norte-americano mais importante”. Em abril, o próprio presidente dos EUA, Barack Obama, afirmou que Manning “desrespeitou a lei”. Por considerar esta afirmação uma influência indevida sobre o caso e para tentar demonstrar que as consequências dos vazamentos não teriam sido tão grandes para as relações diplomáticas do país, o advogado de Bradley Manning, David E. Coombs, pretende chamar Obama e Hillary Clinton como testemunhas de defesa.

Bradley Manning e Julian Assange dividem, além da condenação oficial do governo estadunidense, o ódio da extrema direita do país. Sarah Palin, uma das líderes do extremista Tea Party, afirmou que o Wikileaks era uma organização terrorista que deveria ser perseguida como a Al Qaeda. O conservador Mike Huckabee, presidenciável republicano em 2007, afirmou que Manning deveria ser executado.

As semelhanças entre as restrições impostas ao Wikileaks e a prisão preventiva de Manning fazem-nos mais próximos pela situação compartilhada do que faria a possível comprovação de uma ligação direta entre ambos. O Wikileaks, após uma série de vazamentos ao longo do ano de 2010, que compreenderam o vídeo “Assassinatos Colaterais”, registros das Guerras do Afeganistão e do Iraque e os 251.287 telegramas diplomáticos de embaixadas dos EUA pelo mundo – o “Cablegate” – passou a ser alvo de um bloqueio econômico.

No mesmo período, o líder do projeto, Julian Assange, foi acusado de abuso sexual por duas mulheres na Suécia e reside em prisão domiciliar desde o início do ano no Reino Unido, onde aguarda a decisão sobre sua extradição ou não para julgamento na Suécia, de onde pode vir a ser enviado para os EUA, onde é considerado inimigo público – nas palavras do vice-presidente Joe Biden, um “terrorista high-tech”. Assange nega as acusações, as quais considera uma conspiração política para prendê-lo.

A paranoia de Assange tem motivo: além de uma acusação que, justificada ou não, veio em boa hora para aqueles que querem seu pescoço, o bloqueio econômico e as tentativas de tirar do ar o Wikileaks serviram de amostra das mesmas relações de poder que resultam em uma guerra privatizada, em que se diluem as fronteiras aparentemente estáveis entre público e privado, poder político e econômico. Além da perseguição do governo, desde 7 de dezembro de 2010, Bank of America, VISA, MasterCard, PayPal e Western Union suspenderam as doações – principal meio de manutenção do projeto – realizadas por meio de seus serviços ao Wikileaks. Amazon e everyDNS, empresas que prestavam serviços de internet ao Wikileaks, cancelaram seus contratos de maneira unilateral.

OS REQUISITOS BÁSICOS DO PENTÁGONO

A situação de Bradley Manning é comparável à de Assange e do Wikileaks sob diversos aspectos. Logo após a acusação de Adrian Lamo, Manning foi preso preventivamente em regime de segurança máxima, em uma base da Marinha em Quantico, Virgínia. Lá ele permaneceu até abril de 2011, durante um período no qual vieram à tona diversas denúncias de humilhação e maus tratos na prisão. Os questionamentos, que vão das motivações políticas para um tratamento “diferenciado” às próprias razões para a prisão preventiva originaram inclusive uma rede de suporte ao soldado, a Free Bradley Manning.

O presidente dos Estados Unidos e Nobel da Paz Barack Obama afirmou que as condições de prisão de Manning eram “apropriadas e cumprem nossos requisitos básicos”. Obama afirmou confiar nas garantias do Pentágono a respeito das condições de detenção e endossou a justificativa da prisão – oficialmente chamada de “prevenção de injúrias” – para que, por exemplo, houvesse a imposição de que Manning dormisse sem roupa, uma “medida de segurança” para seu próprio bem.

Tais condições foram mantidas mesmo depois de relatórios psiquiátricos na própria prisão recomendarem o fim das “medidas preventivas” e classificarem o risco de suicídio ou injúrias de Manning como baixo. O próprio soldado fez reclamação formal na qual afirmava que as restrições eram absurdas, pois não tinha intenção alguma de se suicidar. O soldado afirmou, também, que se quisesse fazê-lo, de fato, poderia matar-se com o elástico de sua cueca ou machucar-se com os chinelos – duas únicas peças disponíveis para ele. Como consequência, na semana seguinte passou a ser obrigado a dormir completamente nu.

