Dois ainda é pouco

Arte: revista o Viés.

No início do século XX, Catherine amou dois amigos: um francês e um alemão, Jules e Jim. A guerra faria os dois lutarem um contra o outro, mas o tempo acabaria por baixar a poeira das bombas e fazer a paz voltar. Então, entre passeios de bicicleta, corridas na ponte e muitas lágrimas, Catherine, Jules e Jim viveriam juntos durante anos, sem que ela precisasse escolher por algum deles. Catherine morreria sendo “uma mulher para dois”.

Em Jules e Jim, o diretor francês François Truffaut mostrou pela primeira vez no grande cinema uma relação a três, ou na expressão francesa, um ménage à trois. Ao dar o primeiro passo, o cineasta parece ter aberto a porta para essa temática que viria a receber atenção algumas décadas depois.

O clássico francês foi lançado em 1962, quando começava a surgir a revolução sexual. Além da criação da pílula anticoncepcional, as idéias do filósofo e sociólogo alemão Herbert Marcuse, que associava diretamente a repressão sexual e a manutenção de uma ordem social exploradora, estimularam a mudança de comportamentos. A livre expressão da sexualidade foi uma das primeiras “armas” usadas pelos estudantes de todo o mundo para lutar contra uma sociedade na qual não acreditavam mais. Em 68, ano marcado por grandes movimentos políticos e de protesto das minorias, a revolução sexual atinge seu auge.

Esse movimento é retratado no filme Os Sonhadores (2003), de Bernardo Bertolucci, diretor que viu a efervescência da Europa na época. No filme, o estadunidense Matthew, que fora estudar em Paris, se aproxima dos gêmeos franceses Isabelle e Theo graças à paixão que todos nutrem pelo cinema. Enquanto a revolução toma as ruas, os três se mantêm presos em um apartamento, fazendo jogos sexuais que os tornam cada vez mais íntimos. Ao som de rock e gosto de vinho, os três caminham nus pela casa, tomam banho juntos e discutem política e cinema. Porém, enquanto os irmãos desejam a liberdade sexual como uma maneira de contestação, Matthew só deseja uma relação monogâmica com Isabelle.

Entre Jules e Jim e Os Sonhadores, no entanto, foram poucos os grandes filmes que trouxeram a temática do relacionamento a três. Existiram tentativas, como a de Robert Benton e David Newman, escritores do primeiro roteiro de Bonnie e Clyde – Uma rajada de balas (1967), filme que começou a Nova Hollywood, movimento que revolucionou a indústria cinematográfica estadunidense. Os roteiristas estreantes, apaixonados por Truffaut e Godard, queriam transformar suas ideias em um filme ao estilo da nouvelle vague francesa, e pensaram que para isso nada melhor que fazer o casal de assaltantes de banco ter um caso com o jovem que passa a acompanhá-los na viagem. Porém Warren Beatty, galã e produtor do filme, barrou a idéia por achar que não cairia bem para a sua imagem fazer o papel de um “homossexual” e, em troca, aceitou que Clyde, seu personagem, fosse impotente.

A Nova Hollywood, embora tenha avançado em vários temas considerados tabus, deixou a questão dos relacionamentos a três para trás. A epidemia da AIDS que começou a assustar a todos nos meados da década de 80, conhecida pelos setores conservadores da sociedade como “a peste gay”, parece ter freado a revolução sexual em vários âmbitos, entre eles a aceitação do ménage à trois como uma prática normal, visto que essa em grande parte das vezes supõe um relacionamento bi ou homossexual.

Em 1994, Andrew Fleming alcançou sucesso ao trazer novamente o tema à tona, com a comédia romântica Três formas de amar. Dois rapazes e uma moça que dividem um apartamento acabam por dividirem também a cama. Banhos nus no riacho, seduções na biblioteca, conversas ao telefone. Tudo parece perfeito, até o sexo finalmente entrar em cena.

