Quem desce a Rio Branco em Muamba, jamais esquece o passo do samba

Ei, Manoel! Manoel, por favor, Manoel!. O jovem sambista e dourado volta o rosto para trás. Veste amarelo ouro de Oxum. Não enxergamos a fisionomia de seu rosto propriamente, mas o que sobra de nariz sob argolas douradas em fios que, pendurados sobre a cabeça, na altura dos olhos, chacoalham com o samba. “Estou vestindo Oxum”. Manoel está ali porque, segundo ele, é militante e gosta de festa. “Militante com festa também combina”, diz, gesticulando com os braços entre as árvores da praça central de Santa Maria, no centro do Rio Grande do Sul.

 

 

À nossa volta, centenas de pessoas pintam o rosto, erguem estandartes, amarram melhor o tênis, rodopiam saias sob a luz amarela do início de noite quente. A cabeleireira Flávia Gomes, porta estandarte da Escola de Samba Mocidade Independente das Dores, carrega o estandarte-mor da noite, que conclama à avenida o espaço para um festa sem preconceitos. “Abre a faixa aí, a muamba já vai sair”. É dada a largada tão esperada. “Pessoal, abram alas para nossa Queem Moma, título especial inventado na Muamba para anunciarmos nossa rainha: Lulu Boquete de Veludo!”. Lulu veste saia rodada à altura do joelho, blusa preta e um bolero branco. Na cabeça, um brilhoso esvoaçar de penas laranjas. Do alto de um caminhão de som transformado em trio elétrico, Vilnes Gonçalves Flores Junior berra aos quatro cantos da cidade: “sem machismo, sem racismo, sem homofobia e sem intolerância religiosa!” Começava a Muamba.

Lulu Boquete de Veludo. Foto: Bibiano Girard

Nascido nos fundos do terreiro de sua vó, em Santa Maria, Vilnes cresceu e agora é mais conhecido por Nei D’Ogum. O nome de registro existe para documentos e para os íntimos, mesmo que a vasta maioria o conheça pelo nome em homenagem a seu orixá. Dona Ducha, sua parteira, teria dito: “Esse guri orelhudo e narizudo só pode ser de Ogum”. Assim como Ogum, que forjava suas próprias ferramentas para ir à caça ou à guerra que ele mesmo sagrava, Nei usou do que tinha – e do que não tinha – para colocar na principal avenida da cidade o povo que sempre defendeu. “Alegre, porque ninguém precisa ser triste quando luta, né, guris?”.

Idealizador da festa, Nei conseguiu reunir num ato festivo coletivos, integrantes de terreiro, sambistas, integrantes de escolas de samba, musas e musos compondo um gigantesco bloco de carnaval em pleno mês de março. Seu marido, Ricardo de Agué, entre o levanta pó de seu samba, trazia consigo a representação da comunidade de Terreiro Ilê Axé Ossanha Agué, onde é líder e pai de santo. O casal ficou conhecido na cidade em 2004, quando um outdoor fora instalado em uma grande avenida, a Medianeira. Na foto, os dois estavam abraçados e sorrindo. No letreiro, lia-se: “Já tem data! Nei e Ricardo vão casar”. O casal divide com duas bageenses o título de primeira união estável homoafetiva do país.

Foto: Tiago Miotto

“Sem machismo, sem racismo, sem homofobia e sem intolerância religiosa”, lembra Nei sobre o trio iluminado por luzinhas a cada vinte minutos, aproximadamente. A muamba, surgida como ato de militância em formato de festa, inicia sua caminhada pela descida da avenida Rio Branco, na área antiga do Centro, entre edifícios abandonados, bares de uma mesa só e hotéis populares. Do microfone, ouve-se o chamado ao bloco “Flores da Rua”, formado pelas mulheres integrantes do coletivo Marias Bonitas Fazendo História, uma autoorganização feminina de economia solidária. Na festa, traziam duas musas: Stéfany Souza e Elisiane Ribeiro Paim. O estandarte vinha no alto, erguido por Marciane Lopes.