No próprio governo estadunidense, o tratamento dispensado a Manning na prisão provocou divergências. O porta-voz do Departamento de Estado dos EUA naquele período, Philip J. Crowley, declarou que as condições de prisão do soldado eram “ridículas, contraproducentes e estúpidas” e se demitiu do cargo.

Em março de 2011, foi divulgada uma carta aberta redigida por dois juristas de Harvard e assinada por mais de 300 acadêmicos, a qual classificava as condições de prisão de Manning como “degradantes” e “desumanas”, além de ilegais e imorais. Embora não difira muito do que se sabe há tempos sobre a base militar de Guantánamo, a descrição da situação do soldado, em um dos parágrafos da carta, é perturbadora:

“Por nove meses, Manning está confinado em sua cela vinte e três horas por dia. Durante sua hora livre, ele pode caminhar em círculos em outra sala, sem a presença de outros prisioneiros. Ele não pode cochilar ou relaxar durante o dia, mas deve responder à questão ‘você está bem?’ verbal e afirmativamente a cada cinco minutos. À noite, ele é acordado para responder, igualmente, ‘você está bem?’ toda vez que dá as costas à porta da cela ou cobre sua cabeça com uma coberta, caso os guardas não consigam ver seu rosto”.

Entre os signatários da carta, ironicamente, está Laurence Tribe, que deu aulas de Direito a Obama na Universidade de Harvard e afirmou anos atrás que o presidente e Nobel da Paz fora seu melhor aluno. Em declaração ao tabloide britânico The Guardian, Tribe disse que “a detenção de Manning é não apenas vergonhosa, mas também inconstitucional”, por infligir punição “cruel e incomum” que não poderia “ser aplicada constitucionalmente nem a alguém condenado por delitos terríveis, quanto mais a alguém meramente acusado de tais delitos”.

VAZAMENTOS E HIPOCRISIA

Além da caracterização jurídica de crimes contra o Estado, o principal argumento oficial para condenar Wikileaks e Bradley Manning é que ambos, ao divulgarem informações secretas, colocam aliados e colaboradores dos EUA em perigo. É nestes termos que Assange e Manning são considerados inimigos da nação.

Daniel Ellsberg, ex-funcionário do Pentágono que foi responsável, em 1971, pelo vazamento de 14 mil páginas de informações secretas e impactantes a respeito da atuação dos EUA na guerra do Vietnã, escreveu artigo no início do ano condenando as condições de Manning na prisão, uma situação que considera “abusiva e ilegal”. Os documentos vazados por Ellsberg no início da década de 1970, que ficaram conhecidos como “Papéis do Pentágono”, provocaram grande impacto ao mostrar a política deliberada, adotada por seguidos presidentes ianques, de expansão da guerra no Vietnã atacando inclusive países neutros, embora sua propaganda e suas declarações públicas negassem ou omitissem seus reais objetivos.

As informações vazadas foram divulgadas em dois grandes jornais do país, e Ellsberg foi condenado e absolvido. Além disso, o vazamento de informações confidenciais resultou, à época, no surgimento de uma unidade especial de investigação do governo de Richard Nixon, conhecida como “White House Plumbers” (“Encanadores da Casa Branca”), responsável pela invasão da sede do Partido Democrático em 1972, ação que veio a público no Caso Watergate e acabou ocasionando a renúncia do presidente Nixon, em 1974. A função da unidade era evitar o vazamento de dados confidenciais que pudessem deixar saber demais a respeito das transações e relações governamentais, e sua primeira ação comprovada foi, justamente, a invasão do consultório do psiquiatra de Daniel Ellsberg. O ex-analista militar comparou a declaração de Obama à postura de Richard Nixon antes da constatação de que a ordem para as invasões partira do Salão Oval:

“Posso até ouvir a voz do presidente Nixon, dizendo à imprensa: ‘os empregados da manutenção dos encanamentos da Casa Branca que assaltaram o escritório do Dr. Daniel Ellsberg em Los Angeles informaram-me que seus atos são apropriados conforme nossos padrões básicos’”.

