Cidade cultura pra quem?

foto: Tiago Miotto
Para quem serve e quem se serve da cultura que a cidade de Santa Maria ostenta como título? Quem se apropria da agenda cultural da cidade e tem suas práticas valorizadas e fomentadas pelo poder público municipal?
Com a intenção de problematizar questões como essa, com um olhar aguçado e direcionado para a cultura de rua e a sua relação com os espaços públicos da cidade, em geral precários e negligenciados, o Coletivo Resistência Urbana realizou no dia 13 de junho a segunda edição do evento “Cidade-cultura pra quem?”.
O local escolhido para a atividade foi, pela segunda vez, o Centro Desportivo Municipal (CDM), conhecido como Farrezão. Mais especificamente, o evento ocorreu no estacionamento da obra do Centro de Eventos municipal, localizado no CDM, que está em construção há quase sete anos.
A escolha do lugar e do dia, um domingo, não foi nenhuma arbitrariedade: há pelo menos dois anos, o futuro estacionamento é frequentado por bikers e skatistas, que praticamente não conseguem mais usufruir da pista pequena e extremamente precária que subsiste ao lado da obra. O espaço é ocupado diariamente, mas é nos finais de semana que o movimento cresce.
foto: Tiago Miotto
No local, que é rodeado pela pista de caminhada do CDM e lembra um porão acinzentado, com suas vigas de concreto geometricamente alinhadas e o chão liso que motiva a predileção dos skatistas, os shows de rap e hardcore que faziam parte da atividade aconteceram no breu quase total, evitado apenas por dois pequenos e amarelados refletores que iluminavam os grupos e o público.
Para os skatistas e frequentadores do espaço, a esparsa iluminação conseguida pelo coletivo foi uma grata exceção, pois há cinco meses a escuridão é a regra, assim que o sol se vai e a luz deixa de entrar pelas largas aberturas laterais do estacionamento.
Isso ocorre porque, em fevereiro de 2014, a fiação de cobre foi roubada da obra. A falta de uma providência aparentemente simples – repor os fios e garantir iluminação para o espaço, visto que ele é ocupado e usufruído por centenas de jovens de todas as regiões da cidade, muitos deles trabalhadores e estudantes que têm o turno da noite como único horário para a prática de seu esporte-cultura – é um exemplo das motivações e dos questionamentos do coletivo Resistência Urbana.
“Esse evento surgiu pra questionar a atual política que o poder público vem tendo, que acaba impedindo vários jovens de participar dessa cultura que a cidade produz”, explica Vinícius Moraes Brasil, integrante do coletivo, mestrando em Educação Física na UFSM e antigo frequentador do espaço.
“Então, é uma cultura mais de resistência, mais voltada a esse público da periferia, esse pessoal que está ocupando os espaços públicos da cidade. O intuito é demonstrar a precarização desses espaços, mas mostrar que tem resistência na cidade, que a gente é contra o que está acontecendo”.
foto: Tiago Miotto
O coletivo santamariense surgiu depois das manifestações de junho do ano passado, quando amigos e conhecidos praticantes de esportes e atividades urbanas como skate e BMX uniram-se para fazer um levantamento da situação dos espaços públicos da cidade e do descaso com estas práticas ligadas à cultura de rua em um vídeo-documentário.
A primeira edição do “Cidade-cultura pra quem?” ocorreu em fevereiro deste ano, ocasião em que o vídeo foi exibido pela primeira vez. Nele, os membros do coletivo denunciam a situação de alguns dos espaços públicos destinados ao lazer e à prática de esportes, com foco na situação das duas pistas públicas da cidade – a do Farrezão e a do bairro Tancredo Neves, anexa ao ginásio Oreco.
Além de uma análise geral da região e do ambiente de ambos os lugares, outro local em estado precário mostrado pelos autores do vídeo é a praça do bairro Nonoai, na zona sul de Santa Maria. Bikers e skatistas “locais” e frequentadores das praças são entrevistados e falam sobre a história e a situação dos espaços.

