Adriana Penna: “O grito ‘Não vai ter Copa’ é um grito democrático”

A partir da repercussão das manifestações de junho de 2013, surgiu o grito ‘Não vai ter Copa’. Tanto propagado quanto criticado, tornou-se a máxima síntese de milhões de brasileiras e brasileiros que, em meio a velhas promessas de mudança, veem-se reprimidos violentamente ao passo que tomam os espaços públicos em protesto. A Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas do Rio de Janeiro de 2016 são bons exemplos, de acordo com a professora Adriana Penna, da lógica de expansão e manutenção capitalista através de megaeventos esportivos, com os quais, além de lucros exorbitantes, constrói-se também um sentimento nacionalista para o qual o país está indiscutivelmente unido.

Adriana Penna é doutora em Serviço Social e é professora de Pedagogia da Universidade Federal Fluminense (UFF). Pesquisadora de temas que relacionam o esporte e o mercado, Penna participou de um evento na Seção Sindical dos Docentes da UFSM (SEDUFSM) chamado ‘Megaeventos esportivos, olhares críticos’ no último dia 12, quando concedeu entrevista à revista o Viés.

Adriana Penna
Fotos: Bibiano Girard

revista o Viés logoPara situar esse período dos megaeventos no país. Como você analisa o atual governo que, teoricamente, propõe-se a defender a classe trabalhadora e essa contrariedade política ao priorizar a iniciativa privada no caso especifico da FIFA na Copa do Mundo?

Adriana Penna (AP): Para começar, desde o período em que eu comecei a fazer, com um pouco mais de aprofundamento, essas análises sobre o esporte do país, para mim, não se torna mais um elemento contraditório a ação do PT. Tendo em vista que eu não o entendo mais como um instrumento de representação da classe trabalhadora nesse país. Então, não se torna uma surpresa nem entendo como uma contradição esse fenômeno. Meus estudos nesse campo foram avançando de 2004 para cá e o que me levou a perceber, o que não faz parte de nenhuma genialidade minha, mais outras pessoas também (não muitas), mas algumas pessoas têm visto da forma que eu vejo, que o esporte no país, já desde o primeiro governo Lula, é uma política de Estado antes de tudo. E uma política de Estado de um Estado que não tem em si nenhuma ou muito pouca autonomia perante as relações contemporâneas no mundo e perante a força do capitalismo atual e sua crise. Então, falar do PT e das condições que esse governo tem propiciado ao avanço do grande capital, das grandes corporações dentro do país é algo que está muito bem articulado com as propostas do governo Lula-Dilma, que, no meu entendimento, também faz parte de um projeto único de 2003 até agora. Faz parte de um Estado que tem compromissos que não podem ser esquecidos com forças que estão acima do Estado brasileiro e que, portanto, tem que conceder essa série de benefícios que não são benefícios exclusivos nem à FIFA nem ao COI, mas, acima de tudo, benefícios à estrutura do sistema capitalista num momento novamente de aprofundamento de crise e que se faz necessário abrir espaço para essa expansão capitalista. E os megaeventos, enquanto fenômenos contemporâneos, têm servido de forma muito própria a essa expansão tão necessária ao capital.

Foi feito todo um aparato legal e jurídico para dar legitimidade a toda essa configuração e a essas novas demandas do país para sediar os megaeventos.

logo Como você acha que o Estado brasileiro se adapta juridicamente e administrativamente a esse momento?

AP: A adaptação legal e jurídica do Estado brasileiro é total. O país transformou, suspendeu, criou uma série de novas leis. Foi feito todo um aparato legal e jurídico para dar legitimidade a toda essa configuração e a essas novas demandas do país para sediar os megaeventos. Inclusive leis que são visivelmente inconstitucionais, mas que, ainda sim, o país garante a existência das mesmas ou retoma algumas leis que ainda estão vigentes, como a Lei de Segurança Nacional, que é uma lei da época da Ditadura Militar e que o país retoma da noite para o dia, naquela ocasião recente do casal que foi preso em São Paulo, com o intuito declarado de espalhar e divulgar o medo, o controle sobre o povo na rua, sobre, digamos, ‘parcela da classe trabalhadora consciente na rua’. Então, eles se utilizam do aparato legal da forma que bem lhes convém. A gente está entendendo esse momento como Estado de exceção, no qual o governo faz novas leis, suspende algumas outras, na tentativa de dar condições.

logo O processo bélico é intimidador, não é?

