O horror tenta se vestir de normalidade

ilustração palestina
Arte: Bibiano Girard

 
Pouca coisa causa tanta tristeza quanto assistir um genocídio ganhando a condição de estabilidade. Para que isso aconteça, é preciso negar possibilidades de solução, apagar da memória as lembranças de um tempo de paz e restringir o sentimento de esperança. Para milhões de palestinos, as condições impostas por Israel criaram uma situação de vida limitada, onde a violência percorre desde as formas mais veladas às mais sanguinolentas. Aya Shqair não conheceu muito destas últimas, mas durante todos os anos em que viveu em Zawiya, uma pequena cidade na região da Cisjordânia, Palestina, enfrentou diversas formas de restrições e abusos por parte de Israel. São medidas contínuas que estrangulam o povo palestino gradualmente: as barreiras geográficas e os assentamentos israelenses. Espalhados por toda a região da Cisjordânia, vêm crescendo drasticamente sob o comando de Benjamin Netanyahu, primeiro-ministro de Israel, com o apoio estadunidense e o silêncio de quase todo o resto do mundo. Em certa medida, por serem mais silenciosos, podem ser mais destruidores que os bombardeios diretos.
 
“O muro é uma prisão gigante”: As barreiras
Mostrando-me no mapa sua cidade, a jovem de 30 anos aponta uma grande rodovia. Essa é a rua principal, que eles andam e a gente não tem direito de andar. Para a gente sair, olha aqui, a gente tem um túnel por onde sai e entra da cidade. O túnel de Zawyia foi construído por Israel e integra uma das principais formas de restrição ao povo palestino: as barreiras geográficas. Tanto o acesso quanto a saída da cidade só são possíveis através deste caminho. Assim, mesmo estando em território próprio, as imposições interferem na vida cotidiana. Estudar, trabalhar, visitar amigos e parentes são tarefas dificultadas e, às vezes, impossíveis de se realizar.
Quando eu estava na faculdade, eu entrei em 2002, estava muito difícil para ir e voltar. Eu estudava em Jerusalém e Jerusalém tem a parte… não é que é a parte árabe, mas é a parte que eles dividiram e que eu posso entrar como palestina. Lá eu não posso entrar em todas as regiões. Onde tem praia, onde tem mar, a gente não pode entrar. A distância era 80 quilômetros. Uma vez eu fiquei três meses sem poder visitar minha família em outra cidade porque fica tudo bloqueado. Até uma vez a gente podia sair só com carros de placa amarela, significa que o motorista é israelense. Porque placa verde é de palestino e não podia andar na rua. Então eu fiquei três meses sem poder ir lá. Uma distância curta mas tu fica sem poder ir porque a situação é difícil. Aya estudou em uma época que Jerusalém foi palco de mais uma expansão israelense. A cidade, que é sagrada para ambos os povos, havia sido dividida em Jerusalém oriental e Jerusalém ocidental. Mas o aparato de Israel, reivindicando a cidade como capital, tomou mais do município. Algumas universidades palestinas foram cortadas e o controle de saída e entrada foi fortalecido de tal forma que já não se podia saber se seria possível voltar para casa tranquilamente ou se haveria de esperar horas para passar por um bloqueio militar israelense. Aya exemplifica: Tu sai num dia tranquilo e não tem nada de ruim na rua e quando tu tá voltando do trabalho tá tudo trancado, ninguém entra e ninguém sai. Aí tu fica trancada lá.
O muro da separação, que começou a ser construído também em 2002, tem mais de 700 quilômetros de extensão. 85% dele está em território palestino. O custo para o erguer já ultrapassou $2 bilhões. E Israel promete mais, principalmente para isolar os assentamentos judaicos dentro da Cisjordânia. Os muros e cercas são tão extensos que há comunidades palestinas ilhadas, podendo acessar outras áreas apenas com permissão israelense. A economia, a vida social e política dessas populações é transformada de forma drástica e cruel.  Impedir o acesso à prática religiosa também é outra estratégia. A mesquita de Al Aqsa, localizada em Jerusalém, é uma das mais sagradas para a religião mulçulmana. No ano passado, teve seu acesso bloqueado. Há cerca de 15 dias, durante julho, o mês do Ramadã, muitos palestinos cruzaram o ponto de inspeção e outros escalaram o muro que a isola para rezar. Durante o cruzamento, dois adolescentes foram mortos pela polícia de Israel. O muro é uma prisão gigante.
 
