A NATURALIZAÇÃO DA DESIGUALDADE

O livro Construção Social da Subcidadania: para uma Sociologia Política da Modernidade periférica foi publicado em 2006 por Jessé Souza, professor de Sociologia do Instituto Universitário de Pesquisa do Rio de Janeiro (IUPERJ) e tem como ponto chave a tentativa de explicitar os motivos pelos quais a desigualdade atinge proporções gigantes e é naturalizada (ou seja, pensada como normal, como um fenômeno natural, e não como uma construção histórica e social) no Brasil e em outros países considerados periféricos em relação ao capitalismo.

O engessamento de abismos sociais, a estabilidade das classes e a naturalização da disparidade entre elas tem profunda ligação com o que se entende por “ideologia espontânea do capitalismo”.  Souza retoma esse tema, amplamente trabalhado por Marx, conjugando-o a colaborações de outros autores, principalmente  Charles Taylor e Pierre Bourdieu, para entender tais fenômenos. Busca nas raízes da concepção ideológica ocidental moderna e de seu “transplantamento” para a sociedade brasileira, em meados do século XIX, o esclarecimento dos porquês da naturalização da desigualdade e da subcidadania. O autor pretende ser, desse modo, uma alternativa às correntes personalistas e patrimonialistas das ciências sociais que abordam esse fenômeno culpando unicamente as heranças pré-modernas pela realidade da marginalização de amplos setores.

 AS BASES TEÓRICAS DE JESSÉ SOUZA

Contribuições de Charles Taylor

O axioma ocidental, como aponta TAYLOR (1989) apud SOUZA (2006), foiteorizado através de ideias de alguns pensadores, que se tornaram figuras centrais para a configuração da moral do Ocidente, baseada na razão, no autocontrole, na calculabilidade e no trabalho produtivo como fundamentos de reconhecimento e autoestima. Figura central entre esses pensadores está, para Jessé, Santo Agostinho, que, apropriando-se de ideias de Platão, concebe a noção da interioridade. Para Santo Agostinho, o conhecimento era algo interior. Por isso, o voltar-se a si mesmo é um passo para a superioridade. Atrelada ainda a uma ideia religiosa, “as concepções de bem articuladas ideacionalmente são vinculadas a ‘interesses ideais’ específicos a partir do ‘prêmio’ especificamente religioso da salvação” (Souza, 2006, p. 26). Assim, Agostinho propõe uma hierarquia de valores: distinguem-se aqueles capazes de raciocinar daqueles que não possuem essa competência e, também, assinalam-se os que vivem e têm consciência disso e os que vivem e não possuem essa consciência. Importante, para Souza (2006, p. 27), é que essa ideia traz a noção de que a razão é superior ao sentido.

Locke também instaura ideias fundamentais para a moral do Ocidente ao introduzir a questão da vontade. Segundo Locke, “a mente tem o poder de suspender e dirigir desejos e sentimentos[…]. Podemos nos ‘recriar’ recriando nossos hábitos e normas” (Souza, 2006, p. 30). Ou seja, há uma auto-objetificação e uma autorresponsabilização do indivíduo, derivadas da noção de controle racional.

As ideias sobre a virtude ocidental, refletidas por esses e outros pensadores, até então não presentes no cotidiano prático dos homens, inserem-se na vida prática de alguns países a partir da reforma protestante, a qual gera uma redefinição da social. O trabalho e a família são colocados, a partir dela, como esferas superiores na vida do indivíduo. Nos países que foram os suportes dessa nova concepção de mundo – Inglaterra, França e Estados Unidos -, o trabalho é valorizado pelo modo como é feito e não pelo seu tipo. Importante, também, é que os vínculos sociais e as formas de governo vão ser do tipo contratuais. Os direitos subjetivos e o ideal de igualdade, consolidados em época consonante à reforma, parecem relegar ao indivíduo a culpa por seus sucessos e fracassos, pois, se é igual e tem os mesmos direitos que todos os outros, é ‘capaz’ de bem suceder-se. Assim, a nova ‘dignidade’ passa a assinalar a probabilidade de igualdade garantida “nos direitos individuais potencialmente universalizáveis. Ao invés da honra pré-moderna, que pressupõe distinção e privilégio, a dignidade pressupõe um reconhecimento universal entre iguais” (SOUZA, 2006, p. 32).