Depois desse filme a temática parece ter voltado à moda. Nos últimos anos, muitos são os filmes, surgidos nos mais diferentes países, que trazem um ménage à trois. É o caso do mexicano E sua mãe também (2001), que conta a história de dois rapazes e uma mulher casada, decidida a mudar sua vida, que partem em uma viagem à procura de uma praia que nem sabem se existe. Depois de muitas revelações e brigas, todos acabam cedendo e o que poderia ser só um fim de semana de novas experiências sexuais acaba mudando para sempre a relação entre eles.

Se há algo que parece ser uma constante nos filmes sobre esse tipo de relações, é o ciúme. Há filmes em que ele praticamente se torna o tema principal, como são os casos do francês À Flor da Pele e do brasileiro Cidade Baixa, ambos de 2005. No primeiro, um casal de namorados e seu novo companheiro só se dão bem até o momento em que os três transam sobre um tatame. No segundo, a amizade de infância de dois habitantes do Recôncavo baiano se rompe quando ambos se vêem apaixonados por uma prostituta.

Será que existe alguma relação a três livre de ciúmes? No cinema nacional há pelo menos uma, a de Caramuru e das índias Paraguaçu e Moema, duas irmãs que faziam jus à alcunha de gentis e que receberam o protagonista com os braços (e não só os braços) abertos, nas terras recém inventadas.

Nos últimos anos têm surgido ótimos filmes com o assunto. Um deles é o musical francês As Canções de Amor, de 2007, do diretor Christophe Honoré. Nele o jornalista Ismael começa vivendo um conturbado e divertido ménage à trois com sua namorada Julie e sua colega de trabalho Alice. Ismael desconfia que as duas querem eliminá-lo do jogo, Julie se recente dos momentos em que os outros dois passam sozinhos à noite na redação e Alice se sente excluída por causa do romantismo dos namorados. Num dos momentos mais engraçados do filme, Julie tenta explicar a relação dos três para a sua mãe, que se mostra curiosa pra saber como surgem as posições na hora do sexo. “Como dizem, já é difícil a dois”, completa ela.

Outro destaque é Vicky Cristina Barcelona, do veterano Woody Allen. O romance entre as duas mulheres que dão título ao filme e o pintor Juan Antonio só emplaca quando, após se estabelecer com Cristina, o artista recebe em sua casa sua neurótica ex-mulher, Maria Elena, e os três passam a viver juntos.

A verdade é que o relacionamento ou simplesmente a transa a três é uma das fantasias sexuais mais comuns entre homens e mulheres. A estranheza se vincula com a criação cultural do indivíduo. Seja pelo ciúme, seja pelo acaso de uma correspondência perfeita, essa condição tripla é frágil e, falam essas películas, intensa. Para a corrida na ponte de Jules e Jim, união, origem. Para a corrida final de Os sonhadores, a turbulenta despedida.

Originalmente publicada na revista Fora de Pauta
DOIS AINDA É POUCO, pelo viés de Felipe Severo

felipesevero@revistaovies.com

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3 comentários em “Dois ainda é pouco

  1. “Será que existe alguma relação a três livre de ciúmes?” Ótima questão Felipe, primeiramente, obrigado pela sua bela postagem, com base bem formada em ótimas fontes você fez um belo texto. Bem voltando a pergunta, baseando-se nos filmes, percebe-se ainda uma certa insegurança dos personagens que dividem desse relacionamento, seja do Jules e do Jim ou do Matthew e Theo em “Os sonhadores”. Ou até mesmo o Julio e o Tenoch em “E sua mãe também”. Por mais que compartilhem desse relacionamento a três, percebe-se as indiferenças e os ciúmes. Tomo isso como instinto humano. Independentemente da liberdade sexual de hoje, é natural esse ciúme, o ser humano não deixa de ser um ser um animal, e os animais precisam manter sua superioridade sobre uma fêmea em sua natureza. De fato, não sei se um dia isso irá mudar, acredito mais em um “não”.

  2. complementando… e esse movimento de liberdade sexual, é talvez, uma forma de encontrar solução pra solidão. Pro desespero.

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