“A gente não acredita que eles tenham o direito de morar nessas terras”: Os assentamentos 
Outra forma de violação dos direitos palestinos é imposta por Israel de forma sistemática: os assentamentos dentro do território alheio. São áreas colonizadas por israelenses que formam uma mancha quando se analisa o mapa da região da Cisjordânia (veja abaixo). Na definição de Aya, essas colônias são cidades que eles construíram para tentar deixar o povo deles lá. Mas estar lá fere mesmo as próprias fronteiras definidas após a Guerra dos Seis Dias, quando Israel anexou territórios palestinos, expandindo mais ainda suas fronteiras. E são inúmeros os casos em que se deixa de “estar lá” para praticar ataques à população palestina. Moradores das colônias e policiais militares seguidamente são protagonistas de atos de violência.
Mapa das barreiras e assentamentos na região da Cisjordânia. As zonas em lilás representam as colônias israelenses. Em verde, a fronteira entre Israel e Palestina. em vermelho e preto, as barreiras já construídas. Em vermelho, as em construção e em preto as planejadas.

Zoom da região de Az Zawiya. O “T” representa o túnel. Os “X” são portões controlados por Israel.

O crescimento intenso dos assentamentos desde que Benjamin Netanyahu assumiu seu terceiro mandato, em março de 2013, também é indicado em um relatório do Paz Agora. No documento, que data do início de 2015, há dados que apontam a construção de 460 casas por mês neste período. 68% delas estão dentro da Cisjordânia. Além das habitações, informações sobre a expansão dos muros revelam uma política de segregação e privação de vias de sobrevivência. Não há outra definição que não apartheid. Em muitos casos, as barreiras impedem cidadãos palestinos de acessar zonas de cultivo de oliveiras, o principal gênero da agricultura palestina. A destruição da planta também é comum. Estima-se que mais de 100 mil pés do alimento tenham sido removidos desde 2000.
A ida às escolas e a outros locais de trabalho também é dificultada. Só neste ano, foram documentados mais de 30 tiroteios contra crianças. O caminho ao colégio pode ser aterrorizante. “É realmente assustador caminhar até a escola. Nós nunca sabemos quando os assentados irão nos atacar ou nos bater”, disse Rima Ali, 10 anos e moradora de Tuba, à reportagem de Eletronic Intifada. Outra menina, de 11 anos, foi atacada com spray de pimenta em frente à sua casa em Hebron. O caso ocorreu em abril de 2015 e foi praticado por moradores dos assentamentos Beit Hadassah e Ramat Yiashaim, ilustrando o quão aleatório e cruel pode ser um ataque. Além disso, prisões, torturas, estupros e mortes são comuns. Os casos quase nunca são investigados, porque a lei não protege a quem ela raramente reconhece.
Assim, se os palestinos precisam viver dentro das linhas impostas por Israel, com muros e controle por todos os lados, a área destinada ao estado israelense vem aumentando vertiginosamente. O Escritório Central de Estatísticas de Israel estima que a população dos assentamentos judeus tenha crescido quase quatro vezes mais que a própria população do país (5.3% de crescimento nos assentamentos, enquanto no território israelense a população cresceu 1.8%) nos últimos anos. São cerca de 250 assentamentos na zona conhecida como Cisjordânia, todos eles ilegais,  já que todas as colônias ferem a lei humanitária internacional e a linha verde, definida em 1948 e em 1967 com as resoluções 181 e 242 das Nações Unidas (leia mais clicando aqui). A linha, na verdade, é uma ficção que sustenta um regime de intimidação e punição. A gente não acredita que eles tenham o direito de morar nessas terras. Têm cidades perto da minha que estão todas com muro. E as pessoas lá estão todas controladas com aquela porta. Abre às 7h e fecha, por exemplo, 22h. Não pode passar depois. Esse muro complicou. E as ruas onde a gente anda são diferentes das ruas onde eles andam. É separado, tá tudo dividido.
O silêncio sobre essas medidas tem dado estabilidade ao genocídio praticado por Israel contra o povo palestino. É uma coisa horrível que ninguém poderia aceitar mas que o mundo está aceitando. O que acontece é que a gente está contra os sionistas, contra o governo e tudo que está acontecendo. Acredito que tu acompanhou, não pela Globo, mas acredito que tu acompanhou o que estava acontecendo na Faixa de Gaza no ano passado. A cobertura midiática sobre os conflitos é escassa, ocorrendo geralmente em episódios de ofensivas pesadas. Porém, mesmo quando ocorre, a grande mídia assume um lado muito claro, contribuindo para o silenciamento das vozes palestinas. Pouco se vê sobre as constantes violações de Israel à lei internacional e aos acordos firmados em relação às fronteiras. Assentamentos israelenses, apartheid e bloqueios econômicos são temas negligenciados, assuntos omitidos que contribuem para a estabilidade da ficção de que existem, de fato, dois Estados.
 
