20 DE SETEMBRO: “AQUI, A REVOLTA NÃO SAIU DO CONTROLE DAS ELITES” [parte 2]

 Ao mesmo tempo que há essa criação, por parte da grande maioria do senso comum do gaúcho, do herói, esses que negam essa construção mítica do gaúcho também não podem acabar recaindo numa outra construção mítica? Por exemplo: sempre escutamos nessa época da Semana Farroupilha grupos que reivindicam os Lanceiros Negros como os verdadeiros heróis da revolta, que foram colocados à prova pelos seus senhores e morreram em defesa… isso pode acontecer, do grupo que nega essa visão mítica do gaúcho também recriar em uma outra visão mítica?

LF: Claro. Há dois pontos. Primeiro: eu acho que produção de visões míticas, na nossa sociedade, são inevitáveis, e elas vêm de vários lugares. Vêm de grupos que reivindicam identidade, porque elas ajudam a construir identidade, elas mobilizam, elas constroem identidades coletivas, te mobilizam para a ação, dão sentido ao que tu faz…

 Nos vários setores: na política, na economia…

LF: Na política, no Estado, nos movimentos sociais. Isso é importante, para que isso aconteça é preciso fazer uma narrativa simplificada. Infelizmente. E acaba sendo necessário construir essa ideia de vilões e de heróis, então é possível sim, é provável que aconteça isso com os Lanceiros Negros quando se reivindica um heroísmo desses grupos. O que os historiadores fazem, que é meu grupo profissional, é tentar ser menos anacrônico. Mostrar a complexidade e a diversidade desse processo. E mostrar que essas narrativas se constroem – a gente não quer acabar com elas, nós não queremos acabar com os mitos e não há como, mas mostrar que eles se constroem em cima de enormes simplificações. E como eu disse, elas podem ser boas para entender esses grupos, o que eles querem pensar de si mesmos, mas elas não servem para entender a história, até atrapalham.

Por outro lado, e isso é a outra coisa que eu queria falar, há os amantes da polêmica, a imprensa gosta muito de ecoar a polêmica, começa a dizer  ‘a Revolução Farroupilha foi uma mentira’, ‘eles foram ladrões’, ‘eles eram escravistas’. Eu não sei até onde esse tipo de juízo de valor sobre aqueles homens do século XIX é útil para entender aquele mundo. Na verdade, um discurso diz que eles foram mais libertários e mais heroicos do que o normal dos homens desse mundo. O outro discurso diz que eles foram mais sanguinários e opressores, quando o que me parece é que eles foram homens daquele tempo, escravistas na maioria, com um forte senso de que a hierarquia social é naturalizada, de que uma pessoa de cor escura não pode ser igual a uma pessoa de cor clara, de que uma mulher não é igual a um homem, de que as coisas têm um lugar naturalizado, eles são pessoas daquela época.

É um mundo em que não havia ainda uma crítica social forte. O movimento feminista era incipiente. Isso não os justifica por um lado, mas também não os demoniza. Eles são homens daquela época. Mas é que para esses mitos e para a polêmica funcionar, a gente tem que dizer de um lado que eles eram heróis lutadores pela liberdade, e de outro, que eles eram cretinos opressores. Não sei se isso ajuda a entender, eles não podiam ter sido muito diferentes do que eles foram.

Obra de Pedro Weingärtner

 Existe algum dado sobre qual porcentagem da população estava ligada diretamente à revolta? Mexeu muito com a vida das cidades?

LF: Não há como saber, é um mundo pré-estatístico. Nem censos importantes não tem nesse período. Tem outro livro que vai sair no final do ano, do José Ivan Ribeiro, professor da UFSM, que ganhou o prêmio do Arquivo Nacional de Pesquisa, o maior da nossa área, que trata do cotidiano da guerra aqui, sobre o recrutamento do exército imperial em diversas áreas do Brasil para virem se somar aos rio-grandenses que lutavam contra o império. É quando dá a virada, que o império contra-ataca, como a gente chama, a partir de 1840, que é quando eles começam a ganhar a guerra. Porque acaba a Cabanagem, acaba a Balaiada e eles trazem todos os prisioneiros de lá para lutar pelo Império aqui. E aí é que desequilibra, porque estava equilibrado e os Farroupilhas estavam ganhando. Porto Alegre fica um ano na mão dos farroupilhas. Rio Grande e Pelotas não chegam a ser tomadas, mas o interior é todo transformado. Ainda assim as pessoas dão um jeito.

