A casa aos pedaços da cidade cultura

Foto: Marina Martinuzzi

No fim da Praça Saldanha Marinho, quase na Rua Roque Calage, existe um prédio chamativo, uma mistura de tons rosados com amarelo. No seu topo, os dizeres latinos Summum Jus Summa Injuria. Um aforismo muito comum no Direito, e que traduzido literalmente representa “Suma Justiça, Suma Injúria”. É geralmente usado para representar situações em que o “excesso de justiça” resulta em uma injustiça. Tamanha representação do jurisdiquês não soa estranha, já que o edifício funcionou como sede do Fórum de Santa Maria até o ano de 1987, quando a Justiça inaugurou um novo prédio (na Alameda Buenos Aires), passando o edifício para a Prefeitura.
Em meados de 1990, com muita pressão comunitária por um espaço para a cultura na cidade, o prédio foi convertido na “Casa de Cultura”, um espaço para o funcionamento de diversos grupos culturais. Sem passar por nenhuma reforma significativa desde a sua entrega para a Prefeitura, o estado do funcionamento do prédio foi sendo questionado ano após ano, como um dos vários problemas déjà vu que a cidade enfrenta. A situação chegou ao seu limite derradeiro no dia 11 de dezembro de 2015, quando foi fechado pela Secretaria de Cultura do Município, por não dispor do dinheiro necessário para adequar a estrutura ao PPCI exigido pelo Corpo de Bombeiros.  
Vários grupos atuavam na Casa. Enxadristas, quadrinistas, poetas. Um dos grupos que funcionavam desde a formação da Casa de Cultura é a Escola Municipal de Artes Eduardo Trevisan. Com 33 anos de idade, a escola já passou por locais como o Theatro 13 de Maio e o parque Itaimbé e conta com mais de 300 alunos, oferecendo cursos de musicalização, artes cênicas, artes plásticas e dança, todos gratuitos para a comunidade. Segundo Carolina Enderle, aluna da Escola há mais de três anos, a EMAET somava forças à cena cultural e artística do município: “uma escola municipal de artes, dentro de uma cidade dita ‘cultura’, não pode ficar de portas fechadas e cair no esquecimento pelo simples fato de não possuir uma sede”. Carolina lembra que a escola possui mais de 300 alunos e deve ser tratada como uma escola de educação regular, com a mesma infraestrutura e a mesma importância dada a estas.
Os percalços no local são antigos. Problemas elétricos, mofo, pintura interna e externa. Além disso, o espaço passava, até ser fechado, por uma desorganização em sua capacidade de aproveitamento: muitas das salas eram usadas como depósitos. “A estrutura sempre foi precária. Chovia dentro do prédio. As janelas, portas, paredes, banheiros, tudo estava debilitado. As partes onde a escola funcionava eram as mais bem cuidadas e limpas para usarmos. Alguns reparos foram feitos pela prefeitura na fiação, mas há muitos anos. De resto, nunca fizeram nada na estrutura”, é o que diz Maura Nascimento, que estudou Teatro na EMAET por dez anos.
Em março de 2014, um pedaço do reboco do teto caiu no chão, felizmente em um momento em que o espaço estava sem ocupantes que pudessem ser feridos pelo incidente. Sobre o ocorrido (e a consequente demora para a tomada de ações quanto ao mau estado da Casa), a secretária de cultura de Santa Maria, Marília Chaturne Teixeira, afirma: “não apresentando risco aos transeuntes da praça, não haveria problema continuar aberta a casa, desde que o interior também não apresentasse risco”.
A prefeitura tem, desde o primeiro mandato de Cezar Schirmer (PMDB), um projeto ambicioso para a Casa, com espaços com isolamento acústico, adequados para as práticas musicais, salas reformadas para a parte administrativa de cada grupo e um grande auditório para comportar apresentações artísticas. O problema é que esse plano sempre esbarrou no seu alto custo, avaliado em R$4,5 milhões. Além disso, parte da estrutura é tombada pelo Patrimônio Histórico do Estado do Rio Grande do Sul. A necessidade de desapropriar parte do prédio do Banrisul, ao lado da Casa, para a contrução de uma escada de emergência, fecha a lista de problemas no projeto da Prefeitura. Mesmo assim, a prefeitura se prendeu à ideia e segurou toda e qualquer reforma no aguardo de recursos para a grande reforma.
A situação do edifício, tando dentro quanto fora, é visível na fachada. Foto: Marina Martinuzzi