AP: Um processo bélico, um processo repressivo, um Estado policial intenso, no qual, paralelo a uma política de criminalização dos movimentos sociais, criminalização da pobreza e da miséria, no sentido de que mais uma vez é necessário retirar do caminho do suposto avanço e desenvolvimento urbano, retirar todo esse tipo de empecilho, da pobreza, da fome, da miséria, retirar do caminho atuando na forma de remoções e coisas do gênero.

logo Você acha que esse movimento de tornar o Estado cada vez mais bélico parte das polícias somente ou de alguns setores do Judiciário? Ou ele é deliberado por parte dos governos tanto do federal, quanto dos estaduais?

AP: Eu acho que ele é deliberado por parte dos governos estadual e federal, mas que tem todo um comprometimento de outras instâncias, na medida que não dá para dizer que esse aparato que a gente está falando, jurídico, legal, tenha alguma linha de ilegalidade. É tudo feito de forma legítima. Foi retomada de forma legítima a lei de segurança nacional […], foi sancionada uma lei de organização criminosa, quando agora você consegue caracterizar, existem critérios dessa lei para você dizer o que é uma organização criminosa, o que não é. Quando, em princípio, se caracteriza como organização de no mínimo quatro indivíduos em prol de uma mesma causa. Então isso é legal, como que a gente vai dizer que é ilegal? Foi votado, foi discutido, foi aprovado, não é isso que é democracia? Então, foi aprovado. Quando, por exemplo, baixa-se uma portaria da lei pela segurança da lei da ordem pública, na qual as Forças Armadas podem ser convocadas, como já estão, nas ruas do Rio de Janeiro. Sobretudo no Rio de Janeiro, que tem todo um projeto aí combinado de expansão urbana, desse novo modelo da cidade global e ainda um projeto combinado de especulação imobiliária.

Eu penso que a situação do Brasil lá fora está tão constrangedora, que nem mesmo os organizadores da Copa da FIFA esperavam que a coisa fosse chegar ao ponto que chegou, que o Brasil precisa mostrar algum tipo de controle. Controle esse que o Estado está perdendo de mão e, em grande medida, também não pode ter, não pode manter esse controle tão de perto. O controle que eles estão fazendo é através da força.

logo Sobre a questão da flexibilização das fronteiras brasileiras? Como se explica o movimento de que existe uma lei que faz todo esse aparato para flexibilizar as fronteiras durante o evento da Copa e, agora, 30 dias antes do acontecimento, existem operações militares nas fronteiras para conter o tráfico de drogas e armas, por exemplo?

AP: É exatamente o que eu penso. Aí, sim, existe a grande contradição. Há um aparato montado nas fronteiras que sempre o Estado brasileiro, sempre os governos brasileiros alegaram que é um fronteira enorme, e de fato é, de dimensões que não é possível dar conta de monitorar. Inclusive tem sido desculpa para uma série de concessões a outros países, a negócios feitos por outros países, é concessão de grandes faixas territoriais, a Amazônia por exemplo, sob essa alegação. E agora me vem esta semana mostrar um aparato das forças armadas em algumas fronteiras fazendo vistoria em carros, ônibus. Eu penso que a situação do Brasil lá fora está tão constrangedora, que nem mesmo os organizadores da Copa da FIFA esperavam que a coisa fosse chegar ao ponto que chegou, que o Brasil precisa mostrar algum tipo de controle. Controle esse que o Estado está perdendo de mão e, em grande medida, também não pode ter, não pode manter esse controle tão de perto. O controle que eles estão fazendo é através da força. Da força bruta, da força das armas, com a utilização de equipamentos de alta tecnologia para controlar. Práticas antigas retomadas sob novas condições, circunstâncias materiais, mas práticas tanto legais, quanto repressoras. Eu penso que isso é mais uma imagem para ser vendida lá fora, nesse outdoor dessa marca ‘Brasil’ que o governo tem chamado. É a marca Brasil que tem que ser vendida lá fora, porque, de fato, a gente está abrindo o país às grandes estruturas, aos grandes conglomerados, aos grandes investimentos. A presidenta volta e meia está lá fora vendendo o país, propagandeando o que o país tem de bom a oferecer. Então, não vejo nada de eficaz nisso, na medida que basta você apresentar um comprovante de que tem alguma relação com o evento, que você entra no país. Já há alguns médicos no Brasil falando dos perigos desse descontrole por conta de países que estão vivendo epidemia de poliomielite novamente, o risco que isso pode ter para o Brasil e, no entanto, cadê o controle aí? Isso não acontece.

logo Sobre a imagem ao exterior, mas agora pensando dentro do país: dentro de todas as manifestações que, desde 2013 temos acompanhado, que é um marco, é um acontecimento, pelo menos para a nossa geração, dá para a gente considerar que existem duas vertentes dentro das criticas à copa? Uma vertente mais conservadora, que até apoia o sistema bélico e as remoções, e o pessoal do ‘não vai ter copa’, que está tentando debater uma sociedade sem copa, que fosse utilizado toda essa energia para outros meios. Dá para a gente perceber essas duas vertentes? E elas talvez  se encontram em algum ponto?

