Janyne Sattler: “conseguimos encarnar aspectos de vários personagens ao mesmo tempo”

A pesquisadora Janyne Sattler considera que o leitor se engaja nos mais diversos aspectos dos personagens literários. “Nós somos complexos, compostos não só de uma identificação pelo bem ou pelo mal”.

Pode a literatura nos tornar pessoas melhores? Uma resposta para essa pergunta não é tão simples de ser formulada. A biblioterapia, espécie de exercício psicológico, prevê fins terapêuticos conforme a leitura de determinados livros. A ideia é que certas narrativas podem despertar emoções e vínculos com personagens, o que levaria a uma autoanálise do próprio leitor.
Esse pensamento não difere muito de recentes programas que reduzem a pena de detentos através de obras literárias. O projeto Remição Pela Leitura, por exemplo, permite que os presos acessem livros e, após cerca de um mês, escrevam uma resenha sobre o que leram. Cada “trabalho” reduz quatro dias da pena, e o acervo bibliográfico varia conforme a “cultura de inteligência institucionalizada” nas penitenciárias. Em fevereiro, quando a redução foi implementada nos presídios de São Paulo, o juiz Henrique de Castilho Jacinto destacou o auxílio da leitura no processo de reinserção do detento, devido à capacidade da literatura em “agregar valores ético-morais à sua formação”.
O pano de fundo moralizante dos livros é ponto de partida para diversas discussões de cunho filosófico e literário. Na intersecção entre as duas áreas, a professora Janyne Sattler, do departamento de Filosofia da UFSM, pesquisa suas aproximações e distanciamentos. E é taxativa: “eu tenho certeza que a literatura nos move para sermos pessoas melhores”, diz, enumerando uma série de argumentos que vão desde uma relação de amizade que o leitor cria com os personagens, até a vivência de aspectos humanos que o preparam para a vida. A questão, indaga a professora, é como essas leituras podem fazer o leitor agir moralmente em relação a terceiros. Se leio Crime e Castigo, romance de Dostoiévski em que um estudante mata a machadadas uma senhora, aprenderei o valor da culpa? Raskólnikov, o assassino, passa a narrativa inteira delirando por ter cometido o crime. O problema é que o leitor em questão não se chama Raskólnikov.
Na entrevista a seguir, Janyne comenta as diferenças entre Filosofia e Literatura, bem como a importância do engajamento do leitor durante a leitura das obras literárias. A professora também critica algumas questões estéticas nos textos filosóficos contemporâneos, ocasionados pelo produtivismo acadêmico, muito embora tanto a Filosofia como a Literatura preocupem-se com questões de forma e conteúdo. Por fim, Janyne aponta as obras que lhe causaram impacto pessoal e as transformaram em outra pessoa – seja para melhor ou não.
 revista o Viés: Tanto a ideia da ‘biblioterapia’, como o projeto que implementa a leitura nas prisões e diminui a pena dos presos, entendem que a literatura pode nos tornar ‘pessoas melhores’, digamos. Nesse sentido, ela poderia ser uma via de acesso a um conhecimento, uma ética?
Janyne Sattler (JS): Eu responderia que sim. Teria uma série de qualificações para fazermos, mas minha resposta seria positiva. Aí tu colocas também a questão de que a literatura pode parecer ter uma função instrumental…
 Isto. A literatura tem, necessariamente, sempre uma função?
(JS): Eu acho que ela não se coloca como uma função sempre. Do ponto de vista do escritor, talvez ele não pare para fazer um projeto de “eu vou escrever um livro que vai ser usado pelas prisões”, mas, ao mesmo tempo, porque a literatura toca nas questões humanas de uma maneira que fala muito próxima da gente, ela pode ser uma via de acesso ao crescimento moral.
Um escritor chamado John Gibson, wittgensteiniano, fala dessa relação possível entre filosofia e literatura, e diz que uma das coisas que a literatura nos dá é uma espécie de fundamento moral, não no sentido de que ela represente coisas, mas de que ela seja fundacional. Então, ela tem conceitos da moralidade que fundam a nossa moralidade. Um dos exemplos que Gibson dá é Dostoievski, com Crime e Castigo – lendo-o, nós aprenderíamos o que é a culpa, sem que tu venhas com um dicionário e diga que culpa, por definição, é tal e tal coisa. Porque tu te engajas com aquele personagem do começo ao fim, tu vives também todo o processo de culpa do personagem do começo ao fim.
 A ideia de experimentar o que você nunca viveu ou achou que nunca tinha experimentado.
(JS): É, justamente. E essa é uma das coisas que eu acho que no exemplo da prisão funciona bem: você consegue se colocar na pele de vários outros personagens, não só dos prisioneiros, mas das vítimas, dos carcereiros, das famílias das vítimas. Essa possibilidade de que você se desloque na pele de outros personagens é o que te faz conhecer também outras realidades. Acho muito positivo quando isso é levado para outras pessoas, como os prisioneiros, para que eles saibam do papel das outras pessoas e do seu próprio papel, vivam essas outras vidas, esses outros conceitos de moralidade. Não exatamente nesses termos: quando você lê Crime e Castigo, você não tá pensando “ah, agora eu finalmente vou entender o que é a culpa”, mas, ao vivenciar como o personagem, você acaba entendendo o que é a culpa. É difícil localizar outro romance em que a questão da culpa apareça dessa forma.
 Mas esse engajamento com o romance também tem que partir do leitor, certo?
(JS): Há aquelas obras que você começa a ler, mas não é o momento, e você deixa. Há também aquele primeiro momento em que você lê uma coisa e, não demora muito, começa a entender quem é o personagem, com qual se identifica ou não. E aí talvez esse engajamento parta um pouco da própria literatura, de como a narrativa é construída por cada autor para que o leitor se sinta engajado. Porque você constrói uma espécie de relação com o personagem que faz com que você se engaje. Não é uma questão só de atitude – “eu vou me engajar num livro para entender tal coisa”. Claro, precisa da própria boa vontade de ler, mas é a narrativa como tal, os personagens construídos tal como são construídos, que, num processo da história, fazem com que esse engajamento aconteça.

