Mães de Janeiro: “Não estamos pelos que foram, mas pelos que ficaram”

Maria Aparecida, Ligiane e Jaqueline (esq. para dir.) afirmam não desistir de lutar. “Vamos mover céu e terra para que a corrupção, a ganância, a omissão pague pelo que fez, doa a quem doer”, diz Maria Aparecida. Foto: Iuri Borowski.

Jaqueline Malezan, Ligiane Righi da Silva e Maria Aparecida Neves não desistirão de lutar. Integrantes do grupo Mães de Janeiro, as familiares de vítimas da boate Kiss voltaram revigoradas após um encontro na capital da Argentina. As três mães e outras 30 pessoas que saíram de Santa Maria participaram de um seminário em Buenos Aires para discutir formas de prevenir tragédias. Lá, encontraram parentes de vítimas do incêndio na boate Cromañón, que tirou a vida de 194 jovens. O acontecimento completou dez anos em 2014 e destituiu o prefeito de Buenos Aires à época, Aníbal Ibarra. Dentre as pessoas condenadas no caso, estão integrantes da banda Callejeros, que se apresentava na noite do incêndio, e o proprietário da boate, Omar Chabán, falecido recentemente no dia 17 de novembro.

O processo jurídico por trás das duas tragédias é uma das diferenças apontadas pelas mães, uma vez que no caso Kiss ainda não há condenados. A outra é a solidariedade, segundo Jaqueline: “lá o povo todo apoia até hoje”. Por aqui, dia a dia, incansavelmente, estão os familiares das vítimas acompanhando o caso. Se outrora os motivos eram 242, os objetivos agora parecem ainda mais claros. “Todo mundo fala que a gente não quer descansar. Não é isso: a gente não quer que se repita”, esclarece Ligiane.

 revista o Viés: Como surgiu a ideia de fazer esse seminário reunindo tanto os familiares do caso da Kiss como o de lá?

Jaqueline Malezan: A ideia do congresso foi a seguinte: seu Aderbal Ferreira [presidente da Associação dos Familiares das Vítimas e Sobreviventes de Santa Maria] é que foi o convidado. Ele seria palestrante em um dia, e aí decidimos na reunião: quem sabe a gente não acompanha e vão alguns pais? E aí juntamos todo mundo, fizemos janta para arrecadar dinheiro e convidamos algumas pessoas que não eram familiares, como sobrou lugar. Deu 33 pessoas.

Qual era o foco da discussão do seminário?

Jaqueline: Na verdade, a gente assistiu a abertura e duas palestras. Nosso advogado e o Paulo, um pai de São Paulo que também era um dos palestrantes, eles ficaram o congresso inteiro porque eram nossos representantes. Nós fomos mais por solidariedade, para conhecer eles [os familiares das vítimas de Cromañón], para retribuir a visita deles que também estiveram aqui no nosso congresso.

Maria Aparecida Neves: Mas pelo que eu entendi, [o objetivo do seminário] era mais por justiça. A força que eles [os familiares] nos deram para nós não desistirmos de lutar por justiça… Porque vai fazer dez anos que eles têm o memorial. Eles estão sempre lutando por justiça. Então pra nós isso foi muito importante, porque tem horas que a gente esmorece, não quer saber mais de nada. E a gente conheceu as Mães da Praça de Maio [movimento de mães que buscam seus filhos desaparecidos na ditadura militar argentina] lá. Uma senhora com 72 anos, mais ou menos, há 38 anos não acha o filho dela, não sabe se tá vivo ou se tá morto, e tá lá firme lutando na praça por justiça. E aquilo foi uma injeção de ânimo pra nós, porque a recém vamos fazer dois anos. Ainda tem muita água pra rolar embaixo da ponte, como se diz, e às vezes dá vontade de desistir. E com o que eu vi lá, eu não vou desistir de lutar. Enquanto a justiça não cumprir, eu vou lutar. Nem que seja meia dúzia de mães, nós não vamos desistir.

Nós ganhamos o quê? A dor, a saudade? Não, nós não podemos desistir.

Ligiane Righi da Silva: Essa senhora de 72 anos deixou um recado bem dado. Ela dizia: peleen [batalhem]. Não desistam. Então aquilo, lutar sempre. E elas [as mães das vítimas de Cromañón] têm aqueles gritos que dizem: nossos filhos, presente. Pra que nunca se esqueça. Se nós estávamos meio enfraquecidas, um pouco cansadas, aquilo fortaleceu de uma forma que viemos com todo o gás. Elas estão há dez anos na nossa frente. E a conversa delas, a forma de conversar com nós, a gente entendeu. Embora a língua não seja a mesma, a dor é a mesma. O que elas conversavam, a gente presenciou, a gente que viveu aquele 27. Porque muitas vezes as pessoas falam pra esquecer, pra deixar passar, pra descansar. Mas eu, que vivi aquele domingo, eu, que acordei às 5h da manhã para às 5:30h, ter certeza que a minha filha estava morta… não tem como esquecer. É isso que, de uma forma ou de outra, faz com que a gente lembre o porquê de estarmos aqui. Aí todo mundo fala que a gente não quer descansar. Não é isso: a gente não quer que se repita. Eu jurei no caixão da minha filha que não ia acontecer com a irmã dela o que aconteceu com ela. E é pela irmã dela, que tá viva, que eu tô lutando. Se a sociedade, principalmente a santamariense, entendesse que nós estamos lutando para que não aconteça, para que não se repita, estariam todos nos apoiando. Nós não estamos pelos nossos que foram, nós estamos pelos que ficaram. E com certeza os nossos têm que ser lembrados e nunca esquecidos – nem que seja por nós.

