A arte de sorriso em sorriso

 

Foto: Macarena Rodrigues.

Um típico dia de outono em Santa Maria, região central do Rio Grande do Sul: é frio pra caralho de manhã, mas de tarde o sol obriga todos a irem despindo-se dos casacos, um a um. Domingo, aqui, é dia de ressaca. A cidade é cheia de jovens e as noites são longas e ébrias. Compreende-se a vontade de ficar baixado em casa, sair só quando a luminosidade já não for tão hostil. Mas hoje a gurizada resolveu desentocar. Pela Avenida Liberdade, na altura do bairro Passo d’Areia – um subúrbio tranquilo a cerca de meia hora de caminhada do centro da cidade –, grupos se dirigem com pressa em direção à Praça do Mallet.
 
Ninguém quer perder a Geringonça tocando em praça pública, de graça. Além do mais, o sinal está fechado para a juventude santa-mariense; há uma sensação de que todos os eventos devem ser aproveitados a pleno. Pouquíssimos bares e casas noturnas sobreviveram à fiscalização da prefeitura, que, desde o terrível 27 de janeiro de 2013, começou a funcionar de verdade. Esses lugares, é claro, têm um critério em comum para decidir quem entra e quem fica na rua: o consumo. Por outro lado, os espaços públicos dispõem de nada ou quase nada em termos de infraestrutura. A “Boate do DCE” – casa noturna mantida pelo Diretório Central dos Estudantes da Universidade Federal de Santa Maria –, por exemplo, funcionava desde 1968, com entrada gratuita e cerveja barata. Fechou as portas ainda no começo do ano passado, e um dos últimos shows foi da Geringonça.
 
O fato de a apresentação que lançou o segundo EP da banda, intitulado Bico/Pharmacê, ser em um espaço público, fora do centro da cidade, não foi uma escolha aleatória. Faz parte do caráter geringonceado ser totalmente a favor da ocupação dos espaços públicos. Talvez essa seja uma das poucas decisões do grupo que passa por um planejamento, uma premeditação. O resto é gambiarra, improviso, como o próprio nome sugere. Assim foi na Praça do Mallet: um gerador, que insistia em falhar, fornecia a energia aos equipamentos de som que levavam animação à plateia. No show de lançamento do primeiro EP, realizado na desativada estação de trens de Santa Maria, não foi muito diferente: a própria banda ajudou a limpar os banheiros depois da festa.
 
“A Geringonça botou o povo para dançar com samba, rock e até bandinha”
Ao caracterizar a forma geringonceada de musicar, Adriano Taques e Cezar Gomes resumem muito bem o que foi aquela tarde: “sabendo que é possível, a gente vai lá, tenta fazer, e às vezes dá.”. Nesse dia, assim como todos os outros, deu, apesar da falta de energia elétrica e de banheiros no local, a Geringonça botou o povo para dançar com samba, rock e até bandinha – como é chamado um ritmo tradicional alemão, muito comum nas pequenas comunidades rurais do interior do estado, mas pouco conhecido nos círculos mais alternativos das cidades maiores.
 
Misturança artística sobre os palcos
A liberdade musical talvez seja uma das grandes marcas que a Geringonça carrega desde seu nascimento, em 2011. Vinda do bairro Camobi, a personalidade improvisada do grupo adianta a forma como as músicas, letras e arranjos são pensados.
Numa mesa de bar, com o embalo ditado pelas cervejas compartilhadas, os seis amigos resolveram fazer um som. A partir do momento em que Evelíny apresentou um material próprio, a Geringonça começava a tomar forma e já deixava para trás a ideia inicial de compor o trio “Genipapo”, que tocaria músicas cover.
A “nonsense legal” que Vinicius usa para caracterizar a banda dá-se pelo método nada convencional e totalmente invertido com o qual o processo de construção e criação aconteceu. As músicas foram feitas, depois gravadas e só aí houve a decisão de subir ao palco. Mas só subir ao palco também não se encaixava na proposta, então personagens e enredo foram inventados para formatar o espetáculo “Música Típica do Lado de Lá”.  Evelíny Pedroso é o Pedaço da Natureza, Adriano Taques é o Palhaço Zuli, Cezar Gomes é Ivan Kchowski, Rodrigo Cidade é o Grilo-Cantor, Vinicius Bertolo é Julián Ramirez e Vinicius Nicolini é o Voodoo.
O surgimento das personagens, que também carregam figurinos próprios em toda aparição, surpreende o público de ambas as maneiras: há quem ame, há quem odeie. De acordo com Evelíny, “é um estranhamento frente ao fato de a gente não lidar só com a música”. Com pouco mais de dois anos de vida, a banda já ultrapassa o repertório de 30 músicas (muitas ainda na fila de espera para serem gravadas) e já tocou no reconhecido palco do Circo Voador, no Rio de Janeiro, através da participação no WebFestValda, em 2013.
 
