Ele come sopa feito um porco

O casal de velhos desdentados de Carmem Silva e Jofre Soares.

Joaquim Pedro de Andrade, cineasta, foi um marco na cinematografia brasileira. É dele o célebre “Macunaíma”, filme que ainda é reproduzido com frequência e debatido por todo o país. Mas a obra de Joaquim Pedro, mesmo qualificada como breve – sete longas -, é fortemente expressiva. Entre três décadas de um Brasil inerte na escuridão da censura militar, Joaquim Pedro foi um diretor que soube desdobrar a bandeira de artista militante em várias pequenas manchas de politização e crítica. Das histórias filmadas, todas devem à ironia do homem a máxima crítica ao poder dos próprios homens. Guerra Conjugal não é diferente. Se em Macunaíma o maior anti-herói de nossa literatura (baseado na obra homônima de Mário de Andrade) é preguiçoso, jocoso e troca de cor – Grande Otelo vive o protagonista nas primeiras cenas, negro, e Paulo José o encena após transformar-se em branco-, em Guerra Conjugal o bom menino almofadinha é um devasso contraditório. O marido avelhantado maltrata a esposa entre cenas fortes que tratam da velhice por um viés humilhante e amargo, e como resposta temos uma Carmem Silva sem dentes que pensa em usar dentadura após livrar-se do mundo repugnante daquele esposo que “come sopa feito um porco”.

Em tempos de um cinema brasileiro diferente – Guerra Conjugal data da notável década cinematográfica de 1970 – e certamente mais difícil de aceitação por nós, público construído sob a força de um cinema mais espetacularizado, Joaquim Pedro levou para a sétima arte a sórdida vivência de homens e mulheres desprezíveis, imundos, mas nem por isso menos humanos. Assim como Macunaíma (o livro vira filme), Guerra Conjugal é antes de filme um grupo de contos da literatura de Dalton Trevisan, Prêmio Camões deste ano. Baseado em 16 contos tirados dos livros Guerra Conjugal, Novelas Nada Exemplares, Desastres do Amor, O Vampiro de Curitiba, Cemitério de Elefantes e O Rei da Terra, o filme traz o amor descontente e sádico de uma sociedade violenta que ri a desgraça sozinha.

Permeado por quatro personagens protagonistas e mais de dez secundários, o clichê do “soco no estômago” é o que melhor alcança a singela maneira de Trevisan escrever sobre homens reais, e que rapidamente explicita a maneira de filmar que Joaquim Pedro empregou cena por cena.  Ao chutar um cão, Nelsinho, um jovem de terno e gravata, explicita inúmeros homens que chutariam indiferentes a qualquer ser na rua. O casal de velhos que os poucos dentes na boca contam os sorrisos que se oferecem, mostra a imundice de seus corpos, da casa de reboco caindo e da escassa mobilha como a miséria existente na riqueza do ódio, no silêncio da raiva. Segundo o próprio diretor, essa é a história de “uma velha que se rebela e passa de oprimida a opressora”.

Guerra Conjugal traz homens e mulheres embalados pelo sexo agressivo, pelo machismo que encontra respostas mordazes ao final da história, pela solidão de se cansar da vida. É a partir de cada personagem que Joaquim Pedro ironiza e interroga o espectador. A “civilização terno e gravata” é o cerne de todo o filme para mostrar o comportamento mesquinho e insensato dos pertencentes às camadas urbanas. Frases bem encaixadas durante os poucos 90 minutos de filme, deixam marcas do sarcasmo intenso de Trevisan e de Joaquim Pedro quanto às pessoas e seus interiores escondidos.

Do advogado torpe de Lima Duarte ao “almofadinha” asmático de Carlos Gregório, Guerra Conjugal mostra o sexo de maneira inicialmente carnal, deixando às entrelinhas o escárnio: “Todo homem fraco na cama é forte fora dela”, diz o advogado. Sobre a velhice, uma maneira embravecida e ao mesmo tempo perturbadoramente sensível de mostrar a passagem dos anos entre o casamento.  Amália, a velha, ri da liberdade do marido que avisa o filho: “quando eu morrer, no meu enterro, não deixe ela me beijar”. Mulheres decididas, mas que não fogem ao estereótipo do “pervertido”, uma pobre cega que “não compreende” as mazelas da vida. Um filme sobre as psicopatologias amorosas da urbe. Um filme completo em sua acidez, e azedo até mesmo na constituição de cenários ridiculamente ligados ao interior dos personagens. Um filme que retrata a violência incorporada ao cotidiano: primeiro um tapa, depois, entre gestos de refino, a demonstração de boas maneiras do brasileiro médio. Para tanto, até mesmo trilhas sonoras foram abdicadas.  

Ele come sopa feito um porco, pelo viés de Bibiano Girard

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