O QUE A GENTE QUER É UM CANTINHO PRA MORAR

Entre pequenas casas e estreitas ruas da Vila Lorenzi, localizada às margens da BR-397, na Zona Sul da cidade, um terreno largo, de chão gramado e com ainda poucas casas levantadas é avistado no meio das estruturas mais consolidadas da região. Trata-se do Campo do São Lourenço, uma antiga área abandonada há 14 anos, que desde janeiro de 2013 segue ocupada por famílias desamparadas e sem recursos financeiros para custearem uma moradia de aluguel.

No dia 8 de janeiro chegavam as primeiras famílias. Aos poucos, e num trabalho contínuo até hoje, novas moradias foram erguidas em meio ao campo vazio. José Oséas Silva Lopes, juntamente com sua esposa e quatro filhos, resume o sentimento da população que ali encontra a esperança de ter um lugar digno para viver: “A gente quer um cantinho pra morar, só isso. É por isso que a gente tá batalhando, porque a gente é cidadão e ama essa cidade.”. A batalha referida pelo primeiro morador da Ocupação diz respeito ao impasse judicial que ocorre desde fevereiro sobre àquela área.

Apesar de abandonado há vários anos, o campo do São Lourenço é uma área particular, sob posse da Sociedade Esportiva Medianeira, que tem Lucio Flavio Lautenschlager como presidente. Assim, desde fevereiro deste ano há uma sentença liminar determinando a reintegração de posse da propriedade. Apesar disso, as famílias continuaram ocupadas e, logo na primeira decisão judicial emitida, procuraram os serviços de um advogado local, Marlon Adriano Balbon Taborda, para ajudar no acompanhamento do caso. Marlon conta que interpôs o recurso e entrou com uma defesa cabível, em trâmite no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, porém a liminar para cumprimento da reintegração foi confirmada, obrigando as famílias a desocuparem o terreno.

Foto: Marina Martinuzzi

“ A área está com um problema legal anterior, restringido já no próprio registro do imóvel” – Marlon Balbon, advogado

O processo que envolve o terreno ocupado não se limita, porém, somente ao caso das famílias da Vila Lorenzi. Antigamente, o espaço representava um tipo de associação recreativa, como esclarece Marlon: “Eu vi as fotos do local. Tinha umas canchas de bocha, tinha um teto de santa fé também, que era uma sede deles [donos da associação].”. Com o início do abandono, por assim dizer, um casal de trabalhadores continuou cuidando dessa estrutura física e acabaram entrando com uma reclamatória trabalhista contra o dono do imóvel.

Mais tarde, a Justiça do Trabalho concedeu o ganho da causa, que representa uma dívida no valor de aproximadamente 230 mil reais e deve ser paga pelo proprietário aos dois trabalhadores. Com isso, a área do terreno encontra-se penhorada em sua totalidade, por determinação da lei, como explica o advogado Marlon: “Eles só não receberam em dinheiro ainda. Eles estão com a penhore, mas também não converteram a propriedade do bem para eles.”.

Em resumo, o casal tem o direito de receber esse valor em dinheiro ou em proporcional equivalente à área demarcada no terreno. No caso, Marlon esclarece que o devedor propôs essa troca, oferecendo o preço da dívida em área de terra. A posse da propriedade, portanto, deve estar com o dono do imóvel para que essa (mais antiga) sentença seja cumprida, finalmente.

“Então tu vai tirar esse pessoal daqui e vai botar aonde?” – Ademar Silva,  vice-presidente da Associação do Alto da Lorenzi

A área do antigo campo abandonado conta com 64 terrenos demarcados, sendo que hoje apenas 14 habitações estão completamente finalizadas. Quem conta na ponta do lápis os dados mais técnicos da região ocupada é Ademar Silva, vice-presidente da Associação do Alto da Lorenzi, uma das comunidades que compõe o bairro e é conseqüência de uma antiga ocupação que já completa 11 anos. Ao lado dele, também protagonista da luta por moradia, está Janiely Rosa, estudante de 19 anos que mora no São Lourenço desde janeiro.

Terrenos demarcados no campo. Foto: Marina Martinuzzi

Ambos munidos de reivindicações aos seus direitos básicos comentam o descaso com que o poder público vem tratando as ações ocorridas, sob o principal argumento de não poder interferir na situação, porque a área é particular. “Nós procuramos a prefeitura, mas ela se negou em nos propor ajuda”, afirma Ademar. Outra resposta vinda da Secretaria de Habitação e Regularização Fundiária foi a de que os ocupantes deveriam se inscrever no programa “Minha Casa, Minha Vida” – criado pelo governo federal em 2009. Os receios, entretanto, são muitos, uma vez que existem pessoas da Vila já inscritas no programa e que ainda não foram contempladas, como esclarece Janiely: “Quase todo mundo que tá morando aqui [na ocupação] já ta inscrito, se não me engano são 17 mulheres. Mas tem exceções, tem gente que já faz 3 anos que tá inscrita e até hoje nunca chamaram.”.

Nesse caso, assim como em outrosrelatados pela Revista, é visível a tentativa do governo local em solucionar todo e qualquer problema de habitação a partir do “Minha Casa, Minha Vida”. Não há estudo, sequer preocupação com as especificidades determinadas em cada situação. Sabe-se que os preços abusivos do mercado imobiliário inviabilizam a tentativa de pagar mensalmente um valor para moradia, e Ademar sintetiza isso de forma bastante objetiva: “Se tu for comparar o preço de aluguel hoje, não há condições. Se tu paga o aluguel, tu não come.”.