Nós somos complexos, compostos não só de uma identificação pelo bem ou pelo mal. Nós nos identificamos com aspectos ruins do Raskólnikov mas, ao mesmo tempo, nos identificamos com esse desejo talvez muito religioso de salvação da Sônia. Conseguimos encarnar aspectos de vários personagens ao mesmo tempo.

É por isso que a filósofa Martha Nussbaum fala numa relação de amizade, de amor, como essencial para se ler literatura. Ela diz que nós temos uma espécie de companhia com esses personagens e caímos de amores por eles – Nussbaum tem essa expressão do apaixonar-se, que no inglês tem um sentido de queda, fall in love. Então você acaba caindo junto com o personagem na mesma trama, o que faz com que a gente se engaje também.
Isso, para Nussbaum, significa um “ler para a vida”. Então, todo aquele conteúdo que a literatura traz, junto com esse engajamento, é o que nos constitui para a vida. A gente aprende, moralmente, como vamos viver lá fora. Ela usa o exemplo do David Copperfield: alguém que se fecha no seu mundo de literatura, que se compõe como pessoa junto com todos aqueles personagens, seus amigos, e que o ajudam a ter relações de verdade com outras pessoas.
Por outro lado, o [filósofo] Arthur Danto discute uma questão da filosofia, que é tentar entender o estatuto ontológico do personagem de ficção. O que é esse personagem? Onde ele existe? Quem é Dom Quixote? Ele não está “instanciado” em ninguém. Danto vai dizer que essa é uma questão que todos os investigadores de ontologia tentam entender, mas acabam criando outras ficções para entender o que são os personagens de ficção. Na verdade, a questão é muito mais simples, porque o personagem é o leitor que lê o personagem. Logo, o leitor é aquele que “instancia” o personagem. Eu sou Dom Quixote quando leio Dom Quixote, eu sou David Copperfield quando leio David Copperfield. Não há um problema ontológico de verdade. Danto entende essa relação com a literatura de outra maneira. O engajamento que acontece é uma “instanciação” – “eu sou a cada vez o personagem que estou lendo”.
 Daí a ideia de que não é porque todos leem o mesmo livro que terão um patamar de compreensão semelhante? Porque cada um se transforma num personagem?
(JS): Ou em múltiplas facetas de vários personagens. Por exemplo, no Crime e Castigo: a gente consegue se ver na pele do Raskólnikov, da velha, da Sônia. Há aspectos de cada personagem que às vezes nos chamam mais atenção e engajam certos aspectos que seriam os nossos próprios. Então, acabamos nos vendo em uma série de reflexos – e, na verdade, essa é que é a graça da literatura. Nós somos complexos, compostos não só de uma identificação pelo bem ou pelo mal. Nós nos identificamos com aspectos ruins do Raskólnikov mas, ao mesmo tempo, nos identificamos com esse desejo talvez muito religioso de salvação da Sônia. Conseguimos encarnar aspectos de vários personagens ao mesmo tempo.
 E isso parece ser uma marca do Dostoiévski, porque, na maioria das tramas, não há um vilão ou mocinho. Algumas vezes os papeis são mais bem definidos, mas há muitas nuances.
(JS): É, e eu acho que isso é uma coisa criticável em banalizações hollywoodianas da literatura, digamos assim. Tem alguns personagens que são mais complexos e têm facetas, mas existe uma banalização de dizer que há sempre um heroi ou vilão. E não é bem assim, porque há aspectos que são similares nos dois casos.
Essa é outra vantagem da literatura ao nos mostrar quem somos, porque a disciplina da ética coloca questões que devem ser decididas em termos de comportamento: ações que são corretas ou incorretas, caráter que é virtuoso ou vicioso. E aí a Nussbaum, quando traz Aristóteles, diz que não é tão fácil assim acertar o alvo no seu centro. Nós erramos de várias maneiras, como diz o Aristóteles, e erramos justamente porque somos complexos. Não somos uma vez só bem ou uma vez só mal, temos vários elementos. E a literatura tem essa característica de trazer todas essas nuances de uma só vez em seus vários contextos. A ética como disciplina, a não ser talvez uma ética das virtudes, oblitera a importância do contexto e das circunstâncias na avaliação de uma ação. Ela vai analisar, em termos de kantismo ou utilitarismo, por exemplo, a ação que é correta ou incorreta, e isso é tudo, em geral. Não leva em conta quais circunstâncias estavam em questão, quantas pessoas estavam envolvidas nisso, como o agente chegou a tal ação. A literatura traz essa vantagem de te mostrar que as escolhas não são pautadas somente pelo correto ou incorreto, mas baseada em circunstâncias, o que compõe um quadro completamente diferente.