AP: Dá. Olha, é muito complexa essa pergunta. Eu penso que, a princípio, não deveriam se encontrar, porque, de fato, e sobretudo na mídia brasileira, no campo enorme hegemonicamente conservador, em defesa da Copa, e que de vez em quando precisa dar um “tonzinho de crítica”, mas que a mídia nunca esteve tão perigosa. Ela constrói um otimismo que ‘qual é o papel do esporte?’. O papel do esporte moderno é trazer uma pátria forte, unida em prol de um projeto de país e a mídia está aí. No entanto, a gente está vendo que ela não está conseguindo tanto, por exemplo, eu falo aqui mais usando o Rio de Janeiro. Nunca se viu em outra Copa um desânimo tão grande em se enfeitar rua, pintar ruas – isso era uma constante em qualquer outro evento mundial de futebol. Você vê a prefeitura tentando fazer uma campanha de incentivo, mas que também não está dando muito certo. Então, o não vai ter copa. Eu penso que não se encontra com o conservadorismo, no entanto, eu acho que é um grito que foi assumido pela esquerda de forma geral, mas que — aí, sim — dentro da esquerda tem uma bifurcação. Porque tem uma grande ala da esquerda que, inclusive, em alguns momentos, faz crítica ao grito ‘não vai ter copa’ e diz que seria uma certa ingenuidade ou uma diluição política ou uma fragmentação na discussão política dizer que não vai ter copa. Quando a gente sabe que vai ter — e aí defendem a ideia de que não copa, vai ter é luta. Me parece que os críticos ao ‘não vai ter copa’, ainda que vindo da esquerda alguns, mas também a crítica maior vem da direita, vamos pegar a esquerda agora. Primeiro, é preciso que fique claro para eles que a gente entende perfeitamente que a copa vai existir. Com todo o aparato repressivo que esta aí justamente para acontecer, a gente não tem a menor dúvida de que a copa vai acontecer. Vai acontecer para o turista estrangeiro, vai acontecer para as classes médias do Brasil e, infelizmente, para a classe operaria, que vai ficar sem comer um mês, mas muitos vão comprar ingressos para ir à copa — tamanha a força da ideologia que está contida nesse elemento. No entanto, é importante esse grito, que se tornou um grito que, de certa forma, ameaça isso que está aí, no sentido de que é um grito que denuncia, que promove uma certa abertura e limpeza de campo, no sentido que mostra onde é que estão as contradições ali de um país no qual a saúde é cada vez mais precária e, no entanto, não tem dinheiro público para suprir. A mesma coisa acontece na educação. A mesma coisa acontece com a condição de vida da classe trabalhadora, que está oprimida, segregada, que está sendo isolada, então ‘não vai ter copa’ é no sentido de dizer ‘nós não queremos copa’ e, mais ainda, não é só no Brasil, a classe trabalhadora está no mundo. É um fenômeno que não traz à classe trabalhadora em momento algum, sobretudo neste aprofundamento da crise, benefício qualquer. Não traz nenhum tipo de benefício. Só mais uma coisa sobre o não vai ter copa, que, para nós, é muito importante, ao contrário dos seus críticos, não é um grito espontâneo que nasceu nas ruas. Não é um grito que nasceu, brotou do nada. Esse grito foi pensado, foi estrategicamente articulado por um grupo que faz parte do Sindicato Estadual dos Profissionais da Educação do Rio de Janeiro, o SEPE. Mais especificamente, esse grupo é chamado Oposição Sindical, que compõe a regional 3 do SEPE, do qual eu pertenço a ainda, embora professora da rede federal já há algum tempo, mas militei no SEPE durante muitos anos enquanto professora do ensino básico. E esse grito foi uma proposta nossa numa assembleia sindical em 2011 e nós levantamos e colocamos a necessidade de que o sindicato negasse os megaeventos no país, que se colocasse contra e que esse grito passasse a ser um grito do sindicato, nas suas lutas, nas suas idas às ruas, nas marchas. Nós vencemos, foi aprovado esse grito. Foi aprovado como política do sindicato. No entanto, não passou muito tempo, houve um descomprometimento com isso que foi votado e aprovado em congresso sindical. Não se queria mais esse tipo de comprometimento contra a copa, porque eles passaram a assumir o discurso de que querem uma copa para a classe trabalhadora. A gente não entende a possibilidade de uma copa para a classe trabalhadora dentro do capitalismo se o objetivo central é produzir mais lucro e mais lucro para o capital. Então, nós passamos a assumir sozinhos esse grito, já que fomos nós que criamos. O sindicato rompeu o acordo e nós passamos a assumir e passou a ser nossa bandeira à ida nas ruas, mas, sobretudo, um grito do MM5, que é o movimento no qual eu milito, o Movimento Marxista 5 de Maio. Nós levamos essa faixa que, inicialmente, como proposta apresentada e votada no congresso, era ‘não vai ter copa nem Olimpíada(s)’ e, a partir de então, a gente assumiu o grito só ‘não vai ter copa’ e ganhou essa dimensão que ganhou. Esse grito era puxado nos carros de som no início das passeatas, das jornadas de junho, no momento ali de aglomeração em cima do carro de som e começou a se multiplicar e começou a ganhar força e a gente começou a perceber que, em São Paulo também, que em outros estados também e ganhou a dimensão que ganhou. Hoje até os conservadores de plantão têm dito que é um grito terrorista. Eu acho muito engraçado quando eu vejo.

