Limite contestado, pero no mucho

Foto: Gregório Mascarenhas

1985. O general João Baptista Figueiredo, último presidente do período ditatorial militar do Brasil, instala repentinamente uma vila em uma zona a sudoeste da cidade de Sant’ana do Livramento, em terras doadas pelo estancieiro Thomaz Albornoz. Rapidamente, Julio María Sanguinetti – primeiro presidente da nova democracia uruguaia – contesta a ocupação e relembra um litígio datado de 1934. Desde então, essa região de 22 mil hectares reivindicada pelo Uruguai têm, em sua área mais austral, um povoado brasileiro.
O Rincão de Artigas, nome dado à região contestada, pertenceu ao Uruguai até 1851. À época, a fronteira com os brasileiros era delimitada pelo rio Ibicuí, na atual cidade de Rosário do Sul. Naquele ano foi feita uma nova demarcação entre uruguaios e brasileiros, que teve o rio Quaraí como referência. Foi só em 1934 que, durante a restauração dos marcos fronteiriços, os orientais reclamaram que os brasileiros haviam confundido o arroio Moirões, mais ao norte, com o arroio Maneco, ao sul.  O governo brasileiro fez pouco caso da reclamação, mas, desde aquela data, existe uma pendência sobre a área.
Em 1984, a extensão litigiosa foi reclamada novamente pelo governo uruguaio. Em consequência, Figueiredo criou a vila Albornoz – uma espécie de demarcação de território. Até então, só existiam fazendas do lado brasileiro. “Da noite para o dia, vieram helicópteros militares e construíram uma caixa d’água, um centro comunitário e uma escola”, dizem os moradores mais antigos do sul da fronteira.
Masoller, ao contrário, desenvolvia-se progressivamente, às margens da Ruta 30. De súbito, além da vila, um típico comércio de fronteira se instalou por lá. Albornoz e Masoller chegaram a ter quatro postos de gasolina, algo desproporcional ao tamanho dos povoados. Na parte mais ao sul de Albornoz, atrás de um dos marcos divisórios e exatamente às margens da Ruta 30, existiu um posto brasileiro de bandeira Ipiranga, hoje abandonado. Empresas uruguaias daquela região se deslocavam até a fronteira para abastecer. Na época, por causa da desvalorização da moeda brasileira, o combustível custava a metade do preço que seria pago no Uruguai.
A última menção diplomática ao assunto foi em 1988. À época, o Uruguai enviou outra nota ao Brasil, com o mesmo argumento da confusão com o nome dos arroios. O Itamaraty respondeu que a posição do Governo é oficial e permanente. Nos anos seguintes, o tema voltou à tona no Uruguai como pauta de alguns políticos. Em maio de 2009, por exemplo, o senador do Partido Nacional Sergio Abreu cobrou do governo oriental uma posição mais ativa para defender seus limites com o Brasil. Existe, ainda hoje, uma lei uruguaia que diz que, nos mapas do país, aquela região deve aparecer como um “límite contestado”. Nos mapas brasileiros, ao contrário, o local aparece como território nacional efetivo.
Nos mapas uruguaios, o Rincón de Artigas aparece como “límite contestado”. Aqui no Brasil, entretanto, a região aparece como território nacional efetivo. O Google Maps (ilustração acima) não quis tomar parte na rusga e indicou a linha fronteiriça com um pontilhado.

 
 
Não é fácil chegar na vila Thomaz Albornoz pela “estrada da linha”
A estrada que corta Masoller, no lado uruguaio, é a Ruta 30, uma das principais do noroeste do país. É asfaltada e tem um fluxo de automóveis grande para os parâmetros do despovoado interior uruguaio. Por ela, chega-se a Sant’ana do Livramento em cerca de uma hora. Entretanto, as autoridades brasileiras, por conta da burocracia que recai sobre os veículos oficiais, não podem utilizá-la. Os fronteiriços que desejam por ali seguir devem pagar um seguro anual de aproximadamente duzentos reais, dependendo do veículo. Em prática, isso força os moradores da região a usarem a estrada de terra. Conforme depoimento dos locais, a maior parte da população não tem dinheiro para pagar a taxa.
Pelo lado brasileiro, oitenta quilômetros separam Sant’ana do Livramento da vila Thomaz Albornoz. O caminho começa nas cercanias da cidade, na BR-293. Passados dez quilômetros de asfalto surge, à esquerda, o corredor de chão batido que leva a Albornoz. Nos campos, aparecem os primeiros marcos de pedra que dividem o Brasil do Uruguai. A estrada segue a sudoeste, serpeando pela borda superior de um planalto chamado de Coxilha de Sant’ana. À esquerda o relevo baixa, às vezes suave, às vezes abrupto, coberto por arbustos e algumas árvores. À direita, as planuras da campanha.
A estrada da linha é paralela à fronteira e atravessa-a várias vezes. O viajante pode nem perceber. Foto: Gregório Mascarenhas