Quando sair é a alternativa
Por conta das dificuldades geradas pela falta de trabalho, Aya viveu na Arábia Saudita durante boa parte da infância. A mãe, professora, obteve um emprego no país e lá permaneceram até Aya completar 13 anos de idade. A situação é bastante comum: a Organização Internacional do Trabalho (OIT) calcula que, em 2015, 27% da população palestina encontra-se desempregada. Destes, 107 mil trabalham em Israel, sendo que um terço não recebe os direitos trabalhistas de forma correta. A solução, para muitos, é a migração sem certeza de volta.
São milhões de refugiados espalhados pelo mundo. Muitos perderam a cidadania palestina, principalmente aqueles que deixaram o país após os conflitos de 1948 e a Guerra dos Seis Dias. A saída para os países vizinhos é mais comum, embora a comunidade palestina na América Latina e em outras partes do mundo seja grande. Entretanto, a migração não é uma opção fácil, principalmente para a população da Faixa de Gaza, extremamente controlada e bloqueada por Israel. Além disso, não é a questão central: os palestinos querem o direito de permanecer.
No caso de Aya, a vinda ao Brasil aconteceu devido ao seu casamento com um brasileiro descendente de palestinos. Ele nasceu aqui, é brasileiro, mas ele foi para a Palestina estudar a língua e a religião e eu acabei estudando dois anos com ele. Quando ele terminou, voltou para o Brasil, estudou Farmácia aqui e eu fiquei lá, fiz a minha faculdade. Depois de seis anos ele voltou, pediu minha mão em casamento, nós ficamos noivos e eu vim para cá. Quando chegou a Pelotas, não sabia falar português. Mas apenas alguns meses depois, já havia sido aprovada para o mestrado em Odontopediatria na Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Hoje cursa doutorado na mesma área e conta que foi muito bem recebida pelos colegas. Eu dava aula sobre a minha religião, sobre a minha cultura, eles sempre me convidavam para falar sobre. Durante os seis anos em que mora no Brasil, ganhou um filho e, na época da entrevista, esperava uma filha.
Sobre planos futuros, o desejo de retornar. Eu adoro aqui, mas sempre tenho na minha cabeça que o futuro eu quero construir lá ou perto de lá. Porque tu sabe, os costumes são diferentes e para construir família, pela questão de religião mesmo, eu quero voltar para lá. Por enquanto, a ligação com os costumes e a religião, além das práticas cotidianas, acontece na mesquita que o sogro fundou em Pelotas. Lá, Aya e o marido dão aula de religião e de árabe, fazendo lembrar sempre que há uma terra chamada Palestina e que seu povo precisa ter o direito a voltar.
O horror tenta se vestir de normalidade, pelo viés de Liana Coll

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