logo E ele foi também para o território da web, né?

AP: É, ele ganhou uma dimensão muito grande. Mas é preciso que fique claro que não tem nenhuma ingenuidade, nenhuma diluição política nesse discurso. A gente tem plena noção dos perigos que estão postos, das forças que o Estado tem, estão utilizando e vão utilizar. É preciso que a gente tenha a clareza de que vão utilizar. O aparato está aí para colocar qualquer um de nós 30 anos atrás das grades, sob alegação de terror, de ser terrorista. Então é isso, é ameaçador.

logo A questão do esporte e todo esse envolvimento da classe no evento: de que forma o consumo desse esporte já posto no molde capitalista contribui para o apaziguamento da classe trabalhadora nesse momento? Como você analisa a influência do fato de ser disseminado culturalmente de que o ‘Brasil é o pais do futebol’, de que forma esse fator se aplica no caso da copa e de toda a expectativa mundial que se gera no país-sede?

AP: De fato, o fenômeno do esporte é esse elemento que agrega, historicamente tem sido assim no capitalismo. Recentemente, se a gente for olhar nos anos 60, 70, as ditaduras e todo a Operação Condor se valeram do esporte, das copas, nessa perspectiva de trazer a tolerância, de apagar as contradições e usar ideologicamente o esporte como o elemento unificador da pátria. Quando, por baixo dos panos, a gente bem sabe tudo que aconteceu, o terror, os porões da ditadura, como tudo se deu.

logo Puxava ate um espírito meio olímpico de parar as guerras…

AP: Se utilizavam até de elementos da história antiga e das Olimpíadas antigas, fazendo uma relação completamente mecânica, como se aquelas Olimpíadas pudessem ser comparadas às Olimpíadas modernas, que não têm relação qualquer, porque se trata de uma outra materialidade, outra lógica de produção que não tem como a gente igualar. Então, fazem essa transposição mecânica, porque “as olimpíadas são capazes de parar as guerras?” Não são, né. A gente vai fazer uma aqui debaixo de uma guerra, certo? Então isso, esses elementos ideológicos são muito presentes. Eu digo isso em um dos meus textos, que esse elemento ideológico é muito visível. Se a gente vai pegar, por exemplo, um evento do porte das Olimpíadas nos anos 30, lá na Alemanha com o Hitler. Ali estava presente esse elemento ideológico de passar para o mundo o exemplo de uma raça forte, vitoriosa e unida em prol de um projeto. O que que eu penso que acontece em meados de 90, início de 90 pra cá? Esse elemento ideológico não se perde, no entanto, junto a ele ganha muita força a questão econômica. Então, a gente tem agora, para além do elemento ideológico, uma perspectiva de alavancar a questão econômica do capitalismo na medida em que os Estados garantem, prioritariamente, toda a estrutura, a infraestrutura desses eventos, tendo em vista que o grande capital encontra-se em crise e precisa de meios para esse processo de circulação mais rápida do capital. Então, o Estado garantidor de toda essa infraestrutura possibilita aquilo a que a gente já vem assistindo há algum tempo, a expansão do setor de serviços. E é justamente nesse setor de serviços que as grandes empresas e megacorporações estão atuando, com todo o aparato preparado com o dinheiro que é nosso. Então, a questão ideológica é colada à questão econômica — em grande medida, é a mesma função a que a gente assistiu nas ditaduras, a que a gente assistiu no próprio evento das Olimpíadas de Berlim em 1936 e tudo mais. Mas esse elemento econômico ganhou uma força muito grande. Recentemente, houve uma polêmica de um jornal inglês falando que os representantes do COI estavam muito insatisfeitos com o Brasil e a possibilidade de as Olimpíadas voltarem para a Inglaterra, mas que é uma possibilidade remota, o COI já desmentiu, o governo brasileiro ficou muito sentido, o Eduardo Paes a mesma coisa (risos), mas vejam: se isso acontecer, não significa absolutamente nada [enfática] para o capital. O que ele iria fazer aqui, vai fazer lá e tudo que era necessário fazer aqui já foi feito, as empreiteiras já ganharam os tufos de dinheiro que ganharam, toda essa estrutura econômica, esse polos econômicos que vão ficar nos grande centros, como no Rio de Janeiro, por exemplo, isso já está pronto. E, caso voltasse pra Inglaterra — o que eu penso que não vai acontecer —, eles já estão falando que seria necessário uma reforma de tudo, então quer dizer, abre-se de novo o caminho. Então, não que antes a gente tivesse que analisar a ideologia separada do econômico, isso pra nós é impossível. Para o marxismo, isso é impossível, na medida em que essa relação se dá de forma dialética. Mas essa relação ganha muito mais força nesse momento.

