Os guarani querem sua tekoa inteira

Em atividade da escola da Tekoa Guaviraty Porã, indígenas consomem a Kaguijy, bebida tradicional guarani. foto: Tiago Miotto
Em atividade da escola da Tekoa Guaviraty Porã, indígenas consomem a Kaguijy, bebida tradicional guarani. foto: Tiago Miotto

No fim do ano passado, as notícias eram boas para o povo guarani que reside na aldeia Tekoa Guaviraty Porã, localizada em Santa Maria: depois de quase três anos vivendo na reserva conquistada com muita luta, a comunidade finalmente iria ter o acesso à totalidade do terreno, de propriedade do governo estadual. Até então, a área estivera cedida à Fundação Educacional para o Desenvolvimento e Aperfeiçoamento do Ensino (FUNDAE), por meio de um contrato que havia vigorado por 20 anos e se encerrava ao fim de 2014.

Foram quatro décadas de resistência e sofrimento no Arenal, em situação extrema às margens da BR-392, até a comunidade conquistar, em 2012, o direito a viver em uma terra própria. Com o fim e não renovação do contrato do governo com a FUNDAE, finalmente a comunidade poderia desfrutá-la por completo. Ainda em dezembro de 2014, o governo estadual assinou um contrato de cessão do terreno para a Fundação Nacional do Índio (FUNAI), visando atender aos guarani.

O termo foi publicado no Diário Oficial do Estado no dia 31 de dezembro, passando a valer a partir desta data. Com prazo de 20 anos, a cessão garantiria o funcionamento da Escola Estadual Indígena de Ensino Fundamental Yvyraijá Tenondé Verá Miri.

Os prédios que até então eram ocupados pela FUNDAE poderiam garantir salas de aula para a escola bilíngue, uma sala de reuniões e um espaço para que as verbas recebidas mensalmente pela Secretaria de Saúde Indígena (SESAI) pudessem ser aplicadas, equipando um posto de saúde indígena local. Além disso, a construção de treze banheiros, depois de dois anos de espera, estava prestes a ser concretizada.

Famílias e lideranças indígenas da Tekoa Guaviraty Porã reuniram-se para discutir a situação da aldeia e elaborar uma ata para o MPF. À esquerda, o cacique Afonso da Costa. foto: Tiago Miotto

Quase três meses depois dessas boas notícias, contudo, os guarani ainda estão incertos quanto ao rumo que os prédios terão. Os treze banheiros espalhados pelo território estão prontos, mas sem água, sem luz e sem as chaves, às quais ninguém da comunidade teve acesso ainda. Os equipamentos da FUNDAE permanecem ocupando os prédios do governo estadual, e a comunidade se sente acuada pela presença constante de um guarda municipal, que faz rondas diárias dentro dos limites da aldeia.

Por todas essas questões, na última quinta-feira, 20 de março, lideranças guarani da Tekoa Guaviraty Porã foram ao Ministério Público Federal (MPF) entregar uma ata assinada pela comunidade indígena, onde reivindicam a totalidade do território e pedem providências ao órgão.

“Nosso povo esta triste e muito decepcionado porque por muitos e muitos anos esperamos o momento que nunca chegou de podermos viver nossa cultura e modo de ser de maneira plena, como nosso direito garante. Também estamos tristes e decepcionados porque por muitas décadas sonhamos com condições dignas de vida e agora, quando é chegado o momento de receber estas garantias, as portas nos foram duramente fechadas e nos sentimos enganados”, afirmam os indígenas no documento entregue ao MPF.

Atualmente, residem 18 famílias na Tekoa, e o número total de pessoas, entre crianças, adultos e idosos pode chegar a cerca de cem.

Há muitas crianças na Tekoa. Por falta de estrutura, algumas delas ainda estão sem aula na aldeia. foto: Tiago Miotto
Há muitas crianças na Tekoa. Por falta de estrutura, algumas delas ainda estão sem aula na aldeia. foto: Tiago Miotto

Enquanto o ano letivo já corre há quase um mês, pelo menos sete crianças de quatro anos de idade estão sem poder iniciar seus estudos, devido à falta de espaço para as aulas. A escola bilíngue – que conta com um professor indígena e três professoras não indígenas – atende a 52 alunos em diversos níveis de alfabetização e a uma turma noturna do EJA.

A escola está improvisada em uma das casas indígenas, de madeira, construída com auxílio do MPF. Pela manhã, duas turmas dividem a única sala em aulas simultâneas: metade das classes são voltadas para uma parede com um quadro negro, e metade das classes é voltada para a parede oposta, onde fica outro quadro. As professoras, contratadas pelo estado, também não têm acesso a banheiro durante o período em que estão na comunidade.

À medida que os dias passam, os indígenas permanecem sem providências e sem previsões, e boatos começam a circular a respeito do rumo que terão os prédios , de um possível interesse da Prefeitura Municipal nas construções da área e de quando será a cerimônia de inauguração dos banheiros.

foto: Tiago Miotto
No fim de 2014, o estado cedeu o resto do terreno à FUNAI e os prédios deveriam ser ocupados para a escola e outras necessidades dos guarani. Até agora, porém, ninguém teve acesso às chaves. foto: Tiago Miotto

“Se quiserem fazer cerimônia, para tirar fotos e mostrar o trabalho concluído, que façam, mas entreguem as chaves antes. Já foram anos de espera, a comunidade não pode ser obrigada a esperar ainda mais”, afirma Mateus Bagetti, integrante do Grupo de Apoio aos Povos Indígenas (GAPIN) presente à reunião com a assessoria do MPF na quinta-feira.

