SEREIA ASFÁLTICA NA ÁGUA AMARGA E OUTROS CONTOS

Sereia asfáltica na água amarga

Desceu os degraus do bar e tomou a calçada depois de ter tomado meio mundo de água transparente amarga. Para que servem os bravos? Para que servem os covardes? Os bravos degolam pombos e os fracos tocam pardais das janelas. Um passo mal compassado atrás do outro que repetia por instinto. Ninguém sabia do buraco na sua alma alcoólica. Farrapos de sentimentos. Para que servem os sentimentos?
Atravessou a rua e o perigo quase o toma depois de ter tomado meio mundo em palavrões e xingamentos com quem não tinha nada a ver com tudo aquilo. Porque descontar as mazelas no próximo, bem ao lado, é tarefa certeira dos covardes. Ou dos bravos. Tanto faz. Na outra calçada, os pés em piso falso continuam firmes. As mãos sujas acompanham as paredes sujas. Tintura, azulejo, tijolo, chapisco, portão de ferro. Os dedos saltam, tilintam, bailam, escorregam, agarram, arrastam meio mundo de quem decidiu tomar só mais meio gole.
Pra frente, pra frente, pra frente, como soldado na guerra. Pra frente, ziguezagueando, mas pra frente, na imaginação, na realidade da calçada seca. Em frente sempre. Passa em frente de padaria, açougue, casa, loja, casa, casa, casa, casa, edifício, garagem, obra abandonada. Um quarteirão, dois, três, dez. Já em delírio. Sem saber onde. Na guerra, soldado. Em frente, em frente, em frente. Perdeu as contas, os rumos, os trocados. Chamuscado de tanto se afogar em água amarga sem fim. Hálito ocre e mente esquecida na calçada fria. Sozinho. Caminhando lento, costurando a estrada. Estalactites cerebrais.
Andou até sentir o frio da própria alma. Debruçou na ponte. Autopista. A pista. Organizou o que podia pelas sinapses enferrujadas. Ele sabia que tudo não passava de um grande mal entendido. Ele sabia. E ela. Ela era a sereia que o levou para as chamas do mar atrativo e obscuro. Ele tinha o pescoço cortado e não sangrava. O rosto da sereia sorria. Sorria fácil. Sorria branco. Cabelos molhados. Queria beber a sereia toda naquela noite. Farrapos de sinapses. Nenhuma concatenação. Só saudade em um peito velho e irreversível. Pensa bobagens. A guerra do soldado sempre em frente acabou. É hora de se retirar enquanto ainda há três grãos de dignidade para contar história. Pular, sim. Pular agora. Pra sempre. Acabar. Quebrar o espelho da sereia. Ainda afogado em mágoas e água amarga, vê o rosto daquele ser mitológico no rio que corta compassado lá embaixo. Muito lá embaixo. Susto nas sinapses. Quer correr. As pernas ziguezagueando. Vista ocre.
Certo que foi rápido. Não sofreu mais em águas amargas. A carreta imensa não ziguezagueou. Reta nos trilhos, não perdoa quem cruza seu caminho. A lágrima da sereia se misturou ao rio. Um mundo inteiro se acaba como folha de papel. O tempo é soldado. Em frente, em frente, em frente. 

"A ruela", de Johannes Vermeer

O futuro dele

Ele viu seu futuro nos olhos do gato sentado na janela. Aquele momento que se repete na mente sempre quando chega a tarde com seu ar gelado de pólo norte na esquina. Ainda tem na memória cheiros, gostos e gestos de muitos outonos distantes. Foi tudo muito rápido. Arrumou a mala com meia dúzia de panos sujos e saiu sem olhar pra trás. Imaginou que antes de sair havia matado todo mundo com aquele facão enorme de podar ameixeira em outubro. Ouem abril?
De resto, nada mudou muito depois de decisão tão apertada. Antes tivesse ficado onde estava. Mas as ameixas não eram bolas de cristal. Tanta coisa já havia feito. Motorista de caminhão, entregador de pizza, vendedor de armazém, faxineiro de empresa gigante. Os trocados foram todos ao vento. O tal do uísque nem chegou a provar. As mulheres altas fugiam todas. Os carros passavam acelerados demais. Tudo era sempre muito rápido para desaguar depois em mesmice insana. Porque os mesmos jogos se repetem em diferentes mesas. As mesmas cartadas acontecem nos mesmos minutos dos mesmos relógios do mundo inteiro. Só muda o hálito das baforadas dos cigarristas.
Tremendo nó ao voltar para aquela casa que ainda guarda o verde encardido da fachada. Deu tudo errado até ali. Ou tudo certo aos olhos do viajante que não se cansa em afirmar que o império de cartas é sólido. Até a baforada do próximo cigarrista. Ele não esperou. Arrumou a mala com meia dúzia de panos sujos e voltou. Suas baforadas agora são frias como a do pólo norte da esquina. Todos ainda estão lá. Ninguém morreu no fio certo do facão, aquele da ameixeira. O azedo da lembrança da fruta miúda embrulha o estômago. Voltar não pode. Ficar talvez.
O gato na janela percebe sua presença. Não faz estardalhaço. O futuro dele está no estreito risco no meio da bolota ocular esverdeada do felino. Não sabe mais rostos, nomes, idades, desejos, frases de educação. Esqueceu como alcançar a maçaneta, como dizer bom dia, como sair para trabalhar tendo a responsabilidade na volta pra casa. Esqueceu o nome do santo que ficava na sala. Estão todos ali. Ali dentro. A metros dali. Depois do gato na janela. Depois do soar da campainha. Depois do abrir da porta. Difícil nó na goela. Pernas tremem ao frio do pólo norte da esquina. Ou pólo sul? Outubro ou abril?
De resto, nada mudou. Por vias das dúvidas, em suas andanças, encontrou um facão à venda, aquele da ameixeira. Ele está ali, bem guardadinho em meio a meia dúzia de seus panos sujos.