A trilha, conhecida pelos locais como “estrada da linha”, cruza a fronteira infinitas vezes. Ora se está no Uruguai, ora no Brasil. Os marcos divisórios estão sempre à vista do viajante. O panorama é de pampa em estado puro, pontuado por estâncias e ranchos, todos muito distantes uns dos outros. A estrada está em péssimas condições, existem buracos do tamanho de carros e pedras do tamanho de bolas de futebol – e volta e meia some, tomada pela vegetação. É um sinal: pouquíssima gente passa por ali. Essa é uma região de baixíssima densidade populacional, tanto do lado brasileiro quanto do lado uruguaio. Os homens que lá vivem são os peões, gaúchos – ou gauchos – que atravessam o gado de um lado para o outro.
Ao longe, surgem rumores de uma tropa. Enforquilhados sobre os cavalos, tocando o gado, dois homens se aproximam. “Albornoz? Tá pertito, siga pelo lado direito”. O idioma não permite distinguir-lhes a nacionalidade. “Sou brasileiro, mas moro no Uruguai. Tem um marco na porta da minha casa”, diz um deles rindo-se detrás de um vasto bigode. Vencidos os oitenta quilômetros, a vila de Thomaz Albornoz vai se acercando. Ao longe, depois de uma taipa de pedra, as casas baixas e as torres de telefone do lado uruguaio.
Uma cena comum na fronteira brasileira com o Uruguai. Foto: Gregório Mascarenhas

A vida em na pequena conurbação fronteiriça
Sábado, meio-dia – horário de almoço e de siesta. O único estabelecimento aberto da região fica do lado brasileiro, uma mercearia. “Aqui tem Liquigás”, diz uma pintura desgastada na parede do comércio. Antes que um chamado aos compradores, é um símbolo: estamos do lado brasileiro. A atendente parece desconfiada, mas volta com a água para o mate que fora pedida. Dona Marta é a dona do Varejão Macanudo, identifica-se como brasileira e fala um fluente portunhol. Se, ao primeiro contato, mostra-se reticente, converte-se depois em uma afinada guia das peculiaridades do local.
Gabriel, primogênito da comerciante, frequenta a escola uruguaia de Masoller. Torce pelo Grêmio e pelo Nacional de Montevidéu, ao contrário de seus amigos uruguaios, que, em sua maioria preferem o Botafogo ou “aquele time vermelho e preto”, referindo-se ao Flamengo. Ao lado do Macanudo, conversa desencilhando um cavalo, com sotaque castelhano mais pronunciado do que o da mãe. O menino cruza a fronteira todos os dias para estudar porque, em situação contrária à do outro lado, o poder público brasileiro quase inexiste.
Segundo Dona Marta, a vila Albornoz tem 126 moradores, aparatados por uma escola e alguns poucos professores vindos de Livramento. Os encarregados da educação só chegam por lá quando se atrevem a cruzar a estrada de terra que acompanha a fronteira. Demoram mais de quatro horas para andar oitenta quilômetros. Por isso, quando vão a Albornoz ficam por cerca de dez dias e então voltam para a cidade. Bombeiros, médicos e policiais também têm de realizar o mesmo trajeto, o que deixa os brasileiros da região ilhados em terra firme. Os servidores do posto de saúde uruguaio nem perguntam a nacionalidade do enfermo que busca assistência.
No Varejão Macanudo tem de tudo. Foto: Gregório Mascarenhas.