Na área dominada pelos farroupilhas, até 1842, as pessoas continuavam vendendo gado. vendiam gado para Montevidéu. Encontrei uma carta de um coronel farroupilha, que foi Ministro da Guerra da República Farroupilha, cuja mulher era prima de um charqueador legalista de Pelotas. E ele manda a carta falando: ‘tão querendo mandar gado aí para a tua charqueada, como vamos fazer para passar pelo bloqueio dos dois lados?’ e ele responde: ‘manda por aqui, por ali, que é por aí que os farroupilhas estão mandando para nós’. Eles tentavam fazer com que as coisas continuassem acontecendo. Só, claro, se pegassem… evidente, tem confiscos.

Os farroupilhas vão fazer vários confiscos de fazendas de estancieiros imperiais, a maior parte desses Lanceiros Negros são escravos dos imperiais confiscados, porque o farroupilha doava um, dois escravos, os outros ficavam lá trabalhando. O próprio Domingo José de Almeida, que é Ministro da Fazenda Farroupilha e um dos maiores ideólogos da Revolução, charqueador em Pelotas, quando ele começa a ver que o império vai tomar Pelotas, coloca os escravos em um navio e manda para Montevidéu, para um sócio que ele tem lá, e afunda o navio. Veja, ele não doou os escravos para a causa farroupilha. Mas a batalha transtorna a vida das pessoas, transtorna a economia, isso aparece nos números. Vou te dar um exemplo a partir do número de gado por inventário até 1839, pegando os inventários pós-morte. As pessoas morriam e aí tinha o número de gado que tinha que dividir entre os filhos. Ele passa de uma média de mil reses por estância para quatrocentas. A guerra é devastadora porque se confisca o gado, se mata o gado, e porque tu tiras os trabalhadores e o gado se espalha. Então, ela [a guerra] não foi uma coisa boa. Nenhuma guerra é.

 Voltando a essa questão do gaúcho mítico, o Capitão Rodrigo, do Erico Verissimo, quem seria nessa história, nessa gama de personagens e pessoas?

LF: O Erico tenta, apesar de ser uma saga, construir um passado para o Rio Grande do Sul, uma narrativa sócio-histórica. Na minha opinião, Erico é muito melhor como historiador do que muitos historiadores da sua geração, com uma sensibilidade sociológica muito maior. Ainda assim, ele vai dar lugar para a epopeia, para o herói… Acho o Capitão Rodrigo o menos real desses personagens. Até poderia ter pessoas com esse perfil, já que o Rodrigo é um republicano, realmente não tolera a injustiça e ao mesmo tempo é um folgazão. O Erico tentou colocar ali todas as características do gaúcho tal como ele começa a ser pensado nesse momento, não tal como ele existiu. E o Rodrigo combina com essa imagem [do gaúcho] e tem um sucesso maravilhoso.

 E o livro também, pensando nos personagens, ele tem essa condensação de características, como o Pedro Missioneiro…

LF: É, o Pedro Missioneiro representa os guaranis, que tão em dispersão. E o Erico teve essa sensibilidade que só agora que vem se tendo. Eu estou em meio a um projeto com isso, de estudar os gaúchos pobres do século XIX. Aí se pega os registros de batismo, já que os pobres não aparecem nos [registros de] inventários, porque não tinham muito o que deixar, mas eles batizavam os filhos. Aí tem o nome da pessoa, a cor da pele e onde nasceu. Na capela de Alegrete, que é onde ficava também o Paço do Rosário, do Rio Santa Maria, atual Rosário do Sul, 60% das mães eram guaranis das Missões. E não é em São Borja, não é lá em cima, é bem para baixo. E o Erico então já colocava o Pedro Missioneiro naquela época e a gente vai dizer isso, essa dispersão, só agora.

Quem sou eu para criticar o Erico Verissimo como historiador? Ele enxergou essa miscigenação e era muito provocativo. Porque põe um homem que procria com uma mulher luso-brasileira, e não o contrário, como o José de Alencar constrói, por exemplo, em Iracema, a mulher indígena procriando com um homem branco que a abandona. No contrário, é um casal quase de irmãozinho, o Peri e a Ceci, que aí é um amor fraterno. Porque não pode, dentro de uma cultura machista, o homem ser de cor e de uma categoria social abaixo. E o Erico pega nisso.

Os Terra são esses açorianos, pequenos agricultores, que também nós demoramos para descobrir. Aí pega os Amaral, são os estancieiros… O Juvenal Terra é meio carreteiro, meio agricultor. Mas e o gaúcho vago, o perambulante? E o Juvenal Terra? Ele não era rico. Quando o Rodrigo chega na cidade, entra na taverna e diz: “Buenas e me espalho, nos pequenos dou de prancha e nos grandes dou de talho”. E aí o Juvenal olha para ele diz “Pois dê”. E ele dá um passo e diz “Não, não tô falando sério, é só que eu gosto de guerra, o senhor não gosta?” E o Juvenal diz para ele “hay gente de todo o tipo”.