O que mais preocupa os indígenas é a presença constante do guarda municipal e a possibilidade de, mais uma vez, verem sua privacidade – algo especialmente importante para a cultura guarani – ser invadida, caso os prédios estaduais não sejam cedidos para a comunidade.

“Por estes dois anos que aqui vivemos, nunca pudemos viver de maneira plena nosso Nãnde Reko, nossa cultura e nosso modo de ser. Nossa aldeia nunca pode se completar, pois muito perto de nosso espaço viviam outras pessoas (não indígenas) e com o funcionamento da FUNDAE sempre estávamos sendo vistos. Não é que não gostamos do Jurua (branco), mas é que para nós, os Mbya, existem coisas que são sagradas e que precisamos manter entre nós mesmos, nosso canto, nosso rito, nossa dança e nossa reza, nosso povo é assim, é assim que somos e vivemos”, afirmam na ata assinada pela comunidade indígena.

  

Conforme explicam integrantes do GAPIN, a discussão judicial está acontecendo porque a “gleba” – como se chamam na Justiça as partes do terreno – de número 8 não foi inserida no contrato firmado entre o governo estadual e a FUNAI. É nesta parte do terreno que estão localizados os prédios, também de propriedade do estado, nos quais a escola profissionalizante da FUNDAE funcionava, e por isso a FUNDAE teria recorrido na Justiça, argumentando que, assim sendo, não precisaria sair do espaço.

Segundo o GAPIN, a última decisão judicial confirma que os prédios do terreno devem, de fato, ser destinado aos indígenas e ao funcionamento da escola guarani, e só não foram inseridos no contrato de cessão porque a escola é uma responsabilidade do próprio estado.

Como os prédios ainda não foram desocupados e um funcionário da FUNDAE continua residindo no local, Prefeitura Municipal de Santa Maria e FUNDAE já foram multadas em R$ 15 mil cada pela Justiça Federal, e têm um prazo de 15 dias para retirarem os equipamentos que eram utilizados na escola profissionalizante.

Indígenas consomem o Kaguijy, bebida tradicional dos guarani. foto: Tiago Miotto

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Na terça-feira pela manhã cedo, enquanto lideranças guarani reuniam-se para discutir, ler e assinar a ata que entregariam ao MPF, o professor indígena Karai Papa saía de sua casa na Tekoa Guaviraty Porã para caminhar alguns metros até a escola de madeira onde dá aula para 52 alunos e alunas. Junto com as professoras e a diretora Ana Cristina, levaria os estudantes para a casa de dona Irma, Kunhã-Karai da comunidade. A Kunhã-Karai é a a indígena mais velha da aldeia, que atua como líder espiritual e portadora do conhecimento sobre ervas e ritos. Na Tekoa Guaviraty é o posto dessa senhora que, como outros adultos e o próprio cacique Afonso, quase não fala português.

Lá, crianças e jovens indígenas tiveram uma aula sobre a Kaguijy, bebida ancestral que foi preparada pela anciã. Enquanto sorviam o líquido espesso feito de canjica, água e farinha, tiravam fotos em celulares e conversavam em guarani, desfrutando do tempo que parecia passar mais lento dentro dos limites da Tekoa.

Dona Irma, Kunhã-Karai da aldeia, servindo-se da bebida tradicional preparada por ela e oferecida à turma da escola, professores e visitantes da ocasião. foto: Tiago Miotto

Poder viver e proteger sua cultura tradicional de forma plena é um direito e uma reivindicação de todos os povos indígenas. Preservar seus cantos, alimentos, rezas e sua língua parece algo simples, mas na maioria dos casos encontra obstáculos bem concretos. O próprio fato de os guarani de Santa Maria estarem em uma reserva cedida pelo estado, e não em seu território tradicional, cujo estudo demarcatório sequer foi iniciado, é uma demonstração disso.

Na ata que cobra providências ao MPF, os guarani relembram: “Vivemos por quarenta anos em baixo de lonas pretas, sem água, sem saneamento, sem condições de vida. Tivemos que enterrar nossos filhos que o frio levou embora e esta dor ainda carregamos em nossas lembranças e nossos corações”. Os indígenas afirmam ainda que por quatro décadas tiveram que viver sem certeza do amanhã, “sem poder nem ao menos ter direito ao silêncio porque os carros passavam toda hora para lembrar que estávamos fora de nossa terra, que ela havia sido tirada de nós”.

Depois de protocolarem a ata, as lideranças retornaram à sua Tekoa, que fica próxima do distrito industrial na zona oeste da cidade, e, por ora, aguardam as providências. Por quatro décadas de resistência, a luta parece se intensificar. Os guarani não querem seus direitos pela metade. Querem sua Tekoa inteira.

  

  

Os guarani querem sua tekoa inteira, pelo viés de Tiago Miotto

Um comentário sobre “Os guarani querem sua tekoa inteira

  1. Enquanto o poder público e a sociedade como um todo continuar a negar a cultura indígena como parte constituinte e fundamental da cultura brasileira e não como meros coadjuvantes da formação da nação, estes não terão respeitados seus direitos e seu espaço. Nossos políticos precisam de uma vez por todas incluírem estes representantes de nosso povo em suas agendas e políticas públicas sem preconceitos e o que é mais triste e mais perverso, a invisibilização de uma parte fundamental de nossa cultura.

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