Outra fonte de moralidade, segundo o aporte tayloriano, e que configura uma contradição ao caráter igualitário da moral ocidental, diz respeito à originalidade de cada indivíduo. Compreender o que é certo ou errado requer, além de reflexão racional e calculabilidade, uma virada interior, tendo que ver também com os próprios sentimentos do indivíduo. Assim, pressupõe-se que o indivíduo também deve viver conforme a originalidade e o caráter único e particular existente em cada um, mesmo que isso implique em uma constante tensão, já que o reconhecimento agora tem que ver com os ideais particulares de autenticidade e com os ideais universalizantes de dignidade (SOUZA, 2006, p. 33-35).

Charles Taylor, a partir disso, diz que essas fontes morais da cultura ocidental são articuladas e constituem-se como motivações efetivas para o comportamento humano. Entretanto, são pensadas como naturais e instintivas, pois “os imperativos sistêmicos são objetivos coletivos que se tornaram autônomos” (SOUZA, 2006, p. 24). Ou seja, um sistema e sua ideologia se mantêm e são pensandos como naturais conforme no cotidiano certas práticas de comportamento e pensamento são instauradas como inerentes ao funcionamento da vida. Ainda, Taylor toca na questão da identidade, propondo que as identificações e oposições referentes a valores e a relação que se estabelece com as intuições morais fornecem o sentido para a vida e formam a referência para a condução da vida do homem moderno.

 

Contribuições de Pierre Bourdieu

O conceito de habitus, cunhado por Pierre Bourdieu, permite pensar como as necessidades exteriores podem impactar os seres e inserir-se neles. Habitus seria um “sistema de disposições duráveis inculcadas desde a mais tenra infância que pré-molda possibilidades e impossibilidades, oportunidades e proibições, liberdades e limites de acordo com as condições objetivas” (SOUZA, 2006, p. 43-44). Nesse sentido, as condições econômicas e sociais influenciam como se fossem um esquema de comportamento. O habitus impacta na maneira de falar e de vestir-se, por exemplo, e o corpo, então, atua como demonstrativo de uma hierarquia de gênero, etnia e classe.

Importante em Bordieu, para analisar a naturalização da desigualdade na sociedade brasileira, é a noção de “mais-valia-simbólica”, na medida em que “relações aparentemente simétricas permitem a reprodução de trocas assimétricas legitimando, dessa forma, uma relação arbitrária” (SOUZA, 2006, p. 49). A lógica do mercado de trabalho, em sociedades pré-capitalistas, ainda não atinge o nível das sociedades em que o capitalismo já vive seu estágio maduro e a dominação se dá de forma quase automática, através da incorporação dessa lógica. Portanto, nas sociedades em que o capitalismo inseriu-se tardiamente, Jessé Souza (2006, p. 49) aponta que as formas de dominação são estabelecidas através de formas mascaradas, pelas quais a pessoalidade, numa relação aparentemente mais humana, mistura-se a formas de violência física mais violenta, conformando uma convivência carregada de ambiguidades, mas que propicia a manutenção de relações assimétricas de dominação.

Entretanto, para ambos tipos de sociedade, há um mascaramento dos pressupostos econômicos no exercício da dominação. Ou seja, conforme Souza (2006, p. 50), práticas que aparentemente são desinteressadas, na verdade, constituem-se como práticas econômicas de acréscimo de ganhos materiais e simbólicos.

A ideologia espontânea do capitalismo, conforme já dito, chega ao seu ponto máximo em sociedades em que o sistema já atinge o estágio avançado, uma vez que o trabalho dos dominadores para manter sua ordem, nesses países, não é tão custoso – a ideologia da meritocracia e o véu da igualdade formal se estabelece, é naturalizada e o silêncio corrobora para a manutenção da autorregulação. A teoria dos capitais de Bourdieu, também traduz a impessoalidade do sistema capitalista: nas sociedades modernas, é o capital econômico e o capital cultural que estruturam o capital social.


MERCADO E ESTADO E O TIPO DE HOMEM NECESSÁRIO AO SEU FUNCIONAMENTO


A hierarquia valorativa do racionalismo ocidental

A questão da meritocracia, presente nas sociedades capitalistas, é importante para entender o abandono dos indivíduos a sua própria sorte. A culpa pela pobreza, por exemplo, por essa lógica, recai sobre o próprio indivíduo que se encontra nessa situação, mascarando o caráter estrutural do capitalismo, pelo qual não há como fugir de modelos de dominação para a manutenção do sistema: a sustentação dos lugares dicotômicos explorados/exploradores é um de seus seu pilar.