 Parte da cultura midiática se apropria dos mesmos mitos e os perpetua como algo engrandecedor, algo que por ser daqui é melhor. Qual o interesse da mídia com a manutenção do lado mítico e estereotipado da história? 

LF: A apropriação do gaúcho nas propagandas vende muito, e o gaúcho gosta disso, o público gosta disso. Mas, no momento, acho que tem uma apreciação irônica disso que é muito saudável. Acredito que a Polar [marca de cerveja local] é irônica quando faz isso. É um avanço perto do que a RBS faz normalmente.

Tem uma jornalista, que fez o mestrado em História na UFSM, que estudou um documentário que a RBS fez sobre os gaúchos no oeste do Paraná. A imagem que o documentário constrói é do desbravador, do cara que vai bravio para o mundo, que faz isso por essência, estaria na biologia do gaúcho, ele vai para fronteira, para o selvagem, para civilizar. A palavra é desbravador, então ele iria tirar a barbárie e trazer a civilização, a luz. E o gaúcho carregaria no seu DNA histórico isso, então ele fez isso em todo o Oeste do Brasil. Dá para chorar, né?

Os mitos acontecem, não podem deixar de acontecer, mas as propagandas e os programas propagam determinados valores. E eu não gosto, absolutamente, desses valores, em geral hierárquicos, machistas, patriarcais, moralistas, xenófobo e apoiador do latifúndio que o tradicionalismo (nem todo) costuma veicular. Veja, eu não estou defendendo aqui uma uniformização globalizante da cultura que apague esses traços peculiares, porque nisso eu vejo uma maravilha, essa preservação da diversidade. O problema é a propagação disso como melhor que o resto.

 Seria essa noção xenófoba e inepta de que somos melhores que o país?

LF: Aí é que está o problema. O problema não está no fato de a gente apontar a nossa diversidade, mas no fato de celebrarmos ela como superior, tornando o Brasil como um todo, como se fosse uma coisa só, algo pior. Claro, nem todo mundo pensa assim, dessa maneira, é uma parte que considera assim.

 Podemos falar dessa noção também como um fator que acaba perpetuando a estereotipação sobre outros povos. Junto com essa noção de que aqui não há pobres, de que aqui se paga e se trabalha mais para “manter o país”… 

LF: Claro, claro. Isso existe até em algumas proclamações na Guerra Farroupilha. Tem um texto do Bento Gonçalves que se chama “A Estalagem do Império” porque diz que a gente, no caso, a elite, patrocinou a Guerra, pagou com gado, perdeu as estâncias. Então essa retórica já está ali, naquela época. O que nem é mesmo verdade, porque a produção de riquezas era muito maior na plantation do café… Não é verdade nem naquela época e nem agora.

Foto: Gianlluca Simi

 O que o Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG) fez como entidade foi compilar toda essa noção rígida de identidade gaúcha e a transformou em um manual hermético?

Sim, o MTG fez pesquisas históricas importantes na época, mas engessou as tradições e retomou certas danças, por exemplo, que não se dançava há 70 anos ou talvez nunca se tenha dançado. Porque o folclore é uma coisa viva, eu vou lá e vejo o que as pessoas estão fazendo. Na maioria dos casos eles pesquisaram. “Ah, nos Açores se dançava assim, o açoriano quando veio para cá deve ter dançado assim”, ou achavam uma narrativa que dissesse “no baile se dançava a tirana do lenço” e aí foram pesquisar o que era a tirana do lenço. Mas isso fazia cinquenta anos que não se dançava mais.

Essa ativação de coisas mortas é que é impressionante, e também as coisas que são inventadas mesmo, como a roupa da prenda Imagina a mulher daquela época descascando mandioca com aquela roupa?

E ainda há a questão da divisão, durante um tempo, como havia nos clubes, do CTG para brancos e do CTG para negros. Estava dando aula há pouco sobre a mão-de-obra nas estâncias, peguei uma parte do meu livro com um quadro da contabilidade de uma estância com o nome dos peões. Lá estavam o Negro Joaquim, o Petro Manoel, o Negro Torres, o Índio Maneco, o Piá Antônio enteado do Velho índio Laureano. Estava anotado assim. Mas e agora, as pessoas se pintam de escuro para trotar a cavalo? Há uma invisibilidade do negro, e hoje já se tem mais noção da importância da escravidão no processo das estâncias. Era um número de escravos menor que o das plantations, e se levando em conta a imigração europeia, que vem “branquear” a população, daí nasce a impressão de um estado muito branco, que pode ser mais verdade agora, mas que no passado não teve a pele assim tão branca.

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[LEIA A PARTE 1 AQUI]

20 DE SETEMBRO: “AQUI, A REVOLTA NÃO SAIU DO CONTROLE DAS ELITES”, pelo viés de Bibiano Girard e Nathália Costa

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