Da varanda de um edifício de poucos andares, imponente em suas décadas passadas, meninas – no que aparenta ser uma república de estudantes – se divertem ao som da bateria. Da janela de um prédio rua abaixo, um cãozinho sofre de taquicardia enquanto sua dona o segura apenas com a mão esquerda sobre o parapeito da janela para com a outra abanar aos passantes. Quando a muamba chega à Rua dos Andradas, na antiga escola Hugo Taylor, hoje transformada em supermercado, o bloco “Levanta Povo” pede aos motoristas calma. O sinal é fechado por mais tempo. Ao som da bateria, um motoqueiro parado canta e se diverte balançando os braços.

Bloco Flores da Rua, integrado pelas mulheres do coletivo “Marias Bonitas Fazendo História”. Foto: Tiago Miotto.

Meses antes de tudo acontecer, um grupo de sete amigos cogitou a possibilidade de experimentar um carnaval diferente. Entre eles estava Lúcia Severo, camelô, que assim como Nei, é mais conhecida por seu apelido elucidativo: Baiana. “Foi resgatado. O povo quer carnaval popular”, sentencia. Mesmo com suas décadas de carnaval de rua, Baiana se surpreende. “Todas as etnias estão representadas aqui, todas as classes sociais”. Um pouco mais sentimental, ela relembra o passado e diz que a festa também serviu para perceber que o povo tem saudade. Mas não é só de saudade que Lúcia rezinga. “Se a gente olhar as marchinhas de carnaval, de artistas consagrados, gente com trabalho reconhecido, que atravessou décadas, várias são preconceituosas”.

“Somos o país campeão mundial em número de assassinatos de homossexuais”, lembra alguém ao microfone, enquanto aqui embaixo a bateria da Escola de Samba Arco Íris, apoiadora da festa, comandada por mestre Tantão, reverbera pelo eco da cidade. No clima de mudança, marchinhas remodeladas são entoadas inicialmente por pequenos grupos providos de letras à mão. “Lá vou eu, lá vou eu/ Vou lutar com as feministas/ Repudiaaaaar a Glooobo/ Emissora machista e racista, lá vou eu!”. Para Baiana, depender de marchinhas conhecidas de carnavais, entre as mais clássicas, para manter uma festa popular, é estar ralado. Lúcia se aborrece com a vertente preconceituosa do ritmo. “Várias são homofóbicas, outras machistas, outras racistas. A gente tem que tentar mudar isso. Construir outra cultura, com o pensamento de hoje”.

Foto: Bibiano Girard

Mas nem só de samba e de marchinhas é feita a noite. Entre as centenas de pessoas que lotam a rua, meninos e meninas do bloco “Beldades do Funk” trazem de várias regiões da cidade outro ritmo e outra coreografia para o carnaval. Do carro de som, cantarolam seu tema: “É som de preto, de favelado, mas quando toca ninguém fica parado”. Minutos depois, o trio-elétrico para. É momento especial. Vão chamar as beldades da noite. “Ela que foi Drag Queen do Milênio! Miss Bumbum Dourado! Rainha Gay da Vila Brasil! E agora é a Musa da Muamba! Palmas pra Weruska Gamela Penosa! Nossa diva!”. Taty Rafaela, modelo e sambista, é chamada. Representa o Alojamento da Verônica. Da Zona Norte, representando a Comunidade de Terreiro Ilê Axé Ossanha Agué, vem a estudante Jéssica Santos na ponta do pé.

Entre as centenas de pessoas que começam a se aglomerar na Rua Venâncio Aires, em frente ao palacete da SUCV, está Luiz Henrique Coletto, integrante do Coletivo Voe, coletivo de diversidade sexual que pauta lutas da comunidade LGBT na cidade. Para Luiz, em entrevista posterior, o marcante da festa foi a compreensão de que, para dialogar com muita gente, é preciso experimentar formas de ação coletiva. Naquela noite, erguendo um estandarte colorido com as cores do arco-íris e a inscrição “Bloco das Voadoras”, que trouxe para a avenida o brilho da purpurina e o salto-alto, Luiz caminhava junto a Lili Safra, musa do bloco.