Quais outras pessoas vocês entraram em contato no evento?

Ligiane: Cada abraço, cada mãe, cada pai, as pessoas que vinham…. Nós fizemos questão de ir com as camisetas [com imagens das vítimas] e sair para as ruas com elas. As pessoas sabiam que nós éramos brasileiros. Teve um belga, no hotel, que foi solidário à causa. Um grupo de franceses… Todos solidários à causa.

Jaqueline: É, eles perguntavam. Nas lojas, o pessoal perguntava, queria saber como foi, como tava indo.

Ligiane: Como era o processo aqui. E se apavoravam que estão soltos.

Foto: Iuri Borowski.

O processo que passaram lá é muito semelhante ao daqui, não só quanto à dor, mas também pela responsabilidade do poder público.

Jaqueline: É praticamente idêntico. Nós visitamos a boate lá, a mesma coisa. Muito parecida com a daqui. A deles tinha portas enormes, só que com cadeado, correntes. A porta de saída deles era bem menor. A gente tirou foto lá.

Ligiane: Só que aí tá a diferença: os quatro foram presos, no quarto dia, foram condenados e estão há cinco anos preso.

Jaqueline: E o poder público também. Casualmente, na segunda [17 de novembro] morreu o dono da boate [Omar Chabán, condenado a dez anos e nove meses de prisão].

Ligiane: É, elas fizeram muita… fizeram muito grito lá dentro. Porque diziam que a justiça do homem não foi feita, mas a de Deus há de ter. E isso a gente sabe que vai ter, mas a gente quer a dos homens. Eu sempre digo, as trinta mil pessoas que foram nas ruas dia 28 se chocaram com a perda. Nós estamos até hoje chocadas. Qual é a diferença? São dois pesos e duas medidas? É porque foi com nós e não foi com eles? Cadê a solidariedade do dia 28 que agora tão querendo que a gente fique calado?

Jaqueline: Eles são bem mais unidos que a gente, solidários o tempo inteiro. Foi isso o que eles falaram pra nós. A diferença lá é que o povo todo apoia até hoje.

Ligiane: Porque aqui em Santa Maria, se o povo, metade da população nos apoiasse, a história seria diferente, completamente. Não seria só nós brigando por justiça. Nós estamos brigando para que tenha boates seguras, lugares que os jovens possam ir com segurança. Tem algum? Não tem. Mudou alguma coisa? Não mudou. Vão fazer dois anos. A lei cada vez mais exprimida, tão fazendo o possível para cada vez mais amenizar.

Vocês falaram da relação do movimento dos familiares com a cidade, com a sociedade de Santa Maria. O que mudou desde aquele dia 28, da passeata, até hoje. Por que foi acontecendo essa falta de solidariedade?

Ligiane: Eu me pergunto todos os dias. Tem muitas pessoas solidárias que vêm na vigília, nos abraçam, nos apoiam. Mas tem uma parte que podia pelo menos nos respeitar.

Se a sociedade, principalmente a santamariense, entendesse que nós estamos lutando para que não aconteça, para que não se repita, estariam todos nos apoiando. Nós não estamos pelos nossos que foram, nós estamos pelos que ficaram. E com certeza os nossos têm que ser lembrados e nunca esquecidos – nem que seja por nós.

Maria Aparecida: Tem gente que chega e diz que nós temos que nos conformar. Mas não é assim. Uma mãe perder o seu filho não tem explicação. Nosso mundo virou de cabeça pra baixo e as pessoas não entendem. Elas não querem que falem, mas não é assim. O lógico seria nós, pais, morrermos primeiro. Eles nos enterrar, e não nós enterrarmos nossos filhos na flor da idade, cheios de ideias. E aí se dividiu entre aqueles que concordam e aqueles que discordam. Mas acho que os que discordam deveriam respeitar a nossa luta. Como elas disseram, não é porque nossos filhos morreram que a gente tá lutando – a gente tá lutando para que não venha acontecer de novo. Eu não tenho mais filho, mas eu tenho sobrinhos, tenho primos novos, crianças. O povo não entende e o poder público, sabe como é, né, a corrupção corre “flouxo”. Foi culpa do poder publico que não fez a sua parte quando tinha que ser, e isso aí nós não vamos perdoar. Porque se lá em Brasília passa a corrupção, problema deles. Agora aqui nós vamos mover céu e terra para que a corrupção, a ganância, a omissão pague pelo que fez, doa em quem doer. Agora nós não temos mais nada a perder. O que nós tínhamos de mais valioso foram os nossos filhos, que tiraram. Então tu acha certo teu filho sair pra se divertir e tu receber ele num caixão, numa caixa fechada? Tu não poder abraçar, beijar aquele corpo? Nós não podemos fazer isso. E eles estão aí, curtindo a vida, aproveitando com seus filhos. E nós ganhamos o quê? A dor, a saudade? Não, nós não podemos desistir.