 A Nussbaum também chama a atenção para a forma, nas diferenças entre um texto filosófico e um texto literário, e apresenta as vantagens da literatura também.
(JS): Uma das questões que fica a ser respondida é a diferença, afinal de contas, entre filosofia e literatura, porque a gente sempre encontra contraexemplos. “Ah, a literatura está talvez mais preocupada com a questão estética da beleza porque também é uma arte, e a filosofia não”. Mas isso não é completamente verdade, porque a filosofia também se preocupa com a forma. E, por outro lado, a filosofia não é só conteúdo. Então há essa preocupação com a união entre os dois. A literatura também não é só forma, há todo esse conteúdo que a gente vem falando.

Para a filósofa Martha Nussbaum, o leitor tem uma relação de amizade com os personagens da trama. A leitura consistiria em um aprendizado moral para a vida.

Uma coisa que eu estava concluindo há pouco tempo é que nós, filosofia e literatura, parecemos estar mais distantes agora, contemporaneamente, porque já havia Platão que fez a união de forma e conteúdo. Quer dizer, são os Diálogos, que se valem de uma linguagem literária pela filosofia. Assim como podemos trazer outros autores, como Wittgenstein, Kierkegaard, Nietzsche, que têm uma importância fundamental da forma. Agora, Nussbaum e Danto chamam atenção que os textos filosóficos contemporâneos são muito vazios. É como se eles fossem pura abstração, a gente não consegue deduzir quem é o autor. Se você lê Platão, é diferente, Wittgenstein também – você consegue identificar um autor. Os textos contemporâneos de filosofia não tem essa característica.
 Por quê?
(JS): Eu acho que isso tem a ver com um academicismo muito forte. Tem uma questão, que é a universidade se basear em números
 O produtivismo.
(JS): É, nós temos que produzir, mandar um monte de artigos para revistas, sem nome, porque todo mundo tem que fazer um blind review. Bom, isso já é um indício de que estamos rumo a uma espécie de “contribuição coletiva para uma ideia”, como se todo mundo quisesse contribuir para uma ideia sem nome, autor ou estilo. Mas isso também é em prol da manutenção de um departamento de filosofia, de uma pós-graduação. Você precisa de números, precisa mostrar produção, e aí, nesse caso, há essa ideia de uma pura abstração pela produtividade enquanto tal. Isso não foi sempre assim. As questões de diferenciação entre literatura e filosofia são antigas, mas me parecem mais urgentes agora, por causa da abstração, da produtividade e do academicismo.
 Sobre a questão estética, em entrevista, o escritor John Coetzee comenta que a literatura não precisa representar formalmente uma coisa caótica de um jeito caótico – para isso existem os especialistas, os sociólogos. Os escritores não precisam fazer isso, senão os artistas não existiriam.
(JS): É, essa é uma questão muito interessante, porque poderia haver o risco de banalizarmos a tragédia, o mal. Mas, para justificar inclusive essa fala do Coetzee, temos que compreender como funciona a ironia e a empatia, mesmo quando representamos pela arte uma coisa que é feia, ruim, trágica. Eu li um poema quando criança que fala da bomba de Hiroshima, e que me marcou porque aquilo era doloroso – embora o poema fosse bonito. Aí a gente teria que tentar entender como essa dor, dentro da beleza, nos move a compreender alguma coisa. Falta algum elemento para entendermos como a beleza é capaz não de te fazer ficar conformado com a tragédia, mas justamente se inscrever contra a tragédia.