A união das contribuições de Pierre Bourdieu e Charles Taylor é articulada por Jessé Souza para tentar entender a naturalização da desigualdade em países periféricos. Segundo Souza (2006, p. 63-64), as teorias podem ser até inconciliáveis na perspectiva teórica, mas as perspectivas podem unir-se de forma produtiva, de modo que um autor complementa o que o outro não havia expressado. Ambos partem da ideia de que as práticas cotidianas podem ter componentes implícitos, ou seja, têm razões e explicações que devem ser buscadas. Para Souza (2006, p. 65), “todo o esforço crítico de ambos é dirigido à crítica de concepções filosóficas ou sociológicas que abstraem indevidamente do componente radicalmente situado e contextual da ação humana”.

Para perceber como as instituições mais legitimadas do mundo moderno – Estado e mercado – estão vinculadas a signos sociais manifestos, o autor vai ao encontro de Taylor, falando que essas estão revestidas de valores avaliativos. A ideia que passam, de que possuem princípios neutros, na verdade serve para que a vinculação a tais princípios pelas sociedades torne-se mais opaca e difícil de ser desconstruída. O modo como a hierarquia valorativa do racionalismo ocidental se efetiva na vida prática é apontado por Souza (2006, p. 82) como uma condução de vida construída. Antes do século XVI, os estímulos religiosos de salvação conduziam o tipo de vida do homem. Após o protestantismo, mercado e Estado, de acordo com suas necessidades funcionais, conduzem a um tipo de homem disciplinado, flexível, orientado para o cálculo e para o futuro. Mas isso não acontece de forma imediata, claro. Ocorrem conflitos e adaptações até que a nova ordem moral seja configurada. Em cada país ou sociedade, de acordo com suas especificidades, as novas visões estabelecem-se de forma particular.

 

Prática antes da ideias: a moral ocidental moderna nas “periferias”

Para Souza (2006, p. 96-97), nas sociedades em que o capitalismo foi implantado tardiamente, como a brasileira, os princípios ocidentais modernos instauram-se como que de repente, não deixando margem para muita reação ou compromisso com o novo modelo de cultura. Se em países¹ como a Inglaterra, a religiosidade constituía-se solidamente em uma esfera de moral legitimada, no Brasil, a religiosidade era localizada na figura dos jesuítas missionários e nunca chegou a consolidar-se como uma visão de mundo articulada simbolicamente e institucionalmente. “Autores como Max Weber e Charles Taylor […]enfatizam a circunstância de que, nas sociedades de modernidade central, as ideias são anteriores as práticas institucionais e sociais” (Souza, 2006, p. 98). As relações de hierarquia eram legitimadas através de violência física e/ou psíquica e da cooptação, e não especificamente através de um pano de fundo religioso ou político partilhado pelos indivíduos do Brasil colonial. Justificar a imposição de uma nova hierarquia através de religião, do argumento de ‘missão’ jesuítica funcionou apenas de forma localizada e transitória.

Na ‘nova periferia’, no entanto, as práticas são inseridas ‘de fora para dentro’, antes das ideias ou de um tecido de ideias que fosse partilhada pela maioria. As mudanças que as instituições vão introduzindo são mais difíceis de serem percebidas, dada a maneira gradual e atomizada com que são inseridas na estrutura das sociedades. Segundo Souza (2006, p. 101), uma das consequências disso é o pensamento de que as resoluções de conflitos, desigualdades e contradições seriam alcançadas conforme o progresso econômico ganhasse corpo. No Brasil, no entanto, nem a colocação no ranking das maiores economias mundiais (segundo o Centro de Pesquisas em Economia e Negócios² o país alcançou a posição de sexta maior economia) aplacou a violenta desigualdade. A posição no ranking mede o Produto Interno Bruto (PIB) geral.  No entanto, em PIB per capita, o Brasil ocupa a 101ª posição³, de acordo com dados E o índice Gini, que mede a distribuição de renda, é de 0,54, sendo que quanto mais próximo de zero, menor a desigualdade. Então, por que o fortalecimento econômico não trouxe a dissolução das disparidades sociais como previam os desenvolvimentistas?

