O CANTO DE DANTE

“Desde que eu tenho memória, com meus 58 anos, eu canto”.

Essa primeira frase poderia ser dita de forma diferente, mais ou menos assim:

“Desde que tengo memoria, com mis 58 años, yo canto”.

Em uma terceira opção ainda teríamos:

“Desde que tengo memória, com meus 58 años, eu canto”.

A diferença, para alguns, parece gigante. Apenas um exemplo das várias barreiras que separam os povos latino-americanos, tolos em sua tentativa de se diferenciar. Obviamente e para tudo existem exceções, mas não podemos negar que basicamente a relação da América Latina, hoje, é a típica de uma transação comercial. Não raramente nos dividimos entre os países ricos, ou que estão em período econômico favorável, usando esse argumento principalmente a partir do recurso da comparação (leia-se, detrimento do outro).

Para Dante a língua é sequer um detalhe, avesso aos aramados, cancelas e limites da fronteira. Seu povo é um só. São os indígenas oprimidos e assassinados, os camponeses sem terra, os trabalhadores explorados, os estudantes que lutam por uma sociedade de todos, os peões do campo e da cidade. Indiferente ao espanhol ou português, sotaques e ditos regionais, Dante une todos em uma só voz e ritmo. Certa vez um famoso cronista esportivo afirmou que a identificação da torcida com os jogadores mais aguerridos, é fruto da sensação de pertencimento que esse proporciona. É como se um daqueles, que habitam as arquibancadas, estivesse pisando o gramado. Dante é isso. É um de nós lá, no palco.

Já era fim de tarde quando o cantor Dante Ramon Ledesma subiu ao palco, no dia 30 de novembro de 2011, na Praça Saldanha Marinho, centro de Santa Maria, Rio Grande do Sul. O evento era em comemoração aos 22 anos da Seção Sindical dos Docentes da Universidade Federal de Santa Maria – SEDUFSM. Lá, as mais diversas gerações se acomodavam para ver o show do argentino, naturalizado brasileiro desde 1980 e declarado amante dessas terras. “Eu devo ao Brasil minha liberdade, minha identidade como cidadão latino e brasileiro e devo algo que não se compra: a vida”.

Foto: Tiago Miotto

Dante Ramon Ledesma nasceu em Río Cuarto, na província de Córdoba, Argentina, segundo o próprio “quase na Patagônia, no meio da montanha”. Já aos 3 anos, segundo relatos da irmã mais velha, sapateava flamenco ao som do violão tocado pelo avô. Com 5 anos, cantou a primeira música, na Argentina, e com 8 anos, com um bombo leguero, se apresentou no Teatro municipal de Río Cuarto.  “Numa tertúlia cantei solito de bombo duas músicas”, relata o cantor. A família, de origem cigana, imprimiu em Dante uma de suas principais características musicais desde o início. Primeiramente acompanhado apenas do bombo leguero, que ele mesmo tocava, atendia o convite de amigos e parentes que queriam vê-lo cantar. Segundo ele, “tinha uma mistura estranha de música flamenca, que era de origem de minha família, com música folclórica argentina, só que tocada em um bombo leguero”. Mais tarde, aos 9 ou 10 anos, ganhou um violão do avô, o mesmo que ensinou-lhe os primeiros acordes e as técnicas vocais.

 Mais velho, já um estudante do Seminário Franciscano San Buenaventura, Dante via pouco a pouco sua visão de mundo ser modificada. Uma noite, levado pelo pai a uma escola de Río Cuarto, juntamente com a irmã, viu aquele que marcaria profundamente seu cantar e sua vida, até porque Dante não separa um do outro. Tempos depois, o jovem estudante saberia que aquele homem era Ernesto Che Guevara, um argentino que deixou sua terra, sonhando com uma América justa e sem fronteiras, assim como ele. Cada vez mais, principalmente pelas influências do avô, do pai e dos tios, Dante pensava além daquelas terras, onde até então tinha vivido. Eles “sempre diziam que existia um mundo além de nossa terra, ali onde estávamos”. A infância e a adolescência, marcadas pela família que fazia as próprias roupas e rezava três vezes ao dia, a cada refeição, deram ao cantor a orientação que leva até hoje.

“Hay que endurecerse sin perder la ternura jamás”.

A frase, uma das mais famosa de Ernesto Che Guevara, serviu como eixo principal para, aos 15 anos, Dante escrever a canção “Memoria del Che”. Levada ao Festival Nacional de Folklore de Cosquín, o mais importante festival de música folclórica da Argentina, a música foi “reconhecida”. Afinal, como diz o cantor, “a palavra vencer é muito triste dentro da arte”. O fato é que Dante, com “Memoria del Che”, foi campeão da categoria juvenil. Com a projeção que o jovem cantor e compositor alcançou após o festival, outros músicos, como Mercedes Sosa, Victor Heredia, León Gieco e Joan Manuel Serrat, começaram a cantar a música pelo país. No mesmo festival, Dante Ramon Ledesma havia participado com outra música. “Porque te quiero a ti” encantou o cantor espanhol Joan Manuel Serrat, que divulgou a música por toda a América.

