Entre os vários significados que o termo Axé (do ioruba, àse) pode ter, estão os de energia, poder e força. Axé remete também, é claro, à presença mágica da ancestralidade e a religiosidade de matriz africana.
“Periferia tem Axé” foi o nome que recebeu a noite organizada pelo Coletivo de Resistência Artística Periférica (CO-RAP) durante o XIX Encontro Nacional dos Estudantes de Artes, o ENEARTE, ocorrido na UFSM entre os dias 18 e 25 de outubro.
Com a presença do rapper GOG, um dos mais influentes artistas do Hip Hop brasileiro nas últimas décadas – e também um dos principais pensadores e articuladores do Hip Hop como cultura e como movimento – e de expoentes da cultura Hip Hop das cenas local e regional, como no caso da MC natural de Santa Maria, Flavinha Manda Rima, a proposta do coletivo foi aproximar Hip Hop e religiosidade africana.
“Axé é uma palavra que traz muitas coisas positivas, e a gente sabia que era uma noite de luta, mas também de vitória, de celebração”, explica Gabit Box, integrante do CO-RAP e uma das Mestras de Cerimônia (MC’s) da noite. “Por isso o axé de alegria, de força, de luta, e esse axé religioso também”.
“A gente coloca em conexão a cultura Hip Hop com a religião. Não que a cultura Hip Hop seja toda ligada à religião, mas especificamente o CO-RAP sempre teve essa conexão com o terreiro, e a periferia também tem”, explicam Gabit Box e Letícia Prates.
O terreiro, no caso, é o Ilê Axé Ossanha Agué, localizado no loteamento Cipriano da Rocha e espaço no qual o CO-RAP foi fundado, em 2008. No dia 23 de outubro, foi também o local em que o evento “Periferia tem axé” começou, com um almoço do coletivo com o poeta, ativista e músico Genival Oliveira Gonçalves, o GOG.
No almoço, organizado pelo líder espiritual da comunidade de Terreiro Ilê Axé Ossanha Agué, Ricardo Pereira de Souza (Babalossain de Agué), e seu companheiro, responsável pelas relações externas da comunidade, Nei d’Ogum, houve uma troca de ideias sobre movimento Hip Hop, movimento negro, a importância da integração entre estes movimentos e os praticantes de religiões de matriz africana. Houve, também, a abertura dos trabalhos para que boas energias brindassem o dia e acompanhassem a todxs presentes.
A partir da articulação entre a comunidade de terreiro, o CO-RAP e a organização do ENEARTE, ônibus foram disponibilizados para que jovens das periferias da cidade pudessem ir de forma gratuita até a Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), onde aconteceria, pela tarde, uma mesa de discussão sobre arte e cultura negras que integrava a programação do ENEARTE.
Durante a tarde, Letícia Prates, do CO-RAP, mediou a mesa de debates. Mas quando a noite já havia chegado e o palco estava montado, Letícia foi, ao lado de Gabit Box, e de Mika West, uma das MC’s da noite, no sentido mais tradicional do termo: as minas apresentavam os shows, falavam sobre os princípios da cultura Hip Hop e, basicamente, comandavam o palco do “Beco das Artes”.
“Periferia tem Axé significa que a periferia tem talento, tem poder, tem força, tem juventude, tem religião”, afirma Asmin Prates, a DJ da noite, responsável pelo controle dos equipamentos de som e pelas bases dos MC’s que se apresentaram antes e depois de GOG.
O elo com a religiosidade de matriz africana se deu também nos aspectos mais sutis, por meio de uma ligação que entidades espirituais e a cultura Hip Hop têm em comum: a rua. Letícia Prates e Nei d’Ogum, iluminados pela luz vermelha que simboliza o exu Bará, interpretaram um trecho da música “Rei da Rua”, homenagem da MC Flavinha Manda-Rima ao orixá que é tido como a entidade do movimento, do entreveiro e da juventude.
“Fizemos uma chamada para que o povo da rua estivesse ali, presente, trazendo a movimentação. A energia desse povo [exus e pombagiras] é mais próxima da nossa, de seres humanos. Eles também usufruem, eles também agem nesses espaços, e trazem o movimento, fazem a conexão do espiritual com o material. A nossa chamada ali para que eles trouxessem todo o seu axé positivo ali para aquele momento”, explica Gabit Box.