A “ralé estrutural”

Porque, aqui, segundo Jessé Souza, há uma ‘ralé estrutural’, condenada à marginalidade por ter sido abandonada e não ter adaptado-se ao novo modelo de homem requerido para o funcionamento da ordem competitiva. A família patriarcal era a base da sociedade brasileira desde o início da colonização. Os senhores de terra administravam política e economicamente o território e concentravam, em torno da família, um número grande de escravos e ‘bastardos’. Para assegurar a subordinação, utilizavam-se de uma estratégia de domínio que “associa o acesso a bens materiais e ideais muito concretos à identificação do dominado com os valores do opressor” (Souza, 2006, p. 106). Aqueles que eram obedientes e realizavam o trabalhado relegado sem constestações, podiam receber prêmios ou conviver mais de forma mais próxima a família. O dominador, o senhor de terras, dependia totalmente dos seus subordinados para manter a ordem da sua casa e dos seus negócios, portanto a segurança da obediência e trabalho sem revolta era um jogo que combinava prêmios aos que demonstravam mais estar encaixados às normas do sistema de escravidão.

A singularidade do tipo de dependência pessoal que se criou entre os brasileiros, para Souza (2006, p. 112), parece ter raiz justamente no tipo peculiar de regime escravocrata. A diferença da escravidão empregada no Brasil para a escravidão empregada em outros países reside no fato de o português ter trazido um elemento maometano para o regime. A baixa auto-estima dos subordinados, que não conseguem, em grande parte, imaginar uma vida livre fora do domínio do seu senhor, combinava-se a uma proximidade social. Ao mesmo tempo em que se utilizava de violência, sabe-se que a maioria dos senhores mantinha relações sexuais com as escravas. Não havia limites de autoridade e de impulsos desse homem. A intimidade que criava com as escravas, no entanto, tinha que ver com o corpo na maioria dos casos e não tinha nada que ver com o ‘espírito’. No Brasil, já na época do regime escravocrata, havia predomínio de mestiços na sociedade.

Nos Estados Unidos, houve um controle para que a população branca fosse predominante. Aqui, era conveniente que houvesse gente que pudesse ser utilizada nas disputas entre terras dos senhores (enquanto, nos Estados Unidos, por exemplo, o serviço de pegar em armas era exercido – com motivo de honra – pelos brancos). E Souza (2006, p. 120) não coloca isso como uma valoração a que sistema era melhor ou pior mas, sim, quer dizer que o fato dos mestiços e negros terem sido utilizados em trabalhos que corroborassem com os valores do opressor – que a assimilassem a vontade externa como se fosse própria e que recebessem prêmios e proteção, de alguma forma, por isso – contribui para entender o tipo de dominação que existe até hoje, a qual combina formas opacas de dominação e legitima um sistema que só é sustentado se muitos trabalharem – a troco de pouco – para sustentar os poucos que ganham muito. E que a subordinação e a desigualdade aconteciam, e ainda acontecem, de forma velada. Relegam a culpa do fracasso e da pobreza ao próprio ser que foi impedido de exercer a auto-representação pela generalização de papeis sociais já dados para o funcionamento do tipo de sistema que era, e é, implantado.

Os filhos ilegítimos dos senhores, lembrando que estes exerciam um poder amplo por praticamente não sofrerem cobranças e limitações externas, desde que estivessem de acordo com os interesses e valores do opressor, viam chances de ascender de alguma forma. A ascensão, no entanto, acontecia sempre dentro da troca de favores com o senhor. Notamos, nesse ponto, a ambiguidade desse sistema que aliava favores/obediência a proteção/recompensa. As formas de assegurar a obediência combinavam, então, os fatores de violência física e psíquica e o jogo ideológico do ‘fazer para ser respeitado’, ‘fazer ter comida e teto’.

A proximidade, na verdade, nunca possuiu caráter estável. Acontecia sempre de forma imprevisível e particularista. “Existiam prêmios materiais e ideais muito concretos em jogo de modo a recompensar quem melhor interpretasse e internalizasse, como se fosse sua, a vontade e os desejos do dominador. E é precisamente essa assimilação da vontade externa como se fosse própria, assimilação essa socialmente condicionada e que mata no nascedouro a própria auto-representação do dominado como um ser independente e autônomo.” (SOUZA, 2006, p. 121). Ou seja, a proximidade não quer dizer que aqui havia algo de mais humano no sistema escravocrata.