Eu tenho certeza que a literatura nos move para sermos pessoas melhores, talvez por todos esses elementos levantados: a questão de se preparar para a vida, de ter um relacionamento de amizade com os personagens e viver os aspectos humanos de cada um deles, mostrando também as nossas facetas ruins. Mas em que momento isso tudo nos faz agir moralmente é que é o x da questão.

Tenho pensado numa outra coisa que me parece muito importante também para compreendermos a questão do engajamento moral. Se a gente pensa na sustentabilidade, na urgência de salvar o planeta, me parece que a questão da estética é fundamental. Nós queremos um mundo desprovido de espécies e de paisagens como conhecemos? Parece-me que um mundo sem guepardos é um mundo muito mais feio – e aí feio e imoral dizem quase a mesma coisa. Então, para mim, é claro que a beleza na arte tem uma função de nos mover, mas eu não sei como é que isso funcionaria.
Isso é uma coisa que se tem pensado na literatura também. Como é que ela consegue nos fazer seres humanos melhores? Parece que haveria alguns processos. Primeiro, ela consegue nos mostrar outras realidades que não são a nossa própria – já há uma abertura de perspectiva. Depois, a gente vive essas outras vidas dos personagens e isso talvez nos faça mais condescendentes com as outras pessoas também. E, por fim, a questão da empatia: como é que o fato de você constatar que existem outras realidades, outras culturas, outras vidas, outras maneiras de ver o mundo, como isso nos faz agir moralmente? Porque eu posso fazer uma constatação, mas e daí? Talvez porque, como diz a Nussbaum, você lê para a vida, se prepara para ela, e isso tem a ver com a sua própria pessoa. Mas como é que isso funcionaria em relação a um terceiro? Como é que ler Padre Sérgio, do Tolstói, me leva não só a compreender aquilo que eu sou como pessoa no mundo e então me preparar para a minha própria vida, mas agir em nome de uma outra pessoa? Qual é o elemento que parece que te dá a corda e você age?
 Como você pensa Padre Sérgio em meio a esses questionamentos?
(JS): A história da obra é justamente sobre uma doação a outra pessoa [nota: a seguir, alguns detalhes sobre a trama são comentados. Se quiser evitar a leitura, pule para o parágrafo seguinte]. É uma novela. O príncipe Kasatsky entra em um monastério, após sofrer uma desilusão amorosa, e se torna Padre Sérgio depois de anos e anos de vida monástica, de luta contra tentações e dos vários tipos de dúvidas acerca de sua própria religiosidade. De repente, ele descobre que pode fazer milagres, começa a curar outras pessoas e adquire uma fama incomensurável. Só que nunca consegue se livrar de absoluto de todas aquelas dúvidas. Em um momento da novela, Padre Sérgio cede à tentação e rompe com tudo aquilo que achava ser uma vida verdadeira no monastério – e “vida verdadeira” é um termo bem tolstoiano. Então, ele sonha com uma prima, foge do monastério e vai até ela, sem saber muito bem o porquê. Essa prima tem uma vida miserável, mas de uma doação completa a todos da sua família – só que ela não vai à igreja porque tem vergonha de si mesma, da pobreza, da sua história de vida. Ao mesmo tempo, ela é sempre doação. No final, Padre Sérgio diz que essa era, então, a vida verdadeira que ele deveria ter vivido, a vida de doação aos outros. Pashenka, a prima, serve a Deus servindo outras pessoas, enquanto que o Padre pensava servir a Deus fazendo todos os seus milagres.
A questão, na verdade, continua sem resposta para mim. Eu não consigo saber o elemento que me faz, ou que faz as outras pessoas pensarem na questão de uma doação enquanto engajamento moral a partir de uma leitura como Padre Sérgio. O que é que naquela novela me desperta para isso? A pergunta é muito difícil de ser respondida. O que é que lá, para os presidiários, em cada uma das obras faz com que eles digam “eu quero ser uma pessoa melhor”? Talvez tenha alguma coisa a ver com o ego psicológico, com essa identificação que a gente falava. Quando lemos uma história de heróis, talvez eu queira ser um heroi, ser louvável como ele. Então talvez tenha uma espécie de questão de reforço psicológico nisso.