Na segunda edição do “Cidade-cultura pra quem?”, o coletivo decidiu dar mais espaço aos grupos de rap locais e articular a atividade com a cultura Hip Hop. Segundo Vinícius, atividades como a Batalha dos Bombeiros e o Hip Hop na Pracinha, realizadas pelo Coletivo de Resistência Artística Periférica (CO-RAP), serviram de referência e inspiração. “Pra fazer esse evento, a gente se espelhou muito no que essa gurizada vem fazendo. E aí pensamos em aliar isso, essa gurizada do rap e do Hip Hop com a gurizada da comunidade aqui”.
Dois dias antes de a atividade ser realizada, o coletivo ainda não tinha certeza se o espaço seria liberado ou não. Vinícius conta que buscou a Secretaria de Esportes, mas que havia desencontro entre as exigências da Guarda Municipal e o que fora solicitado pela secretaria.
“A Guarda Municipal veio falar comigo e o guarda disse que o secretário não tem nada que ver, que é a Guarda que manda no espaço. Aí eu vi a forma truculenta como a polícia trata com a comunidade. Eu frequento aqui desde a década de 90, a minha família vive aqui desde a década de 70, antes de ter o Farrezão e, antes de ter a guarda, a relação não era assim. Isso é um ponto muito negativo: falta diálogo do poder público com a população. Isso faz com que a gente tenha que ocupar mais esse espaço pra mostrar que ele é nosso”.
foto: Tiago Miotto
Matheus Almeida Bessa, skatista e integrante do grupo de rap Nova Beat, foi o mestre de cerimônias da atividade. Na avaliação de Matheus, a falta de diálogo em relação aos espaços públicos se reflete também na falta de espaço para algumas manifestações culturais.
“O pessoal aqui da volta tem visto na mídia as pessoas reclamando sobre a violência, o uso de drogas, mas o que acontece é que não existe espaço pra o tipo de cultura desse pessoal. Esse evento já é um espaço pra gente mandar nossa ideia e orientar duma certa forma essa gurizada. Não é podando certas coisas que a situação vai mudar, que a gurizada vai deixar de se assassinar nas ruas, de brigar ou de usar drogas. Vai ser através de eventos com a cultura que eles curtem, e não com os eventos comerciais, Feisma, Mercocycle, balonismo…Não é com isso que se constrói um lugar melhor pros outros”, afirma o MC.
Manifestações culturais e artísticas que normalmente sofrem com o preconceito e a estigmatização, seja pela origem de seus protagonistas ou pelos espaços em que circulam, não costumam conhecer incentivos e normalmente encontram o poder público apenas por meio dos aparatos de segurança e repressão.
Em dezembro de 2012, por exemplo, três adolescentes foram detidos por picharem a pista de skate do Farrezão. A ação dos jovens foi descoberta pela Guarda Municipal por meio das câmeras de monitoramento instaladas no local. Sem elas, a ação provavelmente passaria despercebida, pois a pista – em péssimo estado de manutenção – é coberta de grafites e pixações.
O dinheiro público do município garante as rondas seletivas da Guarda Municipal – capaz de autuar pichadores, mas não de evitar o roubo dos fios que deixaram o espaço dos skatistas sem luz – e a instalação de câmeras de vigilância, mas não é empregado na reforma da pista nem na recolocação dos fios roubados.
foto: Tiago Miotto
Enquanto a luz do sol definhava e as luzes da pista de caminhada se acendiam do lado de fora do estacionamento, o grupo de Matheus, Nova Beat, apresentava-se junto aos nove MCs, grupos de rap e bandas de hardcore que estavam na programação inicial e os vários outros que foram ao local e aproveitaram o espaço para mandar suas letras e rimas, de improviso ou não.
Jovens vindos de todas as zonas da cidade, do centro e principalmente das periferias, aglomeravam-se nas proximidades do telão e do equipamento de som, dando ainda mais corpo ao público formado pelos frequentadores usuais do espaço aos domingos.

“Quem tá dando um significado a essa obra aqui é a juventude, é a galera do skate que ocupa o estacionamento andando, é a galera que joga o futebol aqui no Farrezão, é essa galera que acaba resistindo a isso”, afirma Vinícius.
Enquanto bikers ainda conseguem utilizar a pista, pelo fato da bicicleta ser maior e não trancar tanto nas rachaduras e no chão áspero, os skatistas fizeram do estacionamento do Farrezão um dos melhores lugares que existem para a prática do esporte: além de ser coberto, conta com uma diversidade de obstáculos construídos por eles mesmos e já foi até palco do Circuito Skate Interiorano Gaúcho, em outubro de 2013, competição da qual participaram mais de 100 skatistas de todo o estado em diversas categorias.
O futuro da pista local e do estacionamento como local de lazer, contudo, é incerto. O Centro de Eventos que está em construção há quase sete anos tem como principal função sediar a Multifeira de Santa Maria, novo nome da tradicional Feisma (Feira Industrial de Santa Maria). A feira, de cunho comercial e absolutamente privado, é organizada desde a década de 1990 pela Câmara de Comércio e Indústria de Santa Maria (Cacism). A edição de 2014 ocorre em novembro.
foto: Tiago Miotto
Segundo Vinícius, a pista deve ser substituída por um estacionamento para o Centro de Eventos, como parte de uma série de medidas privatizantes que tomaram o espaço. “Eles já tiraram os horários das quadras esportivas da comunidade. Agora, são escolinhas privadas de futebol que jogam ali, o projeto Volei Futuro e equipes que jogam a série bronze na cidade. A Bramoto, que é uma empresa privada, tem horário aqui e a comunidade que frequentava aqui antes de ter os ginásios está cada vez mais excluída, ficou só com dois horários por semana”.
Ainda segundo o mestrando, no ano passado a prefeitura ocupou dois ginásios só com garrafas pet para montar a decoração de Natal. “Para um evento que acontece uma vez por ano, acabou excluindo o projeto de capoeira que tinha pro pessoal das periferias, o projeto de judô e as escolas de samba que utilizavam esse espaço”.
O coletivo destaca que apoia o recente projeto da Prefeitura de construir uma pista no parque da Vila Jockey, na zona oeste da cidade, mas afirma que isso não exclui a pista e o espaço existentes no Farrezão, únicos do gênero na região central. Enquanto novembro não chega e a construção não é finalizada, o espaço e seus frequentadores vivem um período de trégua, ou parecem viver: para quem precisa insistir para existir, a cultura da resistência se renova e se reafirma a cada dia.
  
  
  
  
  
  
Cidade cultura pra quem?, pelo viés de Tiago Miotto

Um comentário sobre “Cidade cultura pra quem?

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

xxn xnnx hindi bf xnxxx junge nackte frauen

Posts Relacionados

Comece a digitar sua pesquisa acima e pressione Enter para pesquisar. Pressione ESC para cancelar.