A relação ambígua personalista da sociedade escravocrata, como argumenta Jessé, não se restringiu a esse período. Nos âmbitos econômico, político e social, tais relações lançaram base para a condição de outros tipos de indivíduos, formalmente livres, mas subordinados, dada a situação de dependência. Esses seres humanos, de qualquer cor, considerados dispensáveis dentro da estrutura produtiva do país, caracterizavam-se, no século XIX, pós-regime escravocrata, e ainda hoje se caracterizam pela pobreza e pela instabilidade.

Depois da assinatura da abolição do regime de escravidão, um outro contingente de indivíduos com essas características formava-se. O ‘agregado’ rural ou urbano, posição caracterizada por postos como o “do tropeiro, do vendeiro, do sitiante ou, ainda simplesmente, o ‘cabra’ de confiança, o braço armado e camarada de confiança do patrão” (SOUZA, 2006, p. 125), surge nesse contexto, caracterizando relações pessoais de dependência mascarada pela ideia de acordo espontâneo entre patrão e empregado. Mesmo legalmente livres, os indivíduos em condição de pobreza e os recém-libertados não puderam exercer a liberdade. Seus interesses estavam ainda muito vinculados aos dos senhores e proprietários e, para sobreviver, incorporar tais interesses acabava sendo a solução – consciente ou não. Nasce aí um tipo de dominação opaca até mais violenta que a dominação do escravo.

Ressalta Jessé (2006, p. 126-127) que também a ausência cotidiana de instituições, como o Estado, e o desconhecimento de leis impulsionava mais ainda tal tipo de relação social entre proprietários e empregados vinculados, a qual se estendia também para o campo da política – o campo no qual o subordinado deveria exercer lealdade e gratidão para com o patrão.

Florestan Fernandes é mencionado por Jessé Souza no que se refere à compreensão do tipo de capitalismo instaurado e do tipo de burguesia que se criava aqui. “O ‘burguês’ entre nós, diz ele, já surge como uma ‘realidade especializada’, ou seja, agora já na nossa visão, não surge como uma criação espiritual cuja prática inintencional o transforma em agente econômico, como na Europa” (SOUZA, p. 131). E o capitalismo que se instaura refere-se primeiramente ao âmbito comercial. As casas de comércio autônomas perdiam força para as casas exportadoras. Os proprietários ou se tornavam assalariados ligados a elas ou tendiam a sumir. Pouca era a compreensão desses novos processos econômicos que se efetivavam – aspecto ligado à implantação do sistema de ‘fora para dentro’ já mencionado.

A falta de percepção clara da nova visão de mundo que as instituições legítimas do país bem como a pouca compreensão dos novos papéis sociais que eram impostos, mascarava a efetivação do critério classificatório (que separa violentamente aqueles que prestam daqueles que não prestam ao mercado). Os princípios capitalistas travestiam-se de universais e parecia, na vida cotidiana, que nada havia a ser feito contra. Souza (2006, p. 134) diz que Florestan percebe que aquela sociedade colonial, baseada em pessoalismos e localismos, sofre um ‘choque cultural’ e, aos poucos, mas de forma radical, transforma-se em sociedade nacional com relações de dominação cada vez mais impessoais.

1808 e 1930: anos de mudanças e de consolidação da ideologia do Estado

No campo microssocial, nesse período do qual estamos falando (Brasil colonial até o fim do Império), mudanças tambémse efetivavam. Souza (2006, p. 137) aponta o ano de 1808, em consonância com Freyre, como fundamental na mudança do contexto brasileiro. Pois é nesse ano que acontece a vinda da família real portuguesa para a colônia brasileira e, também, que acontece a abertura dos portos ao comércio internacional (à Inglaterra primordialmente). Esses acontecimentos marcam a virada dos interesses rurais para os urbanos e a efervescência da movimentação de agentes comerciais nas cidades portuárias.

Uma das grandes mudanças nas relações de poder acontece pela corrosão do poder pessoal, que é substituído pelo poder gerado pelo conhecimento. Os novos postos de trabalho, originados pelas necessidades estatais, suscitavam conhecimento formal das escolas e não mais o conhecimento por experiência adquirido no âmbito familiar. Diz Souza (2006, p. 141-142) que o conhecimento e a valorização do talento individual instituem o “elemento burguês democratizante por excelência”. A partir dele, novas hierarquias são conjugadas, assim como a ideia de possibilidade de mobilidade social para quem se esforça e é capaz e ‘digno’ de ascender. As novas concepções de mundo, trazidas junto às práticas institucionais prontas, estabelecem-se de forma opaca “a partir dos castigos e [dos] prêmios empíricos, que funcionam como estímulo para a persecução por parte dos atores dos seus imperativos funcionais, como padrão de comportamento social legítimo para toda a sociedade”. (SOUZA, 2006, p. 144).