Retirada do site da Organização: http://www.bradleymanning.org/

A reação de Obama em relação às condições de prisão do soldado Bradley Manning, embora impressione quem esperava mais de um Nobel da Paz, é coerente com a postura oficial das autoridades dos EUA a respeito dos vazamentos trazidos à tona pelo Wikileaks: ignorando as evidências de uma política externa abusiva, dominada por interesses privados e desrespeitosa à soberania de outras nações, os argumentos oficiais limitam-se a desviar o foco da discussão para o desrespeito às leis e o potencial risco aos colaboradores e aliados do país, que poderiam estar em apuros pela divulgação de seus nomes.

Este argumento é apresentado como se a preocupação com vidas inocentes fosse uma prioridade do governo dos EUA. Enquanto isso, a organização Iraq Body Count contabiliza que, do início da guerra até o dia 3 de dezembro de 2011, entre 104.122 e 113.770 civis haviam sido mortos na Guerra do Iraque, número ao qual a análise completa dos registros da guerra disponibilizados pelo Wikileaks – e de cujo vazamento Bradley Manning é acusado – acrescentariam mais 15 mil. Afora as mortes entre civis iraquianos, dados oficiais dos EUA indicam 4,5 mil soldados mortos do lado ianque.

EM NOME DA DEMOCRACIA

Um dos preceitos básicos da democracia liberal – e que, teoricamente, fundamenta sua existência – é o da visibilidade das ações do poder instituído. Como definiu o cientista político Norberto Bobbio, a democracia seria o “regime do poder em público”, no qual as ações dos representantes públicos devem ser visíveis e, portanto, sujeitas à aprovação das massas. O caráter secreto e o posterior impacto da divulgação de documentos relativos à diplomacia estadunidense e às guerras do Afeganistão e do Iraque, entretanto, evidenciaram a distância que existe entre a teoria e as práticas democráticas do “mundo livre” ocidental.

Para o filósofo esloveno Slavoj Zizek, o singular dos diplomas e documentos divulgados pelo sítio Wikileaks é que, em geral, eles não trazem nada de novo – tanto em relação aos abusos ocorridos em ambas as guerras, aos excessos e às intenções escusas. Desnudar a diplomacia estadunidense apenas comprovou o que todos já imaginavam.

Zizek aponta que os excessos são apenas a dimensão mais visível e mais abominável da normalidade do capitalismo global – trata-se de dois lados da mesma moeda. Os horrores e abusos da guerra não são um desvio ou a simples ausência de moralidade, mas parte integrante de um sistema de relações e interesses de corporações, disputas econômicas inerentes ao capitalismo.

Enquanto Bradley Manning aguardava a decisão sobre o futuro de seu julgamento, oficialmente terminava uma guerra que iniciou sob a presidência de George W. Bush com a justificativa de cercear a “ameaça nuclear” do Iraque, a qual de inegável passou a potencial e, em seguida, foi substituída pelo admirável papel de livrar os iraquianos da tirania de um ditador e garantir a liberdade de uma nação. Apesar das declaradas boas intenções, uma das perspectivas mais palpáveis à saída das últimas tropas estadunidenses é a instabilidade em um país no qual a média de mortes civis por confrontos e atentados ainda é de 350 por mês.

Embora Obama tenha sido eleito há três anos com a promessa de retirar as tropas do Iraque, justificativas oficiais para ações “democráticas” que ignoraram a vontade da maioria não faltaram. Ainda assim, independentemente das intenções de Julian Assange, que já afirmou “amar os mercados” e trabalhar com o Wikileaks por um “capitalismo mais livre e ético”, de Bradley Manning – caso tenha sido ele a real fonte dos vazamentos – ou de qualquer outra pessoa que venha a vazar documentos sigilosos, a difusão das informações vieram a público e expuseram argumentos ao ridículo. Como afirma Zizek, os dados vazados fazem com que a tragédia dê lugar à farsa: o que resta não é mais “a impressão do trágico equívoco de um agente sincero, mas a de um cínico trapaceiro sendo pego no seu próprio jogo”.

O SOLDADO INIMIGO DA GUERRA, pelo viés de Tiago Miotto

tiagomiotto@revistaovies.com

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