Pelo menos uma vez por ano, a vila brasileira recebe visitantes. São os militares, que chegam de helicóptero. Trazem médicos, dentistas, veterinários e registro civil. Brasileiros e uruguaios aproveitam os serviços. A presença do Exército, além do caráter cívico, também é um sinal: aquele local torna-se território brasileiro efetivo, mas só temporariamente.
Poucas pessoas passeavam naquela tarde pelas ruas de chão batido de Albornoz e Masoller. Algumas mulheres e crianças saem às ruas, aproveitando o sol que ameniza os ventos frios da planura. Os homens são minoria na vila, pois são peões nas fazendas durante o dia. Algumas casas simples, um ponto de moto-táxi, um supermercado e uma agropecuária formam a paisagem do lado norte da fronteira. A velha caixa d’água de metal que transborda constantemente é o ponto máximo de Albornoz. Em frente, uma pracinha e uma cisterna. Ao atravessar a avenida, na frente do Varejão, há um marco divisório. Cruza-se a fronteira ao sul.
A caixa d’água é o ponto máximo de Thomaz Albornoz. Foto: Gregório Mascarenhas

A vila de Masoller está encravada entre três departamentos uruguaios: Salto, Artigas e Rivera. Ao contrário do lado brasileiro, o poder público é presente. O povoado conta com uma escola, um liceo (que é semelhante ao Ensino Médio brasileiro), um juizado, um posto policial e uma policlínica. As casas são quase todas iguais, com pé-direito baixo, telhado de amianto e paredes pintadas de branco. No centro do povoado existe uma praça, um campo de futebol e um mausoléu.
Um sábado pacato em uma localidade rural da fronteira com o Uruguai. Foto: Gregório Mascarenhas

Assobiando, um funcionário da prefeitura de Rivera começa a recolher os sacos de lixo colocados junto à porta de uma das casas de Masoller. Seu nome é Julio Fontes. Sobe em seu caminhão, anda mais dez metros, e para na próxima casa. Para ele, a discórdia entre os países não muda a vida cotidiana das pessoas. Diz que é iniciado na Igreja Mundial do Poder de Deus – um dos mais recentes fenômenos midiáticos de religião no Brasil – e que foi até Porto Alegre para assistir a um culto ministrado pelo apóstolo Valdemiro Santiago. Segundo Julio, o missionário foi o único sobrevivente de um naufrágio no Oceano Índico. Busca o jornal da igreja – que é escrito em português – no porta-luvas do caminhão, mas interrompe a leitura para conversar com o amigo Souza, que é um uruguaio descendente de brasileiros e um dos poucos homens que passam a tarde de sábado na vila. Os dois mostram-se extremamente receptivos e, para eles, a pessoa certa para falar sobre o litígio fronteiriço é o enfermeiro de Masoller. “La casa del enfermero está en el otro lado de la calle. Hay un galpón de madera al lado y una moto Yumbo negra en el garaje”, diz Souza.
Yoni Ferreira é enfermeiro da policlínica de Masoller. Apaixonado por rádio, é voluntário na emissora comunitária da vila, a Del Valle FM – que é mantida pela UNESCO e pelo governo oriental. Apresenta alguns programas em uma pequena sala que serve como estúdio e que tem, em uma das paredes de madeira, uma bandeira do Uruguai. Entre microfones e aparelhos de som, ele explica que a rádio é o único meio de comunicação local.
Não há sinal radiofônico vindo de outras regiões do Uruguai ou do Brasil e nem sequer televisão aberta. Só é possível sintonizar TV através de antenas parabólicas, que são raras tanto em Masoller quanto em Albornoz, e a única programação que chega ao lugar vem de São Paulo ou do Rio de Janeiro – Globo, SBT ou RedeTV!, por exemplo. A influência do Brasil sobre os uruguaios é muito maior do que a relação inversa: todas as notícias que chegam – e que são tema de conversa entre os moradores – vêm do lado brasileiro. “Los niños de acá creían que el presidente de Uruguay era Lula”, diz Yoni. “Existe también una pérdida muy grande de la indentidad regional – y no sé si es bueno o malo”, completa.
Os terrenos na vila Albornoz são, até hoje, dizem os moradores, cedidos gratuitamente pelo governo a quem quiser ocupá-los. Entretanto, a demarcação de território pretendida em 1985 pelos militares não teve sucesso: atualmente, moram mais uruguaios do que brasileiros em Albornoz.
 
Limite contestado, pero no mucho, pelo viés de Gregório Lopes Mascarenhas e Mathias Rodrigues.

Um comentário sobre “Limite contestado, pero no mucho

  1. El error limitrofe es q los delegados validarion el arroyo maneco como si fuese el arroyo de la invernada (que es el verdadero limite) como dato el delegado uruguayo era jose maria reyes que era argentino.cuando se detecto años despues el error uruguay contesto reclamo el limite y el baron de rio branco delegado brasilero reconocio el error pero brasil nunca lo aplico.

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