Outro período importante para entender a conjugação do regime capitalista no Brasil e sua consequência para a naturalização da desigualdade, segundo aponta Jessé, é o de 1930. Indo ao encontro de Luis Werneck Vianna, o autor coloca a ‘revolução’ de 1930 como outro momento em que a nova ideologia do Estado modifica-se: “o corporativismo será o sistema ideal para um Estado que conjuga uma dimensão consensual para as frações de classes dominantes e dos setores médios urbanos ascendentes, com uma dimensão repressiva em relação às classes subalternas, mitigadas por concessões reais e por uma extremamente bem-sucedida ideologia que enfatiza organicidade, unidade e grandeza nacional” (SOUZA, 2006, p. 148-149).

Ou seja, embora tenha havido a derrubada de tradicionais oligarquias e se iniciado a participação nos setores econômico e político de esferas até então excluídas, isso se deu em função da necessidade de ampliar o mercado interno e os alicerces da atuação estatal e não pela motivação de incluí-las nas demandas do país. O monopólio de terras permanecia, impedindo a efetivação da reforma agrária. Os benefícios sociais e trabalhistas ainda eram parcos para trabalhadores rurais, já que os governantes vinham de regiões onde o latifúndio era dominante. Para os trabalhadores urbanos, embora a legislação trabalhista tivesse avançado na época getulista, houve inibição de demandas mais abrangentes, cooptação e manipulação de organizações independentes que tentavam inserir outras pautas no conjunto de leis que fora instaurado e que contestavam a estrutura política e econômica do Estado. A repressão ocorria na medida em que a ideologia do Estado para o tratamento com as reivindicações e as desordens era a de negação do conflito. A conciliação, ao mesmo tempo que trazia as massas para o debate, impossibilitava-as de qualquer tipo de questionamento sobre a política industrial-latifundiária.

O que Jessé Souza aponta como marcante do período pós-1930 para a sua tese de naturalização da desigualdade é que, a partir daí, o Estado lança a infraestrutura necessária para o crescimento de uma sociedade capitalista e cria novo modelo de institucionalização. Também, diz Souza (2006, p. 153), a partir de 1946, o pequeno alargamento da participação política inclui os setores médios urbanos e os trabalhadores urbanos, mas ainda sob uma base corporativa, autoritária e repressiva.

O valor e o não valor humano no sistema

Na terceira e última parte do livro, o autor retoma o tema da inadaptação do ex-escravo e de outros setores populares, independente de cor, ao sistema de ordem competitiva que se instaura no Brasil. O preconceito de hoje, ainda que exista o preconceito de cor atuando de forma violenta e intransparente, refere-se “a certo tipo de ‘personalidade’, julgada como improdutiva e disruptiva para a sociedade como um todo” (SOUZA, 2006, p. 159). O abandono decertos grupos a sua própria sorte gera marginalização destes em relação à sociedade tida como incluída. Falar que a marginalização é causada exclusivamente pela cor e pelos resquícios de um tipo de hierarquia escravocrata é negar a força com que a ideologia espontânea do capital atua na sociedade.

É imaginar, também, que um alto crescimento econômico terminaria por incluir a todos, mesmo que de forma precária. Na realidade, segundo Souza (2006, p. 160-161), são aspectos morais e políticos que devem ser revistos para superar a questão da desigualdade. A experiência em países apresentados como desenvolvidos e ricos, como os Estados Unidos, mostra que o crescimento econômico não termina com a marginalização de certos grupos. Nos EUA, os índices de desigualdade e exclusão são um dos mais altos do mundo. A concepção de que os setores não incluídos seriam resíduos a serem corrigidos apenas naturaliza e reforça a permanência das disparidades sociais.

Dado o caráter valorativo da nova hierarquia, que separa dignos de não-dignos e capazes de não-capazes, Jessé também se pergunta: “o que está por trás das cores, especialmente a cor preta, que as fazem ser um índice de alguma coisa, ao mesmo tempo mais fundamental e menos visível, que se manifesta por trás da cor?” (SOUZA, 2006, p. 162). A resposta envolve a ordem competitiva, que, de forma opaca, classifica e desclassifica indivíduos para atuar na lógica do mercado.