E é isso mesmo, eles vêm, eles fazem, constroem, produzem, com tamanha precarização desses trabalhadores, não por acaso a gente tem visto algumas manifestações importantes desses trabalhadores no Brasil e em outros países que tiveram esses eventos recentemente. Então, eu acho que o principal critério de escolha é isto: países que têm sua classe trabalhadora da forma mais desorganizada possível.

logo Existe uma relação que coloque o Brasil no mercado internacional, nessa posição de crescimento, para a escolha de ser o país-sede desse evento? É uma questão especifica?

AP: Eu faço uma análise específica dessa escolha — se bem que tem a Inglaterra aí, mas que não tira essa análise de foco. Se a gente for olhar a África do Sul, que esteve recentemente envolvida, Brasil, países que estavam nessa linha de processo de desenvolvimento e tudo mais, a gente vive num país que tem uma das mais precárias forças de trabalho do mundo. Então, é o local mais apropriado pra extração de mais-valia. Quantos milhões de postos de trabalho flexíveis foram abertos nesse país? E que muitos já estão terminando? Então aquela discussão que a gente faz da dominância, da flexibilidade, da produção flexível de que o Harvey fala, a expansão do trabalho flexível, a gente está vivendo aqui com essa coisa da Copa. Vivendo com muita força. E é isso mesmo, eles vêm, eles fazem, constroem, produzem, com tamanha precarização desses trabalhadores, não por acaso a gente tem visto algumas manifestações importantes desses trabalhadores no Brasil e em outros países que tiveram esses eventos recentemente. Então, eu acho que o principal critério de escolha é isto: países que têm sua classe trabalhadora da forma mais desorganizada possível. Agora, a gente tem em 2022 a Copa no Catar. Lá, os trabalhadores que já estão, desde 2010, atuando na infraestrutura não são locais, são trabalhadores que estão indo do Nepal, da Índia, por conta dessa força de trabalho precária. Salários irrisórios, pessoas que estão morrendo, vocês devem estar sabendo disso…Já do ano passado para cá, mais de mil trabalhadores [morreram]. A perspectiva é de que, se a coisa continuar desse jeito, vão se perder mais de quatro mil trabalhadores nas condições precárias em que eles encontram lá para trabalhar. E não é a população local que se submete a esse trabalho, eles têm que trazer de fora. Então, vejam, mesmo quando o país não tem as condições de um país subdesenvolvido, de periferia, eles importam mão-de-obra para fazer esse tipo de ‘trabalho sujo’, digamos assim. Fora isso, a ideologia que vem ganhando força, sobretudo dos anos 80 para cá, com a expansão das ONGs, principalmente, é a história do trabalho voluntário. São simplesmente quinze mil voluntários para trabalhar nessa copa, para ganhar absolutamente nada e ficarem felizes, porque ficam, é a expressão do amor à pátria. É a expressão, estou fazendo pelo meu país, país que eu amo. Eu tenho dito muito que eu não vou torcer, porque não vai dar nem tempo — a gente estará na rua.

logo Perante a imagem global, a gente pode fazer uma análise do momento “vai ser Brasil” da festa de quando nós éramos capa até das principais revistas que apostavam no Brasil e o Lula foi lá e trouxe a Copa e era um país para frente. E a de agora, de o mundo inteiro falando mal, preocupado…Qual tem mais peso? A do momento que era de glória ou a que vai ser de rebaixamento, digamos?