Eu tenho certeza que a literatura nos move para sermos pessoas melhores, talvez por todos esses elementos levantados: a questão de se preparar para a vida, de ter um relacionamento de amizade com os personagens e viver os aspectos humanos de cada um deles, mostrando também as nossas facetas ruins. Mas em que momento isso tudo nos faz agir moralmente é que é o x da questão.
 Qual foi o livro de literatura que mais te impactou?
Eu poderia usar o ‘impactar’ de algumas maneiras, e aí teria alguns autores diferentes. Li tudo da Jane Austen. Sempre gostei dela, até pelo fato de que suas críticas são sociais e feministas bem antes de qualquer feminismo. São um retrato muito irônico, mas ao mesmo tempo doloroso daquela sociedade.
Por outro lado, uma literatura que me marcou muito foi a de John dos Passos, contemporâneo de Hemingway, Fitzgerald e toda essa turma do entreguerras, da geração perdida. John dos Passos tem elementos literários inovadores, porque ele dialoga não só com a própria literatura, mas com cinema e jornalismo, intercalando o texto narrativo com manchetes de jornal e roteiros cinematográficos. Os textos dele, literariamente falando, me impactaram muito. Uma vez eu brincava que se tivesse que levar um livro para uma ilha, seria o 1919, do John dos Passos.
Atualmente, quem realmente me impactou foi o Coetzee. Desonra é um dos melhores livros que eu já li nos últimos tempos. Ele se passa na África do Sul, pós-Apartheid, e tem várias questões importantes ao mesmo tempo. Uma é social e política – a África do Sul que ainda tem que lidar com suas pendências e dívidas com os negros e que, ao mesmo tempo, enquanto branca, não sabe muito bem o que fazer com tudo isso. Tem sentimentos de culpa e remorso envolvidos nessa questão. Mas há também questões relativas a uma espécie de queda, e acho que isso acontece em outros livros do Coetzee. Ele narra como o ser humano cai moralmente, como ele entra em desgraça. Em alguns casos é autoinfligido e em outros não. No caso de O Homem Lento [obra de Coetzee] é um acidente, no caso de Desonra é autoinfligido, um erro mesmo – ele se leva à própria desgraça. É claro que isso acontece num contexto de vulnerabilidade: a África do Sul é vulnerável à situação que está naquele momento, o personagem Lurie é vulnerável aos seus próprios desejos incontidos e por isso cai em desgraça, e tem os animais, que na obra do Coetzee são muito importantes enquanto personagens. Em Desonra, são vulneráveis também aos mandos e desmandos do ser humano, ao mesmo tempo em que mostram porque o ser humano cai em desgraça, com todas as suas imoralidades – porque o personagem acaba encontrando como uma espécie de tarefa redentora cuidar de corpos de cachorros eutanasiados. Ele vai trabalhar de voluntário numa clinica em que a única solução para aqueles animais é realmente fazer a eutanásia. Então esses cachorros são todos vulneráveis enquanto seres vivos.
É super complexo todo esse retrato, mas ao mesmo tempo é para tentar entender a questão da vulnerabilidade, por que se cai moralmente, o que significa a questão da dignidade. Ele perde a sua dignidade enquanto profissional, ser humano, homem, mas os cachorros também a perdem porque são simplesmente manipulados e mortos.
Já trabalhei de voluntária em clínica de adoção e vi gatos e cachorros “eutanasiados”. Aquilo também sempre foi muito chocante enquanto imagem para mim e, ao mesmo tempo, sei que esse é um ponto que talvez tenha que ser resolvida desse jeito mesmo. Eu saí transformada do livro. Não olho para essas questões da mesma maneira. 
Janyne Sattler: “conseguimos encarnar aspectos de vários personagens ao mesmo tempo”, pelo viés de Dairan Paul.
 

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