 “Geringonça não é só um nome, uma palavra, é um estilo de vida.”
Como fazem questão de frisar, nada foi muito pensado para proporcionar o caráter geringonceado, e Cezar dita o ritmo com o qual se estabelece o grupo: “Geringonça não é só um nome, uma palavra, é um estilo de vida. É o estilo de vida gambiarrento. Assim, deu uma zica ali, tu vai lá e ata um pedaço de arame e vai funcionando.”  Essa forma de encarar o trabalho (e a diversão) é exatamente o que contorna o aspecto indefinido que Geringonça tem. É samba, é rock, é blues, é “uma concha de retalhos”, que também conta com um suporte de aproximadamente 40 pessoas de diferentes áreas para o projeto manter-se vivo com toda sua irreverência.
A pesada bagagem de artista independente do interior do Rio Grande do Sul, “levando no peito e só conhecendo essa forma”, faz com que a Geringonça tenha uma firme crítica ao mercado que comercializa a cultura. As fórmulas prontas de arranjos não existem e a composição das músicas é sempre heterogênea – “A Geringonça é o anti-hipster”, completa Zuli.
Todas as músicas da banda são disponibilizadas para download gratuito, mas a necessidade de manutenção e avanços no cenário para as apresentações fizeram com que os geringonceados organizassem a venda de materiais para conseguirem seguir gravando seus sons e realizando novos espetáculos para o público.
 
Entre arranjos e desarranjos
Foto: Macarena Rodrigues.

 
Para Julián Ramirez, o jeito matemático de produção musical está se esvaindo e proporcionando, cada vez mais, espaço para o compositor regional. A aposta é de que por mais 10 anos as produtoras ainda consigam vender bem um “artista pré-fabricado”. Ao contrário dessa lógica, Geringonça defende e expõe a Música Popular Humana (MPH), aquela que não bloqueia nem veta quaisquer manifestação musical que seja pensada nos processos de criação – “É a música que se canta no banheiro. Vocês devem se pegar cantando às vezes alguma coisa”, explica Vinicius. E em alto e bom tom, o Pedaço da Natureza encerra o ponto que poderia ser um dos componentes dessa engenhoca toda: “Eu acho inadmissível que a cultura seja vendida, entendeu?!”.
 
Com todos os cacarecos que tocam para frente esse enjambre todo, o trabalho é grande, mas há um consenso entre o grupo de que a recompensa financeira é a que possui menos valor.  “O sorriso das pessoas, sabe? É legal quando as coisas que tu faz tocam outra pessoa de forma positiva. Acho que isso é uma grande recompensa.”, enfatiza Zuli.
 
“Eu acho inadmissível que a cultura seja vendida, entendeu?!”.
 
Se a banda tem em seu corpo uma parte da natureza, não é de se espantar que suas produções aconteçam de forma bastante natural, sem se encaixar em prazos ou padrões. Através do suor coletivo e da espontaneidade, o grupo conta que o processo da música “Farmacê” delineou uma nova fase de compor. Em uma junção no Salto do Jacuí, cidadezinha a cerca de 130 quilômetros de Santa Maria, a letra inteira foi escrita com “todo mundo junto dando pitaco ao mesmo tempo” e surgiu da ideia de falar sobre a questão do Paracetamol – isso mesmo, aquele medicamento. É que a música, além de questionar sutilmente as diferentes drogas legalizadas em nossa sociedade, também dialoga com o movimento anti-proibicionista, demarcando, num refrão muito bem cantado a hipocrisia que é “proibir a nossa erva da alegria”.
Para entrar de vez na cachola, a rara característica de a Geringonça tratar assuntos políticos de modo menos grave do que o habitual é outro ponto destacável dessa caranguejola toda. No samba “Florisbela”, por exemplo, e nas letras de “Batom” e “Maquinário”, a desconstrução de padrões se faz presente em agradáveis tons. Assim, de maneira descontraída e se posicionando de criticamente em debates do contexto social, a Geri conquista cada vez mais sorrisos e alegrias da fiel plateia, sem deixar de impressionar também as pessoas que simplesmente reconhecem o potencial artístico da banda, independente da identificação musical com os estilos tocados.
Para conhecer todas as novidades, histórias e músicas dessa gente refinada, acesse o site www.vivageringonca.com/ e curta a fanpage – Viva Geringonca – da banda no Facebook.
 
A arte de sorriso em sorriso, pelo viés de Gregório Lopes Mascarenhas e Marina Martinuzzi.
*reportagem originalmente publicada na versão impressa da revista Vírus Planetário.

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