A exposição desse novo cantor argentino, identificado com os ideais de Che Guevara, contudo, trouxe também os olhares da repressão, quando em 24 de março de 1976 um golpe militar derruba a Presidente María Estela Martínez de Perón. Além de suas canções, Dante atuava nos Carismáticos, grupo católico que desenvolvia trabalhos assistencialistas nas comunidades pobres de Córdoba e Río Cuarto, e que não tardou a virar alvo da Ditadura de Jorge Rafael Videla. “Quando a gente fala nesses tempos, lembra de algo, por exemplo, doar sangue era um movimento subversivo na Argentina. Falar em você salvar um idoso, ir em uma vila levar pão, roupas, era doutrinar. Diziam que você era comunista, que você tinha ligações com a União Soviética, que você recebia armas. Era um clima de tanta insegurança por parte deles, não do povo, eles eram tão inseguros que atiravam no escuro e não sabiam quem matavam”, resume o cantor. Uma noite, em 1978, Dante estava com aproximadamente 40 amigos, todos Carismáticos. O encontro era para comemorar o aniversário do avô de um dos amigos. A comemoração, um churrasco com violão tocado e cantado ali mesmo, terminou e todos foram para casa. Na manhã do dia seguinte, dos 40 presentes na noite anterior, apenas 5 estavam vivos. “Desses 330, que éramos mais ou menos no grupo, hoje somos 11 vivos. Os demais são desaparecidos”. Chegava o momento de Dante sair da Argentina. Com a perseguição se acirrando, era preciso sumir, talvez por um tempo. Estava escrito com o sangue da cruel ditadura militar argentina, o destino do cantor. Em 11 de abril de 1978 ele chega ao Brasil.

No Brasil, apesar do período também ser de cerceamento das liberdades, com a Ditadura Civil-Militar ainda no poder, Dante Ramon Ledesma não chegou a ser perseguido exatamente pelo regime daqui. “Eu estranhei durante muitos anos que ninguém me seguia, ninguém tirava foto, ninguém me perguntava nada e no Brasil nunca me pediram documento”, afirma o cantor. A ausência da repressão, contudo, não fez com que o cantor recuasse em suas definições ideológicas. Recomeçava, agora no Brasil, sua atuação como cantor comprometido, sujeito explicitamente político, atuante e com posição: a mesma do oprimido. A opressão que cairia sobre Dante no Brasil seria a mesma que oprimia aqueles que ele ajudava em Córdoba e Río Cuarto, através dos Carismáticos. O cantor, defensor incansável da igualdade social, seria perseguido em algumas ocasiões por aqueles que constroem suas riquezas sobre os escombros da exploração.

Uma noite, enquanto tocava em um bar em Porto Alegre, Dante Ramon Ledesma recebeu a visita de um Promotor e de um Juiz. Os dois dirigiram-se ao cantor e questionaram: “te anima a cantar isso?”. Apresentaram-lhe uma letra. Dante sempre conduziu sua carreira de forma muito clara. Critica a imposição do pensamento de uma pessoa sobre outra “na marra” e defende que cada um cante o que acredita. Sua música não é obra do acaso. Muito menos fruto de um filão do mercado fonográfico, bem pelo contrário. Aos dois homens que o questionaram em Porto Alegre, Dante respondeu: “Sim, mas aqui no refrão temos que modificar uma parte. Aqui tem que dizer:

Enquanto o gaúcho for visto no pampa

Enquanto essa raça teimar em viver

O grito dos livres ecoará nesses montes

Buscando horizontes libertos na paz”.

Com o “Grito dos Livres”, Dante Ramon Ledesma apresentou-se na Califórnia da Canção Nativa de Uruguaiana. Com muitos elogios, retornou a Porto Alegre alguns dias depois. Na capital foi questionado por um repórter de um conhecido jornal gaúcho. “Ele disse que meu canto era agitador. Disse:

– Tu tem uma forma até meio agressiva para cantar.

– Por quê? Cantar os índios é uma agressão? Lembrar os Sem Terra é uma agressão? Ou cantar aos meus irmãos negros é uma agressão e uma mentira? Ou tudo isso é uma mentira? Ou você não acha que deva haver reforma agrária?

– Não, é que o Brasil já tem uma forma.

– A única forma que pode ter um país é o caminho para a democracia depois de tantos anos de luto e de silêncio e de obedecer a regimes totalitários”.

Esse mesmo repórter faria contato com muitos organizadores de festivais, pendido que o cantor não fosse chamado para se apresentar. Em 1985, ao chegar em Uruguaiana para defender a música “Da terra nasceram gritos” de Jayme Caetano Braun e Cenair Maicá, foi informado que teria 8 horas para deixar a cidade e que “cantor com sotaque eles não admitiriam mais no Rio Grande do Sul em nenhum festival e eu disse para eles: ‘se vocês querem podem atirar, eu vim cantar, não vim matar ninguém’”. Na ocasião os autores da música recomendaram a Dante que voltasse a Porto Alegre em segurança e outro cantor defenderia a música. Alguns dias depois, em Porto Alegre, Dante Ramon Ledesma recebe um telefonema anônimo. Do outro lado da linha alguém fala ao cantor:

“– Um desses dias pega teu violão, tua mala e sai do Rio Grande do Sul, porque aqui não vai ter reforma agrária, e aqui o índio já foi dono dessas terras, e os pobres cada um no seu lugar aumentando filas e favelas. Mas aqui teu canto não vai reformar o Rio Grande do Sul.