Mas a reforma não chegou à tempo, e a Casa foi fechada. Foi fechada em um difícil período para a cultura santamariense. Vale lembrar que no mesmíssimo mês de dezembro, os músicos Marcelo Demichelli e Taina Guazina foram impedidos por fiscais da prefeitura de atuar nas ruas. Os mesmo fiscais impediram o artista e ex-candidato a vereador Estátua Viva, que fez um manifesto na internet para relatar o ocorrido. Agora em janeiro, o carnaval de rua de Santa Maria foi cancelado, sob as alegações de que os 500 mil gastos nele poderiam ser utilizados com outros fins. E as reclamações são antigas. Durante 2014 e 2015, vários foram os fatos que fizeram artistas e produtores culturais denunciar a falta de compromisso da prefeitura com as artes locais, além da repressão sutil percebida pelas ruas da cidade a grupos e artistas que tentaram trabalhar na rua. Mesmo vivendo um momento fecundo em produção cultural, os artistas criticam a falta de locais qualificados e os entraves colocados pela prefeitura, conforme denuncia a reportagem “Cidade cultura: de costas para a rua?“, publicada aqui em setembro de 2014.
Dizer que essas situações são estranhas para um município que se intitula “Cidade Cultura” já está beirando à redundância, porém alguns fatos interessantes devem ser apontados. A Secretaria de Cultura de Santa Maria é uma das mais mal posicionadas no ranking dos orçamentos anuais, com R$3.123.000.000 em 2015. Ela está atrás de pastas bem menos presentes no dia-a-dia do santa-mariense, como a do Turismo. Assim sendo, é plausível apontar que o descaso com a cultura na cidade estende seus tentáculos para vias ostensivas (como no caso dos artistas proibidos de atuar), mas também está na base, na distribuição orçamentária do que é considerado relevante para a administração da cidade. Assim fica mais fácil de visualizar o porque de R$4,5 milhões para a reforma da Casa serem tão inalcançáveis para a pasta, e mais difícil ainda de entender o redirecionamento da verba do Carnaval para outras áreas.
A EMAET já está buscando, juntamente com a secretaria, soluções para poder voltar às aulas em 2016. O problema é que, com a imensa quantidade de estudantes que a escola possui, as dificuldades para conseguir um novo local são homéricas. Nice Dias, professora de teatro da Escola, menciona algumas delas: “Como nós temos alunos que vêm de diversos locais da cidade, tem a importância da escola ser central, porque os alunos já fazem o sacrifício de pegar um ônibus pra ir pro centro”. A professora lembra que existem muitos alunos que vão a pé, e o ambiente precisa ser no Centro. “Também há a dificuldade de achar um espaço grande que tenha salas diferentes pra gente atender as necessidades dos alunos, temos crianças, temos idosos, pessoas que tem dificuldades”, diz ela.
A casa se encontra assim, de portas fechadas. Foto: Marina Martinuzzi

Mas e os outros grupos que atuavam na Casa? Segundo a Secretaria Municipal de Cultura, os grupos estavam ali por “tempo indeterminado” até o início das obras de reforma. “Com exceção da Escola de Artes Eduardo Trevisan, que pertence à pasta da Educação Municipal, todos os outros não têm vínculo com a prefeitura, pois são entidades particulares e estavam utilizando o espaço cedido pela mesma”, afirma a Secretária Marília Chartune, afirmando que a Secretaria não tem responsabilidades com o local de atuação desses aglomerados artísticos.
Quanto à responsabilidades, a professora Nice Dias discorda: “Acho que a prefeitura deve se envolver com qualquer prática cultural independente de estar vinculada ou não. As pessoas estão organizadas na Casa de Cultura e é uma falha do poder público o fato de elas não poderem utilizá-la”. No que se refere à situação da cultura na cidade, com o fechamento da casa e a atuação dos fiscais da prefeitura com artistas de rua, Nice ainda aponta que vivemos em momento notavelmente singular: “Acho que há muito tempo existe um certo descaso com a cultura. Não sei dizer se tudo foi coincidência, mas nunca tinha acontecido esse tipo de coisa [o descaso] assim”.
Infelizmente, não se trata de um daqueles casos em que o excesso de justiça levou a uma injustiça, como profetizado no prédio do antigo fórum. O fechamento da Casa de Cultura é apenas uma das consequências de anos de sucateamento da cultura municipal, deslocando-a do seu caráter independente e autônomo (onde a prefeitura é fornecedora de recurso, não administradora destes mesmos) em um jogo corporativista, fazendo válida apenas aquela cultura que traz retorno imediato. É difícil de aceitar, mas Santa Maria já está se acostumando a, volta e meia, transmutar-se de “Cidade Cultura” para “Cidade Resistência”. Quase sinônimos.
Em várias janelas é possível ver vidros quebrados, como afirma Maura Nascimento. Foto: Marina Martinuzzi.

A casa aos pedaços da cidade cultura, pelo viés de Mateus de Albuquerque*, com colaboração de Bibiano Girard.
*Mateus é estudante de jornalismo na UFSM.

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