Em termos bourdianos, seria a criação e manutenção de um ‘habitus precário’ pela ordem da hierarquia competitiva, dado ao abandono daqueles considerados imprestáveis dentro do sistema capitalista, que leva alguns grupos a postos marginalizados e os impede de emergir deles. ‘Habitus precário’ é um termo proposto por Jessé, baseado em Bourdieu e no que ele chama de deficiências da tese bourdiesiana, que se refere ao tipo de “personalidade e de disposições de comportamento que não atendem às demandas objetivas para que, seja um indivíduo, seja um grupo social, possa ser considerado produtivo e útil em uma sociedade de tipo moderno e competitivo” (SOUZA, 2006, p. 167).

Em sociedades centrais do Ocidente, como já vimos, a burguesia, através de processos distintos em cada caso, tentou homogeneizar, de forma consciente, um tipo de ser humano – racional, autorresponsável etc. – que se adaptasse ao novo tipo de sistema competitivo e de mercado que eram instaurados. Souza (2006, p. 166) afirma que Bourdieu não trabalha e não percebe esse processo histórico coletivo de internalização do novo tipo de ser humano, pelo qual um consenso transclassista se estabelece.

O consenso existente na sociedade francesa (analisada por Bourdieu) e inexistente na brasileira envolve também o respeito à dimensão jurídica de cidadania e de igualdade. Um brasileiro de classe média ou alta que atropele um de classe baixa, exemplifica, dificilmente seria punido de acordo com a lei. O que faz isso acontecer são valorações intransparentes e subjetivas do ‘não-valor humano’, ancoradas institucionalmente e refletidas nesse peso diferencial entre os seres humanos.

Outro conceito importante, que Jessé retira da leitura de Reinhard Kreckel, é o de ‘ideologia do desempenho’, a qual envolve meritocracia, qualificação, posição e salário e que “não apenas estimula e premia a capacidade de desempenho objetiva, mas legitima o acesso diferencial permanente a chances de vida a apropriação de bens escassos” (SOUZA, 2006, p. 169). A ‘ideologia do desempenho’ permite pensar porque o trabalho é a categoria que assegura reconhecimento, auto-estima e identidade a um indivíduo. É que só ele próprio, mediante a ideologia dominante, pode vencer a si mesmo a fim de obter algum desempenho diferencial e útil. O poder legitimador da ‘ideologia do desempenho’ refere-se, assim, aos valores incrustados de forma opaca pelo Estado e pelo mercado, que atribuem respeito e reconhecimento a certos tipos de papéis sociais. Os valores funcionais para essas instituições são legitimados na medida em que aparecem no cotidiano como neutros, justos e universais. E é isso, somado a formação da ‘ralé estrutural’ de que fala Jessé, e à força da ideologia espontânea do capital, que exclui o tipo de homem que não serve ao seu funcionamento, que torna a desigualdade um fenômeno de massas violento, mas que é naturalizado por jogar a culpa da pobreza e a da falta de oportunidade no próprio indivíduo, e não na estrutura do sistema.  

 

  1. Jessé Souza aponta exemplos de ideiais consensuais e refletidas para ilustrar a tese da noção de “homogeneização social e generalização do tipo de personalidade e de economia emocional burguesa a todos os estratos sociais”: nos Estados Unidos, a imposição ao sul escravista da abolição de um sistema que feria a liberdade da sociedade; na Inglaterra, as Poor Laws, leis para tratar do problema causado por ‘inaptos’ pobres, incorporando-os aos preceitos da Revolução Industrial; na França, a adoção do princípio de cidadania e, para alcançá-la, a noção de transformação social e homogeneização.
  2. Relatório disponível em <http://www.cebr.com/wp-content/uploads/Cebr-World-Economic-League-Table-press-release-26-December-2011.pdf> Acessado em 25 de abril de 2012.
  3. The World Factbook. Disponível em <https://www.cia.gov/library/publications/the-world-factbook/rankorder/2004rank.html?countryName=Brazil&countryCode=br&regionCode=soa&rank=101#br> Acceso em 7 de maio de 2012.

A NATURALIZAÇÃO DA DESIGUALDADE, pelo viés de Liana Coll

lianacoll@revistaovies.com

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