A última noite do mágico

Mais um dia de espetáculo. Mais cortinas se abrindo. Hoje o mágico acordou de mau humor. Necessitava mudar o show, as cartolas e os coelhos. Fazer a pomba branquinha de algodão se transformar em um tigre faminto ou a rosa toda viçosa pegar fogo e virar um ramalhete de dezessete unidades. Trocar as roupas, as cortinas, as varinhas mágicas, as águas que nunca escapam, as labaredas que nunca queimam, as feridas que nunca doem. A assistente Camile era linda. Surda de nascença e com um rosto inegavelmente perfeito. Era mais que sua amiga. Era sua irmã e eles se entendiam muito bem. As magias eram dele, a beleza perfumando o espetáculo era dela.
Fez desaparecer três pombinhas dentro da gaiola minúscula. Com rapidez para confundir a plateia. Aplausos fracos. Fez surgir entre os dedos bolinhas vermelhas que vinham do nada. As mangas arregaçadas para mostrar o jogo limpo. A cada dia que passava o público era mais exigente e a concorrência pululava em cada esquina. Centenas de espetáculos mágicos aconteciam ao mesmo tempo que o dele. A preocupação enrugava a testa e nunca apagava o sorriso penetrante de Camile. A cada dia as cadeiras ficavam mais vazias. O coração de mágico murchava em cada aplauso fantasmagórico. Quem sabe um coelho azul da próxima vez. Um sombreiro no lugar da cartola. Garças no lugar das pombinhas. Pobrezinhas.
Começou a contar nos dedos o público presente. A cada noite, as cortinas revelavam um mágico cada vez mais pálido e desconcertado. Nunca errava os truques, aprendidos desde criança. Mas sempre o coração murcho se acelerava ao contar os minutos para o fim do espetáculo. Quando tudo terminava, era o alívio da mais árdua canção já tocada. Glória em decadência. Camile não desmontava nunca o sorriso. Queria ser como ela na impecável confiança do dia seguinte. Ele imaginava desaparecer helicópteros, hipnotizar hipopótamos em um lago artificial, criar um número triunfal de homem-bala mais veloz do mundo. Dormia todas as noites com o coração desmantelado.
Um novo dia despontava sem expectativas. Camile era a mesma com seu riso fácil de pérolas perfeitas. Decidiu não inovar nada. Era só mais um dia. Foi fácil contar o número de espectadores desta vez. Apenas uma mulher observava os lances compassados das mãos do mágico. Camile a considerou como uma plateia inteira, e não esmoreceu. Realizaram todos os números com aves, caixas, gaiolas, chapéus. Fim da noite. A espectadora solitária não bateu palmas. Elas não teriam força para chegar aos ouvidos do mágico. Ficaram apenas se olhando por largos e infindáveis minutos. Camile ficou de testemunha. Não teria mais emprego daliem diante. Aquele foi o último espetáculo. Fechadas as cortinas. O mágico agora provaria o chá amargo que cura e traz de volta os pés ao chão. Nada de magias de cartolas. Abriam-se agora as cortinas da realidade. A dois e para sempre.

SEREIA ASFÁLTICA NA ÁGUA AMARGA E OUTROS CONTOS, pelo viés da colaboradora Munique Duarte*
*Munique Duarte é jornalista e mantém o blogue Textos Imperdoáveis

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