AP: Eu acho que cada um, em seu tempo, teve seu peso necessário. Aquela hora que o Lula foi e traz isso como um prêmio como se ele, o governo Lula, tivesse feito essa conquista, a gente sabe que a coisa não se dá assim, mas que teve um peso, uma importância nacional enorme. Eu penso e eu gostaria (quero estar muito equivocada quanto a isso) que já-já muita coisa vai acontecer, nós estamos indo para a rua, como tivemos em junho, uma massa mesmo, no sentido de um movimento amorfo, um movimento diluído, difuso. Não é a classe trabalhadora consciente na rua. Nós vamos assistir a isso de novo. Claro que com seus grupos organizados, partidos organizados que até sabem exatamente o que estão querendo lá. Eu penso que esse momento vai ter um impacto muito grande para o mundo, porque a gente vai assistir a muita coisa, a muita arbitrariedade. Esse momento vai ter muita importância, mas aí o que eu me pergunto é ‘como nos utilizarmos deste momento para avançar?’. A falta que um partido revolucionário faz nesse momento para se utilizar disso que a gente está vivendo e utilizar como estratégia para avançar. E aí? Morrem mil, mais mil são presos e vão ficar 10 anos nas grades, 30 anos, mas o que nós vamos fazer com isso?

logo A segunda-feira após o domingo de encerramento…

AP: Acabou. E se o Brasil for campeão, então, o governo sabe muito bem como se utilizar disso para suas políticas e a Olimpíada estará logo aí, mas e nós? O que a esquerda está fazendo com isso? Como a esquerda está se utilizando disso para construir políticas que, de fato, possam transformar as condições concretas desse país?

logo A partir das manifestações de junho, que é um acontecimento ainda em aberto, que ninguém sabe o que vai se ter a partir daí: de que forma os movimentos organizados fazem a análise de como se aproveitar mesmo desse momento? Porque a própria crise da representatividade entra nessa questão, de diluir tanto essa população, esses manifestantes e que fica muito difícil de saber uma direção pra apontar. Se tu falas hoje de organização, parece que já dá um medo.

AP: Sobretudo uma organização sindical, porque a gente tem que entender também o que é um sindicato. O sindicato é uma organização burguesa, que tem limites muito bem previstos — os limites sindicais. A luta que se dá dentro de um sindicato não é, por exemplo, a luta que se dá num partido. Então, quando você cita aquele morador de rua que foi preso, simplesmente, porque estava sentado ali, já foi um dos primeiros exemplos e com outras pessoas também, simplesmente porque estavam passando foram engaioladas. Agora, o que a gente precisa analisar é a realidade concreta nessa situação. O que de fato mudou de junho de 2013 para cá? Na materialidade concreta da sociedade capitalista, da economia brasileira, as relações de força…elas mudaram? O controle e o domínio da classe dominante  perdeu algum tipo de força? Houve algum tipo de quebra? As condições materiais são as mesmas, sobretudo quando a gente vê uma esquerda pedindo Copa para trabalhador. Eles não estão contra a Copa, eles está contra esta Copa. Eles querem outra copa. Quer dizer, isso é quase que um sonho. É um sonho achar que, no capitalismo contemporâneo, na hegemonia do monopólio, alguém vai parar, algum Estado vai parar para fazer Copa para trabalhador. Trabalhador foi feito pra morrer e para trabalhar e morrer trabalhando em estádio, não é pra assistir à Copa, certo? Então, a gente está vivendo um problema político que não há organização de um partido que centralize isso e fale: ‘nós, a partir daqui, vamos avançar’. O movimento em que eu milito, ele é, de fato, muito pequeno, mas a análise que a gente faz, que o MM5 faz é essa, de que o momento não muda estruturalmente as condições materiais da sociedade capitalista, nem as relações de força no país, certo? A gente não tem um partido que possa levar isso, essas contradições a frente no momento.

logo Então dá para dizer que o que mais se demarca nessas questões é a força de trabalho, da exploração e da falsa alimentação de que a Copa é para o povo?

AP: Sim, acho que a contradição maior continua sendo essa. Por mais que se diga – a direita, o conservadorismo, os reformistas, os reacionários dizem – que a classe social ou a luta de classes não existem mais, é isso que está em jogo. O país reviveu, chorou seus mortos, de forma muito justa, depois dos cinquenta anos do golpe militar. No entanto, não vi a esquerda sequer mencionar que um país irmão, a Venezuela, está prestes a sofrer um golpe militar da extrema direita. E, do lado de cá, a mídia hegemônica fala o que fala. É desse tipo de desarticulação que estamos falando. O que está em jogo é a mesma coisa que tem estado historicamente nas relações sociais capitalistas: a luta de classes. Quais mecanismos o capital vai utilizar mais ainda para se manter nesse processo de avanço da exploração da classe trabalhadora? Há uma rotatividade nesses megaeventos. Por que se fez um aparato daquele porte, na Inglaterra, por que tem que levar para outro país? Por que não se aproveita o aparato? As pessoas acham que é para dar oportunidade a outros povos. Há, na verdade, uma necessidade de esse capital circular. É preciso, então, inventar coisas para ele circular. Aquilo já está pronto, é capital parado. O tempo que o Estado vai levar para reaver aquilo é muito grande.

logo Circular e, ao mesmo tempo, destruir, como a senhora também diz num de seus artigos.

