A arte na transformação do ser

Cid
Foto: reprodução

“Me lembro como se fosse hoje. O pessoal do teatro vai até mim e me convida para ir fazer teatro. Eu, cheirado de cola, pergunto: tem comida?”. Por vezes os caminhos apresentados pelas circunstâncias da vida nos empurram para ruas paralelas que miram para o mesmo lado. Ou vais por aqui. Ou vais por aqui. Cid Branco, pelotense de 46 anos, nasceu em uma família marginalizada para a qual foram oferecidos caminhos estreitos. Quando tinha um ano de idade, seu pai se formou em medicina e foi embora. Sua mãe, estudante de história, trocou os livros por cômodos alheios que precisavam ser limpos. Com o baixo salário de empregada doméstica, precisou da ajuda de Cid que, aos sete anos, foi para as ruas engraxar sapatos, vender jornal e lavar carro. Foi então que se escreveu uma história em sua vida. “Eu tinha minha casa e por conta de ter que trabalhar desde cedo, desde os seis, sete anos, lavar carro, engraxar sapato, a gente vai pra rua. E fica com a mesma característica do menino de rua, cheirando cola, usando drogas, acaba que tu vai morar na rua. Tu fica mais na rua do que em casa. Daí foi um processo”, conta Cid.
É comum jovens abandonados pelo Estado recorrerem ao esquecimento de sua invisibilidade. Para Cid, cheirar cola era esquecer da fome. “Nessa história toda apareceu a danada da cola de sapato. Eu, louco de frio, louco de fome, e os meninos me disseram que se eu cheirasse cola a fome ia passar e eu fui pra rua”. Aprendeu, desde cedo, que quando já se nasce recusado pela sociedade, o preço a se pagar custa a trajetória da própria vida. Desde menino tornou-se morador de rua e nela descobriu a fragilidade do ser humano. Fugia do aprisionamento aprisionando-se, paradoxalmente, num destino cheio de dores e também de descobertas.
Conversávamos num banco no interior do Mercado Público de Pelotas. No início da tarde, conversar na rua – onde as lembranças dele são percorridas pelas calçadas – era difícil por conta do barulho vindo do trânsito. Ali onde estávamos o ruído passava despercebido. Não somente pela calmaria do local, mas também porque sua história distraía minha atenção para outros sons. Sentado a minha frente, falou emocionado sobre a relação com a mãe e com os lares que teve. Apaixonado pelo teatro, descobriu-se ator desde cedo. Para ele, a arte de atuar é a transformação que precisava para se descobrir e se perceber enquanto gente pertencente a algum lugar. “A mãe corria de todas as maneiras, batalhava de todas as formas pra eu voltar pra casa. E aí acontece uma das coisas mais importantes da minha vida com 10 anos de idade e a maior tragédia da minha vida foi aos 11 anos. A maior vitória foi quando, minha mãe preocupada, vai ao centro espírita e conversa com uma turma, com o professor André Macedo, das Artes Visuais, que tinha um grupo de teatro chamado Grupo de Arte e Expressão Espírita (GAEE). E nessa conversa toda com a minha mãe ele disse “olha, tenta levar ele pro teatro”. Me lembro como se fosse hoje, o pessoal do teatro vai até mim e pergunta se eu não quero ir fazer teatro. E eu, cheirado, pergunto: “tem comida?”. “Tem. Tem lanche.”, e eu fui. E acontecem duas coisas importantes aí”.
A partir daqui a história de Cid é marcada por momentos que definiram seu ser. As dores e os amores que viveu transformaram sua vida. Aprendeu no amor, aos 10 anos, sua própria importância. “Eu cheirado de cola – e cola fede – o pessoal do teatro me diz assim: “que bom que tu veio” e eu pensei que tinha alguma coisa errada. Como é que eu, cheirado de cola, mal vestido, fedendo, eles dizem que bom que eu vim? Na rua eu apanho. Na rua as pessoas dizem que eu não vou ser nada.”. O estranhamento logo virou confiança. “E aí eu comecei a fazer os exercícios e as oficinas com eles pra ver se eu tinha aptidão pra coisa. O que pra mim era isso aos 10 anos? Nada mais era do que estar brincando de ser outra pessoa”. Transitando entre a rua e a casa de sua mãe, Cid, aos 11 anos, culpando-se pelos problemas dela, foi considerado delinquente infantil ao tentar se matar cheirando cola e, por conta disso, foi condenado a ir para uma instituição de menores. As perguntas anotadas no bloco de descobrir histórias foram esquecidas. Ao decorrer do seu relato entendi que para algumas delas a gente não planeja o caminho. Então o questionei sobre o momento mais marcante dessa época. Sem pestanejar. Como alguém que havia pensado e relatado muitas vezes, ele disse em tom firme: “o estupro”. Silenciamos por algum segundo. Não havia mais o que dizer.
