O golpe é a regra

foto: Ayrton Vignola/Fiesp

Em 1889, os militares deram o golpe fundador da República. “O povo assistiu àquilo bestializado”.

A república oligárquica não merecia ser chamada de democracia – nem de República. As eleições eram fraudadas, o voto não era secreto, mulheres, analfabetos e a grande maioria da população sequer possuíam direito a participar do sufrágio.

Em 1930, as oligarquias dissidentes e os tenentes, pelas armas, “fizeram a revolução antes que o povo a fizesse”, e levaram a cabo, pelo alto e de forma autoritária, sua modernização conservadora.

Em 1937, Getúlio rasgou a carta de 1934, dissolveu o parlamento, proibiu os partidos e a liberdade de imprensa, caçou os comunistas, flertou com Hitler.

Em 1945, os militares depuseram Getúlio.

Em 1954, o chefe carismático que voltara à presidência pelos braços do povo, afogado no “mar de lama”, cercado pela grande mídia e por uma frente única burguesa, na iminência de novo golpe militar, saiu da vida para entrar na história.

Juscelino quase não assumiu, e durante todo seu mandato os liberais da UDN bateram nas portas dos quartéis pedindo intervenção.

Jânio renunciou, afogado em sua excentricidade. Não queriam permitir a posse de Jango, que só ocorreu graças à campanha da legalidade comandada por Brizola.

Depois de Jango tentar mexer nos problemas estruturais que tornaram o capitalismo brasileiro uma das formações sociais mais injustas e desumanas do planeta, a reação das elites civis, nacionais e internacionais, apoiadas pelas classes médias temerosas da república sindicalista e da cubanização do Brasil, fez os militares efetivarem o golpe que mergulhou o país em duas décadas de obscurantismo e terror.

Na década de 1980 tivemos a abertura “lenta, gradual e conciliadora”. Elegeram um presidente civil, mas de forma indireta.

O ascenso das forças democráticas se plasmou nas “diretas já” e na Carta de 1988, a primeira a conceder direito à voto aos analfabetos, por exemplo.

Na primeira eleição direta desde 1960, para evitar Lula e Brizola, os donos do poder compraram o caçador de marajás, derrubado pouco tempo depois.

O príncipe dos sociólogos se propôs a destruir a estrutura varguista do Estado, estancou a inflação – ao custo de termos a taxa de juros mais alta do mundo. Vendeu a preço de banana o patrimônio público, integrou (ou entregou) o Brasil no modelo neoliberal.

Em 2002, elegemos o nosso primeiro presidente com origem popular, que em sua versão paz e amor escreveu a carta aos banqueiros, se comprometendo a “não quebrar contratos”, “manter os pilares da estabilidade”, o que cumpriu nos seus dois mandatos.

Favorecido por uma conjuntura econômica externa positiva, também redistribuiu renda e possibilitou o mínimo às nossas massas desde sempre esquecidas, humilhadas, excluídas do direito à auto-estima.

Enquanto o bolo crescia, no jogo de soma um, “todos ganharam”.

Os banqueiros nunca lucraram tanto; os industriais e o agronegócio foram presenteados com juros subsidiados do BNDES; o desempregou caiu muito; os humildes tiveram acesso à universidade e ao crédito, experimentaram hábitos de consumo pouco tempo antes restritos aos extratos perfumados da sociedade.

Parecíamos então caminhar para um “país de classe média”, de “democracia consolidada”, e respeitado internacionalmente. Pleiteamos cadeira no conselho de segurança na ONU, trouxemos Copa do Mundo e Olimpíadas.

Setores da elite política petista parecem ter acreditado que seriam definitivamente aceitos no restrito clubinho das nossas castas tradicionais.

Aí veio o colapso financeiro global em 2008, que de “marolinha” viria a se transformar em tsunami.

A sucessora de Lula teve por desafio tentar manter o mesmo pacto de classes (diminuir pobreza sem confronto com os interesses do capital) sem a base econômica de que gozou seu predecessor. O novo cenário era o jogo de soma zero.