Foto: Tiago Miotto.

À nossa frente cruza dançante o Bloco Pretinhosidades, formado, como eles mesmos se definem, por pretas e pretos raros. Vestindo amarelo, roxo, lilás e branco, passam pelo cordão ensaiando a entrada na avenida. Alexon Messias, artista visual, leva o porta-estandarte. Na passagem, Manoel Luthiery, com sua roupa para Oxum, é incisivo: “Acredito em uma revolução no Brasil que seja feita com carnaval, com samba e com corpos, com negros, com famílias, com todo mundo”.

Sem ser foco da festa, mas não menos importante, a crítica ao carnaval comercial e elitizado chegou de uma forma ou de outra. “Os Clubes Sociais Populares não existem mais. Há bem pouco tempo aconteciam bailes populares no Centro Desportivo Municipal que agregavam três, cinco mil pessoas”, lembra Nei D’Ogum quando questionado sobre o porquê de realizar um reencontro com o carnaval de rua. Luiz Henrique evoca a mesma ideia. “A Muamba também foi um sucesso em termos de empenho coletivo porque existe um vácuo amplo na agenda cultural da cidade”.

A Muamba não foi um evento pensado para competir com o Carnaval, segundo Nei, mas para somar à festa do município. Segundo ele, existe cada vez mais por parte das autoridades civis um regramento, uma limitação dos espaços públicos. “A Muamba vem neste sentido, na retomada das ruas pelo público”. A ideia de Nei, como explica Franciele Oliveira, historiadora e organizadora da Muamba, foi agregar grupos, coletivos e sujeitos que trabalham o ano todo, que têm histórico de atuação. “O pessoal se conhecia, sabia quem tocava as pautas, quem podia se somar, quem poderia estar junto, se dispondo a tocar não uma marcha ou um protesto, mas uma festa popular de rua, que é também uma forma de resistência, como o carnaval”.

Público vai se aglomerando na gare da Estação. Foto: Tiago Miotto

A Muamba foi um ato de festa e de resistência, e “mostrou que essas coisas não se dissociam”, como disse Franciele. A historiadora lembra que o carnaval de rua sempre foi um ato de resistência, “especialmente por contar com a articulação de comunidades muitas vezes marginalizadas, que colocam sua cara na rua e defendem seus ideais de mundo. Foi assim no passado e continua sendo hoje”. O jornalista Luiz Henrique concorda, por outras palavras. “Já que esta sociedade é formada por diferentes públicos, é necessário experimentar diferentes estratégias. Uma marcha, como a das Vadias, a da Maconha, a do Bloco de Lutas, é importante. Uma aula pública tem seu propósito. Uma oficina, outro. E uma festa com fundo político também”.

Na Gare da Estação Férrea, divisa do Centro com o Bairro Itararé, mais de mil pessoas se aglomeram entre bandeiras, tambores e amores. Na cadência bonita do samba, uma massa canta “E o nome dela qual é?”, enquanto outros respondem “AAAAAArco ÍÍÍÍÍrissss” ao chamamento do intérprete da noite. “A gente encaminhou ofícios aos órgãos competentes, mas eles não apareceram”, diz Baiana, falando da segurança do evento. Para ela, no entanto, ter visto motoristas de ônibus e de carros sem buzinar, alguns até mesmo acompanhando o ritmo dentro dos veículos, comprova uma verdade máxima: “o povo de Santa Maria quer diversão: o povo está querendo diversão”. Luiz Henrique completa: “uma festa é cultura, especialmente quando consegue ser popular e revitalizar a utilização do espaço público”. No entorno, a Gare cheia de gente e de cores mostra sua esplêndida ruína de anos mal protegidos. “Ano que vem vai ser maior”, diz Nei.

 

Nei D’Ogum acompanhado de Baiana e musos e musas da festa. Foto: Tiago Miotto

 

Quem desce a Rio Branco em Muamba, jamais esquece o passo do samba, pelo viés de Bibiano Girard e fotos de Tiago Miotto.

 

 

  

  

  

  

  

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