Eu disse para ele:

– Eu morro no Rio Grande do Sul e não vou sair”.

Apesar do reconhecimento, respeito e admiração que o cantor já havia conquistado, é em 1986 que Dante tem em suas mãos a música que mudaria mais uma vez sua carreira. Dessa vez, como nunca. “Eu fui fazer um show em Campo Mourão, já fim de 86, e uma música dizia o que eu queria há anos dizer. Quando essa música ganhou lá, o autor disse: ‘É tua, eu escrevi pensando em ti’”. A música em questão é a conhecidíssima e aclamada “América Latina” de Humberto Zanatta e Chico Alves. “América Latina chegou a lugares que jamais eu imaginei que com um violão e com o meu LP de baixo do braço poderia chegar nem de avião”. A canção, uma ode ao latino continente, avançou sobre as fronteira, exatamente como diz em sua letra, ficando conhecida na Europa e África do Sul.

Mais tarde, em 1988, Dante teve a oportunidade de conhecer alguns dos fundadores do Partido dos Trabalhadores, entre eles, o ex-presidente Lula. Foi convidado a se filiar. Gentilmente recusou o convite. Dentro de suas convicções a arte é um campo que exige fidelidade e dedicação absoluta. Em 1991 no  Festival Acordes Cataratas, em Foz do Iguaçú, Dante apresenta outro de seus maiores êxitos musicais. “A vitória do Trigo”, uma das finalistas do Festival naquele ano, é reconhecida como um dos hinos da reforma agrária em muitos países. A canção, contudo, além de visibilidade mundial, trouxe mais uma vez ao cantor a opressão que permeou toda sua carreira. “Fiquei preso 2 dias a pedido do latifúndio do Paraná. O então deputado Roberto Requião foi lá na polícia federal e falou comigo e Marcelino Silveira, chefe da polícia. Me disseram o que eu queria, o que pretendia e quem eram os que me apoiavam e eu disse: o que eu quero é meu violão, minha mala e a liberdade de cantar”.

As canções de Dante Ramon Ledesma, hoje, são vísceras em tempos de maquiagem. São o engajamento político em tempos de afastamento e negação do poder que administra as nações. O canto de Dante retoma o espírito de uma juventude que dizia tudo em tempos de mordaças, que via tudo em tempos de olhos vendados a força e não por consentimento, como tristemente estão os jovens de hoje. O canto de Dante não admite cabresto nem freio. A América é uma só no canto de Dante e seu canto é tão potente que nem cabe mais nesse único continente. O sucesso do canto de Dante e todas as tentativas de oprimi-lo são resultados da mesma equação: sua sinceridade, sua clareza sobre as coisas que canta, sua incansável insistência de seguir cantando. “Eu sempre soube por que escrevia, por quem cantava, o que defendia e também sabia a consequência que poderia haver”, ressalta o cantor. Aos 58 anos orgulha-se de nunca ter subido ao palco com alguém que não tivesse afinidade com seus ideais. Dante canta as agruras do mundo de maneira tão real que, infelizmente, não podemos deixar de pensar que no mundo pelo qual Dante luta não existiria espaço para seu cantar. Infelizmente não vivemos no mundo que Dante almeja. Felizmente, nesse mundo injusto e desigual que vivemos, podemos ouvir Dante cantar.

Ficam registradas aqui as felicitações à SEDUFSM pelos seus 22 anos e um agradecimento especial ao assessor de imprensa do sindicato, Fritz Nunes, que conseguiu um horário para que o cantor Dante Ramon Ledesma falasse com O Viés.

“O CANTO DE DANTE”, pelo Viés de Rafael Balbueno
rafaelbalbueno@revistaovies.com

2 comentários em “O CANTO DE DANTE

  1. Lembro da Califórnia que reconheceu “O Grito dos Livres”. Eu pequeno ainda, carregado em colos pela cidade de lona. Abrindo os olhos e ouvidos para coisas que significariam muito, tempos depois.g
    Cresci estranhando o ‘regulamento’ da Califórnia que, durante um triste período, proibia o canto que não fosse em língua pátria(SIC). Estranhava porque tinha a lembrança viva daquele paisano que falava de índios pampeanos ggcom um sotaque que transgredia as fronteiras dos manuais de gramática misturando os idiomas de Camões e Cervantes, amalgamados pelo falar de Sepé! E também estranhava por que, de certa maneira, já não acreditava que minha Pátria pudesse ser menor que o planeta.
    P.S.: O regulamento caiu, assim como o festival, que ainda agoniza na fronteira.
    Abraço ao Rafael! Abraço à redação d’O Viés’!

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