Para isso, tentou, a partir da segunda metade de 2011, uma retomada do crescimento abraçando a agenda propugnada por uma frente produtivista encabeçada pela FIESP e pelas grandes centrais sindicais: baixou juros, desvalorizou o câmbio, desonerou a indústria, interviu no setor elétrico, etc.

Flexibilizou os fundamentos do tripé neoliberal. Era a “ofensiva neodesenvolvimentista”.

A “nova matriz econômica” destruiu o apoio que os governos petistas possuíam no setor financeiro que, contrariado com a redução do preço do dinheiro, passou a denunciar a “parcimônia com a inflação” (lembram do preço do tomate?), “a irresponsabilidade fiscal”, o “Intervencionismo”. The Economist e Financial Times passaram a pedir publicamente a cabeça de Mantega e sua substituição por uma “Ministro amigável ao Mercado”.

Os industriais, que haviam sido atendidos por Dilma em suas reivindicações fundamentais, ao invés de prestarem algum apoio ao governo pressionado pela banca, passaram a subir o tom crítico também. Eles não iam pagar o pato.

Formava-se ali uma reaglutinação de frações antes divididas, dando vida a uma “frente única burguesa anti-Dilma”, que exigia o retorno da cartilha econômica que levou ao colapso do sistema econômico global em 2008. As leis trabalhistas e a elevação real do salário mínimo, por exemplo, eram/são um grave empecilho para retomar os investimentos, dizem.

Em 2014, a presidenta de fala atrapalhada conseguiu, com uma plataforma popular, de esquerda, um feito muito difícil: vencer as eleições em um país capitalista contra a vontade da grande maioria dos capitalistas.

Só conseguiu isso por conta dos votos da base da pirâmide.

Vencida a batalha, para tentar recuperar o apoio perdido nas elites empresariais, Dilma 2.0 beijou a cruz da ortodoxia, colocou um banqueiro na Fazenda e passou a aplicar um ajuste que jogou a conta para os que sempre pagaram a conta por crises que nunca criaram.

Os tubarões, no entanto, seguiram pedindo mais, pois consideraram e consideram muito limitadas e rasas as soluções propostas por Dilma diante da gravidade da situação. Também nunca acreditaram no real comprometimento da presidente com essa agenda.

Junto com uma oposição golpista que não aceitou o resultado das urnas e um congresso gangsterizado, com uma mídia oligopolizada, somando-se os efeitos devastadores de uma operação que desnudou o modus operandi da articulação entre capital e Estado no Brasil, e uma parte do judiciário cooptado por interesses políticos, formou-se uma coalizão com força suficiente para impedir o governo de governar e derrubá-lo.

A base da pirâmide, ou mesmo os que saíram dela por conta das políticas redistributivas, observam o jogo de longe, e sabem que, em caso de instabilidade, eles são os primeiros a perder. Muitos inclusive querem a cabeça de Dilma, não por serem reacionários, mas por ressentirem-se com a frustração de seus sonhos há pouco conquistados.

Assim chegamos a este domingo infame, em que possivelmente veremos uma corja de notórios bandidos depondo uma presidente eleita democraticamente, contra quem não pesam acusações significativas.

A burguesia brasileira aceitou tranquilamente se aliar com Cunha – aliás, sempre foram aliados – em troca do pacote de “Medidas impopulares” que tanto desejam.

A luta de classes voltou despida, ao centro do palco, pela voz dos que sempre estiveram vencendo esta luta.

É um golpe de novo tipo, o “golpe branco”, o “golpe frio”, distinto das quarteladas do século XX, já que aplumado com roupagens constitucionais. Mas os atores e os interesses por trás são rigorosamente os mesmos.

No Brasil, até hoje, apenas cinco presidentes eleitos pelo voto conseguiram completar seus mandatos: Mar. Gaspar Dutra, Juscelino, FHC, Lula e Dilma – sendo que esta talvez não complete seu governo.

Em nossa história, o golpe tem sido a regra. Democracia é a exceção.

O golpe é a regra, pelo viés de Gabriel Vaccari

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