Durante dois anos preso na instituição ele afirma que outro momento marcante foi a busca intensa e ansiosa pela liberdade. Só depois entendeu que em qualquer lugar ele estaria preso se não libertasse de si aquilo o que realmente gostaria de viver. “Eu voltei pro grupo de teatro. Fiquei nessa batalha toda. Uma batalha de encontro de mim mesmo. Nessa época montei um grupo de teatro com uma mulher que fazia malabares e tinha um casal que cantava, tocava instrumentos e decidimos viajar. Eu tinha 16 anos”. Aos 18 anos voltou pra casa. Mas, dois anos depois, viajou para São Paulo, onde fez teatro de rua e com o dinheiro que ganhava fez algumas oficinas teatrais, como Teatro Brasileiro de Comédia (TBC) e, depois no Rio de Janeiro, no Centro de Teatro do Oprimido (CTO), onde conseguiu meia bolsa. Arrumou um emprego no Salgueiro e ficou lá por seis meses mais ou menos. No início de década de 90, volta para o Rio Grande do Sul e vai residir em Rio Grande, onde começa a trabalhar com teatro nas escolas estaduais da cidade. Transitando entre Pelotas e Rio Grande, em 98, Cid é convidado pelo Diretório Central dos Estudantes da época para uma parceria. “Aí criamos um grupo de teatro do DCE e fomos pra periferia fazer oficina e parcerias com associações de bairro. Eu não tinha onde morar e morei clandestino na Casa do Estudante (CEU) entre 97 e 98”. Em 2000 faz outra parceria, mas dessa vez para concluir seus estudos. Em uma escola privada de Rio Grande, ele dava oficinas teatrais e, em troca, assistia às aulas e recebia o material escolar. Concluiu o ensino básico no programa Educação para Jovens e Adultos (EJA) e o ensino médio com as provas do Enem. “Aí no ensino médio foi pelas provas do Enem. Metendo Enem, metendo Enem e aí foi. Matemática… blé, não tem como. Eu não sou da matemática, não tenho base nenhuma. O que eu fiz? O Enem pra mim foi interessante, tem aquele grupo de “matemática e suas tecnologias”, onde muitas vezes tu vai mais por dedução. Não sou tão burro que não possa deduzir. Aí nessa função eu fiz o ensino médio”.
Depois desse processo Cid entrou para a Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e atualmente cursa Teatro. Acreditou que com o curso superior seu conhecimento se aprimoraria, mas afirma ter sido ingênuo, pois percebeu que a universidade está tão doente quanto qualquer outra instituição, já que elas são reflexos da sociedade. Atualmente tem um personagem chamado Tropesso e um grupo teatral com amigos(as) fazendo um trabalho com clowns e palhaços com Síndrome de Down. “A arte tem uma única função: a função social. A partir do momento que eu fizer ela simplesmente por entretenimento, ela está deixando de ter função. ‘Ah, mas eu preciso entreter’… precisa, mas isso também é social. A arte não pode ficar só nessa função do entreter. A arte tem que te ensinar alguma coisa, ela tem que te transformar em alguma coisa. Essa transformação vem da descentralização. A descentralização cultural faz parte da transformação do ser humano”.
A história de Cid Branco é marcada por transições e transformações. Como ele mesmo disse, a melhor coisa que aconteceu na sua vida, aos 10 anos de idade, foi a aproximação do teatro, que o fez se descobrir. E hoje ajuda outras pessoas a encontrarem no sorriso e na dor um sentido pra preencher o vazio que a vida, construída numa sociedade de valores materiais, não pode oferecer. Gramsci, filósofo italiano do século XX, já dizia: “A cultura é coisa muito distinta. É organização, disciplina do eu interior, apoderamento da personalidade própria, conquista de consciência por onde se pode compreender o valor histórico que alguém tem, sua função na vida, seus direitos e seus deveres”.  
A arte na transformação do ser, pelo viés de Maiara Marinho.

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