AP: É a produção destrutiva ou obsolescência programada .

logo Alimentando, também, um sonho.

AP: Sim, de que será maior, de que haverá uma chance para outro país. Mais a necessidade de se destruírem esses estádios ou de largá-los à sua própria sorte, para que caiam de podres. Essa é mais uma forma de colocar em prática a circulação do capital.

logo E o investimento, muitas vezes, é público. A pergunta é: o lucro é de quem?

AP: Quantos dos nossos aeroportos vão passar para a mão da iniciativa privada? Todos. O governo diz que são públicos, mas são privados. Daí a força das PPPs, as Parcerias Público-Privadas. O mesmo acontece com nossas universidades. Daqui a quantos anos a iniciativa privada estará lá, de forma ampla? Na rede de saúde também, como é o caso dos hospitais universitários.

É sobre isso que temos que refletir. O grito ‘Não vai ter copa’, sobretudo da forma como ele foi assimilado – e por mais que ele tenha uma origem, da nossa parte, revolucionária –, é um grito democrático. Dizer que não se quer Copa, mas quer saúde e educação está dentro dos marcos da democracia burguesa. Esse grito extrapolou os limites do Brasil.

logo Professora, mesmo que haja Copa, mesmo que existam lucros provenientes da Copa, há uma crise na Copa, pelo menos em comparação com as mais recentes. De onde surgiu essa crise? Mesmo que a hegemonia brasileira tenha todo o poder midiático e econômico, parece que alguns bloqueios foram rompidos.

AP: Temos que trabalhar, nesse caso, com a categoria de ‘contradição’. Por mais que esses movimentos tenham sido diluídos, despolitizados, com a negação de partidos e de suas bandeiras, como assistimos, ele de fato conseguiu furar um bloqueio midiático muito forte. Atravessou e tem atravessado o mundo. Nesse sentido, essa crise se implementou. Nem na ditadura, nem na Copa de 70 se viu isso no país. O Brasil é o país do futebol, mas a gente viu massas, milhões de pessoas na rua gritando que não querem Copa. É sobre isso que temos que refletir. O grito ‘Não vai ter copa’, sobretudo da forma como ele foi assimilado – e por mais que ele tenha uma origem, da nossa parte, revolucionária –, é um grito democrático. Dizer que não se quer Copa, mas quer saúde e educação está dentro dos marcos da democracia burguesa. Esse grito extrapolou os limites do Brasil. No entanto, já estão sendo preparados os eventos em outros países. Por mais que essas reivindicações tenham tomado vulto, não é um impedimento para que esses eventos se realizem em outros países. Quando falamos em desorganização política, ela está colocada. Qual seria o caso se fosse tão simples assim? No Brasil as pessoas estão morrendo – de fato –, em uma cidade como o Rio de Janeiro, por exemplo, e a mídia nos mostra isso. Fora o que ela não mostra. Por quê? Porque se extrapolam alguns limites, não tem como não mostrar. É quase todo dia que morre uma criança com uma bala que eles chamam de perdida – mas que sempre acha a cabeça de alguém –, é a polícia arrastando gente, é a sociedade voltando a fazer, com suas próprias mãos, o justiçamento. Isso está virando uma febre. É o reflexo de um país sem Estado. Vamos reclamar pra quem? A quem? Aí, contraditoriamente, se fala que há Estado, porque a polícia está na rua. Mas está lá para proteger os direitos de quem? O ir e vir de quem? O fluxo do quê? Não é da classe trabalhadora, que está despossuída de bens materiais e imateriais.

logo Da mesma forma com o judiciário, não? Constrói-se toda a legitimidade para esse estado de exceção, mas que não atua no cotidiano.

AP: Estão correndo numa velocidade incrível para aprovar a lei anti-terrorismo, do senador Romero Jucá (PMDB-RR), que a apresentou no Senado no final de 2013. Já passou por várias comissões. E ele ainda usa um discurso atraente: ele critica a retomada da Lei de Segurança Nacional, porque é um absurdo retomar uma lei da época da ditadura militar e propõe essa lei anti-terror, que, se for aprovada, tem que ser por esses dias. E, se não for aprovada, o que tem aí dá conta.

logo Como se deu a organização dos Comitês Populares?