Que outras semelhanças e diferenças vocês encontraram na Argentina, em relação ao caso?

Jaqueline, Ligiane e Maria Aparecida: A solidariedade.

Jaqueline: Na verdade, tivemos pouco tempo. Passávamos no congresso, mas o horário era apertado, não deu para conversar tanto. Nós até quebramos muitos protocolos para podermos conversar com eles. Mas, com o público, não deu para conversar muito. Não foi muita abertura também, para conversar, na rua mesmo. No congresso, não havia tempo para conversar particularmente.

Ligiane: O que rendeu foi o carinho. Ficaram felizes quando chegamos, estavam nos esperando lá.

Jaqueline: Fomos muito bem recebidos.

E sobre a manifestação no Ministério Público? [no dia 28 de novembro, familiares protestaram em frente ao local para pressionar a justiça e cobrar agilidade no indiciamento feito pela Polícia Civil em julho]

Ligiane: Fomos cobrar o que estão empurrando desde julho. Estão só empurrando, empurrando. Queremos que digam de uma vez.

Jaqueline: Já tivemos reuniões lá, sabemos o que vai acontecer. Tentamos pressionar para que eles voltem atrás da decisão. O processo está pronto, o inquérito novo está pronto, mas o indiciamento, que nos falaram, nós não vamos aceitar. Estamos tentando pressionar para que voltem atrás, senão será novamente arquivado.

Ligiane: Eles querem dizer que a culpa é dos pais por deixarem os filhos saírem.

Jaqueline: Eles falaram que têm leis, mas não têm provas legais para punir. É uma confusão, a gente, como leigo no assunto, não entende. Estamos até aprendendo, eu nunca tinha ido ao Ministério Público, nem à delegacia. Estamos acompanhando e percebemos que há coisa errada; nós ouvimos, contestamos, eles justificam do modo deles. Nós vamos continuar correndo atrás.

Ligiane: Os pais estão bem entendidos no assunto, estamos estudando, lendo, vendo brechas. Mexeram com as famílias erradas. Sei que é o que a minha filha espera de mim. É fácil dizer “vai pra casa, viver tua vida”. Nós queremos resposta, e não tivemos nenhuma ainda – por quê? Por que estava irregular? A única resposta que nós temos são os nossos filhos mortos.

Foto: Dairan Paul.

 

Vocês também organizaram a exibição do documentário Janeiro 27 recentemente. O que acharam dele?

Ligiane: São as histórias dos pais, apenas os pais contando. É muito interessante como eles se parecem – nós, os pais da Argentina, dos Estados Unidos. É muito parecida a maneira como falamos.

Jaqueline: O depoimento de uma mãe da Argentina, que relatou a morte do filho, de maneira muito parecida a do Augusto [vítima da tragédia Kiss]: morreu salvando outras vidas. Escutando ela falar o que aconteceu com o meu filho também. Lá, as mães trabalhavam, a boate era de fácil acesso, de classe baixa, pessoal ia de metrô. O lugar comportava 1500 pessoas e, no dia, tinham 3000 pessoas. Os pais que trabalhavam não tinham onde deixar as crianças e acabaram pagando outras pessoas para cuidarem dos pequenos por lá mesmo. Por isso morreram muitas crianças – famílias inteiras morreram. Também tem o caso de que, lá, os músicos foram indiciados por terem incentivado as pessoas a levarem fogos.

Ligiane: Quem escapou sabe o que passou lá dentro. O que tu vai dizer para um jovem que passou por isso e perdeu todos os amigos? Um minuto, pense em ficar sem teu filho. Nós não voltamos a ficar com nossos filhos. Já que estamos passando por isso, vamos lutar bravamente. Aquela mãe da Praça de Maio foi o maior exemplo e incentivo pra nós. Todas elas usam um símbolo que as identifica e todos os dias elas estão na Praça, sempre.

Jaqueline: Elas contaram que, quando pegaram as crianças delas, iam à Praça para saber notícias. Na ditadura, não podiam ficar ali. Elas iam e voltavam. E, um dia, elas decidiram ficar caminhando, sem parar. Por isso, hoje, tem um desenho com os lenços delas.

Ligiane: A primeira coisa que querem fazer, quando incomoda, é tirar. Foi o que tentaram com a vigília. Só tentaram, porque não vai ser assim.

MÃES DE JANEIRO: “NÃO ESTAMOS PELOS QUE FORAM, MAS PELOS QUE FICARAM”, pelo viés de Dairan Paul, Felipe Severo e Nathália Costa.

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