ENTRE OS BONS E OS MAUS

mickey mouse é um rato alegre, avesso ao senso comum quando o assunto são ratos. criado como personagem principal pelos estúdios disney, mickey é o estereótipo humano do descompromisso e da alegria pueril. não que seja assim tão simples, mas o artista estadounidense art spiegelman imaginou que aquilo que o sorridente personagem norteamericano representava poderia ser mais forte visto por outro ângulo.

personificando seres humanos em figuras de animais, o artista descendente de judeus interpelou as facetas obscuras e mais humanas da sociedades em suas tiras de quadrinhos. sim, parece que ele produziu um efeito engraçado: enquanto enquadrava pessoas das mais diferentes origens em espécies de animais, ele automaticamente produziu um relato que não poderia ser mais humanizado – MAUS (a survivor’s tale – a história de um sobrevivente) é uma coletânea de quadrinhos do artista que contam, principalmente, a trajetória de seu pai, sobrevivente do holocausto judeu durante a segunda guerra mundial (de 1939 à 1945). a história é pensada e efetuada pela primeira vez em 1973, depois de longas conversas travadas entre art e seu pai, vladek. o diferencial da obra é mesmo o recorte do cartunista: no livro, os judeus são representados como ratos (uma ironia aos cartazes nazistas que na época da guerra retratavam os judeus como ratos, não humanos), os nazistas são obviamente os gatos (inimigos naturais dos ratos), os polonesês são os porcos, os norteamericanos os cães (como inimigos número um dos gatos, visto as condições da segunda guerra). o interessante é que o nome do livro, MAUS, é uma referência à forma como os alemães chamam os ratos – maus.


a primeira edição saiu no brasil em 1982, e a segunda em 1995. atualmente, a companhia das letras lançou os volumes completos ( a história de um sobrevivente – meu pai sangra história e e aqui meus problemas começaram) na edição MAUS. após ser lançado em 1991 (quatro anos antes de vir para o brasil) o livro foi o pioneiro (em quadrinhos) a receber o prêmio pulitzer.

apesar de toda a euforia produzida por MAUS após seu lançamento, o autor vivenciou dramaticamente tudo aquilo que consta em seu próprio livro. pode-se concluir que a obra é vista pelos mais diferentes estudiosos das ciências humanas, por ser um prato cheio de história, psicologia, sociologia, política… MAUS é o relato, por parte do filho de um judeu sobrevivente, que não tem a intenção de redimir ninguém e nem ao menos condenar. MAUS é uma ferida familiar exposta, são todos os detalhes íntimos de uma vida que foi destroçada pela interferência da segunda guerra. o pai vladek é um homem inteligente e perspicaz, capaz de manter-se vivo diante das piores atrocidades. mas em contrapartida tem uma distância intransponível com seu filho art. ambos são vítimas do suicídio da mãe, que não sendo forte na mesma proporção que vladek, não consegue sobreviver nas condições de ex-auschwitz-birkena (campos de concentração famosos pela sua letalidade na época).

art parece querer cuspir tudo aquilo que durante anos assolou o seu imaginário. psicologicamente falando, parece estar munido pela culpa – que é consequência da culpa que seu pai possivelmente sentia por ter sobrevivido. isso é um aspecto interessante da obra: são retratadas até mesmo uma conversa entre art e seu psicanalista. porém, a obra foge mesmo do sentimentalismo barato – as narrativas são todas transpassadas por questionamentos pessoais do artista. seu próprio pai pode ter sido um sobrevivente, mas as marcas da guerra o transformam em um homem sovina, mão-fechada, de certa forma a figura racista do judeu pão-duro. MAUS é antes de tudo um relato pessoal que amplia para o contexto histórico geral, capaz de atingir a todos. além de, é claro, a competência dos desenhos – muito bem feitos, crus, com traços fortes, sem cor.

auto retrato de art desenhando MAUS.

quando se pensa que a humanidade já viu e ouviu o suficiente a respeito do holocausto, ainda é possível impressionar e ser impressionado. à parte os clichês, um dos atentados mais crueis ao ser humano ainda mexe com nosso imaginário coletivo. coisa que para os que sobreviveram a tudo isso, o melhor seria mesmo esquecer. mas como alguém esquece a brutalidade cometida a si mesmo, de uma maneira tão desumana, capaz de inferir a própria dignidade?

eu sei que não estamos falando de fábulas ou de historietas infantilóides que careçam de uma “moral”.  mas ouso dizer que MAUS me deixou com uma lição: mesmo que nos pareça já ter o contingente suficiente de relatos sobre as brutalidades cometidas às pessoas, ainda existe um espaço para ser surpreendido – não no bom sentido. permita a si mesmo ter a horrível sensação de descrença, de náusea, de remorso ou de lamento ao ler MAUS. pois, por mais cruel que possa parecer, ter todas as mesmas sensações (ou até outras) a respeito de um incidente que o mundo parece conhecer perfeitamente, nos faz sentir que não perdemos a humanidade. pode parecer pouco, mas a capacidade de ser sacudido é o que nos faz ainda seres humanos – e isso não é pouca coisa.

ENTRE OS BONS E OS MAUS, pelo viés de Nathália Costa

nathaliacosta@revistaovies.com

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