“O dono dos cruzeiros, pelos caminhos vai
Vai dizer que o movimento é tua profissão
Eu também faço, meu rap é reza e canção
Ao dono dos caminhos, alupo Bará!
Ó dai-me força, força pra continuar
E faz do encontro a arte do meu viver.
[…]Bará o rei da rua, da malandragem
Todo o povo de fé te pede passagem
Eu peço proteção na madrugada
Paizinho me falou, sem Bará não se faz nada”
Flavinha Manda Rima – o Rei da Rua
GOG é um dos artistas mais conhecidos do Hip Hop nacional. Sua carreira começou 30 anos atrás, e sua importância na difusão do rap nacional e da cultura Hip Hop é comparável ao de nomes e grupos como Racionais MC’s, Thaíde e DJ Hum, RZO e muitos outros que marcaram a década de 90 e as que seguiram.
O MC segue na ativa, nos palcos e fora deles, atuando e refletindo acerca da situação social brasileira, especialmente nas questões ligadas às periferias e à negritude. GOG muitas vezes se utiliza de frases de efeito próprias, as quais normalmente são seguidas por explicações lúcidas e reflexões contundentes.
Genival Oliveira Gonçalves, que veio à Santa Maria acompanhado pela banda de apoio que inclui o músico Victor Victrola, o DJ A e o percussionista Monkey, não desistiu de ver o Hip Hop como movimento, nem da importância da luta e da consciência política e, principalmente, da coerência necessária para quem se propõe a mudar a realidade social.
“O caminho para o centro intoxica, e é preciso desintoxicar. Eu não quero falar que a gente não pode ir nas redes de TV, nas grandes emissoras de TV. Quem quer ir, vai. Agora, o movimento Hip Hop tem que ser o pêndulo, e o pêndulo significa trafegar – e traficar – informação, como disse o Bill. Movimento parado é que nem água parada, dá dengue. É preciso caminhar”. GOG
“Eu acho que a periferia tem o que sobrou, o que a sociedade não quis, mas é de onde ela tira força, seus elementos. Assim como a cultura Hip Hop, é o que tinha, e isso é o que se transformou em resistência, em força, a partir do que ficou lá na periferia, excluído. Eu associo à religião também nesse sentido, porque ela também está excluída, não faz parte da sociedade”, Letícia Prates.
“Eu vejo que é importante, sim, as minas estarem nesse espaço. Tem momentos em que eu entendo que a gente tem que estar empoderada, ocupando esses espaços. Foi muito legal, por exemplo, a Asmin estar nessa parte dos sons, porque nunca tem uma mina nessa parte do som. ‘O som é os manos que entendem do som, mina não entende de som coisa nenhuma’. ‘Mina não tem gás de chamar os manos’… Como assim, não? Tinha três minas puxando o bagulho ali, e tocamos o terror, positivamente”. Gabit Box
“Ao mesmo tempo que a gente está nesse espaço e a gente combate estando ali, eu sei que quando eu subo e pego o microfone eu tenho que ter uma responsa a mais porque eu tô pegando no microfone, tenho que falar algo de fundamento. Sei que eu tenho que ter mais responsabilidade porque sou mina, pra não tirarem onda com a minha cara e não desmerecerem. Mas, ao mesmo tempo, não é uma coisa que tu vai estar nesse espaço apenas pra combater, mas sim porque tu gosta de estar nesse espaço, e tu gostando, vai ter capacidade de trazer o que um mestre de cerimônia traz”. Gabit Box
O XIX Enearte teve como mote o tema “Escambos culturais e reflexões sobre o ser artista e o ser político”, e buscou aproximar da universidade, mesmo que por alguns dias, perspectivas que normalmente não tem muito espaço dentro dela. Na noite do rap, da ancestralidade e da periferia, as trocas e as contradições estiveram afloradas como sempre: ainda falta muito para a universidade se pintar de povo, como enunciou Che Guevara. Mas quem presenciou a noite sentiu que o axé, o talento e a força da periferia abalam estruturas.
Periferia tem axé, tem força e tem talento, pelo viés de Tiago Miotto