AP: Eu não faço parte. Sei que há em cada uma das cidades-sede e que é uma organização muito importante no sentido das denuncias que eles fazem, das informações, dos dados – que são fidedignos e sempre atualizados. Só tenho uma crítica: que também reivindica uma Copa para os trabalhadores. Que reivindica uma Copa mais humanizada, que a baiana possa vender seu acarajé, que o vendedor de cerveja possa vendê-la, que o trabalhador possa assistir ao jogo. Isso não nos contempla. Para nós, por exemplo, do MM5, isso não vai mudar a realidade do país. É a busca do consenso. Nós não estamos em busca do consenso. Buscamos condições que possam levar a uma real transformação da sociedade.

logo Essa Copa para o trabalhador pode ser vista até como um espelho do governo Lula, por exemplo.

AP: Aí, quando você vê o preço dos ingressos, isso já se desmonta. O mais barato custa 50 dólares. Nesse sentido, temos esse desacordo com os comitês. Não negando a importância que eles têm em termos de rigor, de pesquisa, de compromisso com as comunidades, até de prestar serviços jurídicos. Mas olhando para essa questão maior da qual estamos falando, de que tudo isso se trata de mais uma expressão da luta de classes, o comitê não atua na perspectiva da transformação.

logo Serve mais como uma ferramenta de organização?

AP: Para apaziguar. Porque, por exemplo, quem foi removido quer morar de novo. Lógico, temos que lutar por isso, as pessoas não podem ficar na rua. Vive-se em um Estado policial que hoje à noite marca sua casa e amanhã quebra as paredes. Mas aí, volto eu a falar do partido revolucionário. Como organizar a classe trabalhadora? Agora, que essa classe trabalhadora sente as contradições, temos que ir adiante.

logo Tem havido, nas cidades-sede, uma reconfiguração urbana. No Rio, sobretudo, é uma mudança de modelo de cidade. Qual leitura pode ser feita, a partir do marxismo, dessa reconfiguração?

AP: Primeiro, é uma necessidade do capitalismo. Criar padrões de cidade. David Harvey fala sobre isso, sobre o padrão de cidade global. O Rio de Janeiro vai ficar igual a Nova Iorque nesses aspectos. As capitais brasileiras todas ficarão muito parecidas. É uma demanda dos centros econômicos, que eles sejam colocados na mesma condição, com uma mesma aparência. É a circulação livre da qual o mercado precisa. Essa reconfiguração, que não vem só em nome dos megaeventos, diz respeito a todo um projeto de globalização. São cidades iguais, com um modelo empresarial. O que importa é que os negócios possam ser encaminhados. E a classe trabalhadora tem que abrir espaço para os avanços do capital.

logo Tentando tomar uma perspectiva otimista: é possível tomar esse momento para o reconhecimento da própria classe trabalhadora como tal?

AP: Eu penso que é esse o momento de conseguir isso. Não é porque muitos serão presos ou mortos que isso vai acontecer. Não vem como uma mágica. Penso que é um momento para construir a retomada de consciência da classe trabalhadora. Para isso a gente precisa se organizar, a gente precisa mostrar as contradições, para isso a gente precisa de um partido que de fato desempenhe esse papel, de organizador da classe. Para que esse momento não fique em branco. Que possa haver qualidade de transformação. Temos, sim, que utilizar esse momento em prol da classe trabalhadora.

logo Para que não aconteça, por exemplo, como na greve dos garis do Rio de Janeiro ou dos motoristas de ônibus de Porto Alegre, nas quais, após a greve, o movimento se diluiu…

AP: Isso representa a perspectiva imediatista dos movimentos e dos sindicatos. Que se dilui após conquistar. Não é isso que temos que fazer. Daí as diferenças dos partidos e dos sindicatos, dos movimentos sociais para as lutas conscientes dos interesses de classe. Aí a ideia não é os movimentos sociais organizados para denunciar as arbitrariedades. Mais do que deixar sem casa, no caso das remoções, é uma desestruturação política. Mais do que reivindicar o projeto ‘Minha casa, minha vida’, que é um projeto casado com a expansão do capital, é que esse movimento possa colocar a classe trabalhadora numa perspectiva de avanço. Não são as massas sozinhas na rua que vão fazer isso. Não vai cair do céu a consciência. É preciso organização para isso.

logo Esse apaziguamento, infelizmente, vem desde a ascensão do governo Lula…

AP: Foi um grande baque. Entrou um trabalhador lá – foi isso o que boa parte da classe trabalhadora entendeu. Foi um desserviço à organização, aos partidos de esquerda, à própria classe. Abriu os caminhos que o capital precisava, que até então não tinham sido abertos.logo

ADRIANA PENNA: “O GRITO NÃO VAI TER COPA É UM GRITO DEMOCRÁTICO”, pelo viés de Bibiano Girard, Gregório Mascarenhas e Marina Martinuzzi

bibianogirard@revistaovies.com

marinamartinuzzi@revistaovies.com

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