“O movimento é muito justo, acho que as pessoas que não têm moradia, têm que brigar por moradia. Mas não é invadindo terreno de particulares que eles vão ganhar isso.” – Lucio Flavio, proprietário do Campo

Mesmo sob um prazo de 10 dias, que encerra nesta sexta-feira (30/08), para praticar a desocupação da área, a população continua resistente na luta pela moradia digna. Reuniões e tentativas de acordo já foram feitas com o proprietário, porém nenhum negócio foi fechado. Janiely explica que o dono do imóvel pediu o valor de 300 mil reais à vista, tornando a forma de pagamento inviável para as famílias. Houve a tentativa de parcelar esse preço, já que todas as pessoas dali estão dispostas a arcar com preço da terra que ocupam, porém a proposta não foi aceita.

A versão do proprietário Lucio Flávio, que também é funcionário público estadual, difere em alguns pontos. Ele conta que desde fevereiro não foi procurado em momento algum pelo advogado que acompanha os ocupantes e ainda diz nunca ter se negado em conversar com as partes envolvidas no movimento. “Nunca o seu Marlon procurou. Ele procurou agora, há 15 dias atrás, quando a juíza determinou que fosse feita a desocupação.”, ratifica Lucio, também alertando para o fato de que Marlon só o procurou no momento em que não havia mais possibilidades de enviar recursos contra a decisão judicial. Além disso, o presidente da Sociedade Medianeira complementa sua justificativa contando que procurou o Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM) e houve garantias de que a ocupação do Campo nunca foi discutida como uma pauta nacional, o que, na visão de Lucio, deslegitima grande parte das forças ali empenhadas para a conquista do terreno.

O advogado Marlon Balbon deixa claro que sua representação limita-se à questão em torno da reintegração de posse, não sendo responsável por articular tentativas de acordo entre as pessoas ocupadas e o proprietário da área. Nesse sentido, [Marlon] ao explicar de que forma recorreu a mais um recurso no Tribunal de Justiça do estado, reafirma: “Ele [o proprietário] está mais preocupado em recuperar a posse [da terra]. Ele quer ter a posse livre, desembaraçada.”. O novo recurso, interposto por Marlon durante esta semana, solicita um novo julgamento do caso e que, dessa vez, o pedido seja apreciado por uma Câmara Cível do Tribunal, que conta geralmente com a participação de três desembargadores. A diferença é que a antiga decisão foi julgada somente por um desembargador. Dessa forma, nós próximos dias, ainda sem prazo definido, uma nova resolução pode determinar o futuro das famílias que ocupam o terreno na Lorenzi.

Em discussão sobre possíveis alternativas para solucionar o impasse, Marlon explicita que a prefeitura teria uma relativa facilidade para resolver a questão, se entrasse com um ato executivo para desapropriação do espaço. Ou seja, o poder público discutira o valor do terreno com o proprietário, pagaria o montante e passaria a exercer posse da propriedade. A partir disso, realizaria um projeto de urbanização com estudo topográfico já vinculado às estruturas básicas existentes, possibilitando a construção de ruas e calçadas, assim como a instalação de um sistema hidráulico-sanitário e de uma rede elétrica para a área.

Em meio às precárias condições de moradia, é evidente a falta de outros direitos constitucionais básicos para os ocupantes do São Lourenço. Ademar conta que os recursos de água e luz só chegam através do “gato”, e Janiely complementa, alertando para o grande buraco que tem atrás de sua casa e que representa o único esgoto possível para o local.

O posicionamento de que o poder público é omisso à situação converge entre todas as partes envolvidas neste processo. Para Lucio, a prefeitura municipal deveria fazer um cadastramento de todas as pessoas que estão lá, a fim de possibilitar a solução do problema de moradia das famílias realmente necessitadas. Nesse sentido, o proprietário também acusa a prefeitura de não se responsabilizar pelos prejuízos financeiros causados pela Ocupação. “Destruíram o campo de futebol que tinha lá, roubaram as goleiras do campo, roubaram mais de 600 metros de tela. Roubaram tudo o que tinha pra roubar lá. Ta completamente destruído. Quem vai me indenizar?”, questiona Lucio Flávio.

Na residência de Janiely Rosa, o esgoto cloacal permanece a céu aberto. Foto: Marina Martinuzzi

“O que nós temos que fazer? Temos que lutar por nós mesmos. O que nós mais queremos evitar é confronto com a polícia.” – Ademar Silva

De acordo com o ato número 006 da Brigada Militar, a desocupação deve se dar através de um levantamento da área com fotos e filmagens, juntamente com as estatísticas do número de pessoas que vivem ali e de quantos imóveis existem. Marlon salienta, ainda, que os moradores serão desarmados e terão espaço para atendimento da imprensa. “Eu acho que é uma mobilização antes nunca tida em Santa Maria, se tiver que ocorrer da forma que vai ocorrer”, completa o advogado.

Paralelo às afirmativas judiciais, as famílias que ocupam o Campo do São Lourenço permanecem firmes e conscientes de sua luta. Ao lado delas está um dos fundamentos máximos da Constituição Federal que embasa o Estado democrático brasileiro de direito: a dignidade humana. Dessa forma, seja amparada pela legalidade constitucional, seja impulsionada pelos gritos nas ruas, a Ocupação permanece viva no desejo de cada pessoa que está ali, apenas querendo “um cantinho para morar, chegar ao meio dia e ter sossego”, como diz José Oséas.

A Secretaria de Habitação e Regularização Fundiária foi contatada pela Redação, porém até a publicação desta matéria não havia dado nenhuma resposta.

O QUE A GENTE QUER É UM CANTINHO PRA MORAR, pelo viés de Marina Martinuzzi

marinamartinuzzi@revistaovies.com

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