VAI PASSEAR NA RUA AUGUSTA

Era de tarde e a garota Wanda foi passear na Rua Augusta a fim de encontrar-se com um amigo, em um bar, na tarde de 16 de janeiro de 1970. Wanda vivia os célebres anos 70 com exultação, andava de lá para cá, encontrava-se com muitos jovens, companheiros, lia e estudava muito. Wanda, entretanto, não passeava na rua Augusta assim, a deliciar-se ao som da Tropicália. Wanda estava armada, tentou fugir, mas foi presa. Presa e torturada por três anos.

Hoje, no primeiro dia do ano de 2011, Dilma Vana Rousseff passeou pelo Congresso Nacional de Rolls Royce acenando para aproximadas trinta mil pessoas que gritavam seu verdadeiro nome com emoção. Uma chuva parece ter lavado a alma de quem há décadas esperava, não com tal grandiosidade, o momento em que se orgulharia de suas Forças Armadas. Caminhou com calma, sem medo, sem armas, acautelada apenas de discursos, abanos, sorrisos e choro. Dilma Rousseff, sucessora do presidente com a maior popularidade da história deste país, penará para que o zelo de Lula pelo Brasil não esfrie. Zelo, entretanto, abarrotado de erros dos quais os brasileiros poderão se questionar daqui algumas décadas.

Sim. Luis Inácio Lula da Silva termina seu mandato com 87% de aprovação. Para se ter noção, seu antecessor, Fernando Henrique Cardoso terminou seus oito anos de neoliberalismo e privatizações com míseros 26% de aprovação. O Brasil era outro e o povo brasileiro não reconhecia-se como uma força bruta de esperança e trabalho que pudesse mudar a mesmice de ser sempre “o país do futuro” e temer a cada manhã uma quebra geral ou um aumento abissal nos preços. Nem conhecia o termo “mobilidade social”. O Brasil era apenas mais um país incrustado num lugar que não se sabia aonde, num continente que não tinha rosto, com uma população que não se reconhecia no espelho.

O medo era geral. Os conservadores não cogitavam a ideia de serem presididos por um ex-metalúrgico sem dedo e que não sabia pronunciar good night. Seria impossível exportar petróleo sem saber inglês, seria impossível privatizar, apertar a mão de George W. Bush e fazê-lo perceber a língua “plesa” do presidente de um país onde os monkeys perambulam pelos postes de luz e onde existe apenas uma cidade chamada Rio de Janeiro.

Pois o Brasil, em oito anos, mudou como nenhum filme de ficção científica conseguiria imaginar. O palpável surgiu, porém, o imaterial teve maior autoridade. Não foram as casas do “Minha casa, minha vida” que fizeram o país desabrochar. Foram as palavras de um homem que conhecia seu próprio rebanho que transformaram Joãos e Marias em João da Silva, torneiro-mecânico, e Maria Santos, costureira com carteira assinada, em pessoas esperançosas, que fizeram classes inteiras entenderem o que queria dizer a palavra esperança.

Entretanto, Dilma Rousseff pode fazer de toda essa esperança um presente grego. Assim como aconteceu com os negros sem rumo quando Isabel Cristina Leopoldina Augusta Micaela Gabriela Rafaela Gonzaga de Bragança e Bourbon, ou seguindo a “linha Lula” de popularidade nominal, Princesa Isabel,  assinou a Lei Áurea em 1888, Dilma pode herdar sérios problemas com alguns programas sociais de Lula que beneficiaram a população instantaneamente, mas que podem, no futuro, gerar problemas.

O programa “Luz para todos”, uma promessa de sequencia de Dilma para os próximos quatro anos, pode ser o melhor exemplo de programa social que talvez gere certas problemáticas públicas governamentais no futuro. Com a instalação de luz elétrica nos rincões mais distantes do país, na “solidão do Amazonas ou na vastidão dos pampas”, como Dilma Rousseff falou hoje em seu discurso, o morador da zona rural ou de áreas afastadas das cidades recebeu a possibilidade gigantesca de melhora na vida. Instalaram-se por todo o país lâmpadas, geladeiras, motores de água, motores de irrigação, televisores e afins. Quem antes vivia no escuro, potencializou sua residência para ser uma exportadora de alimentos ou qualquer outro tipo de produto e ligou sua família ao mundo da informação, mesmo que o “mundo da informação” ainda não tenha uma boa definição. Mas há crédito e energia para tanta mudança?

Junto aos programas sociais do governo Lula, vieram as contas. Quando a Princesa Isabel assinou a Lei Áurea, mesmo cheia de boas intenções, escondendo alguns negros fugidos até mesmo em sua casa, não houve projeção alguma do que aconteceria no Brasil do século XX. Os negros foram substituídos pelos imigrantes europeus nas fazendas e foram parar nas cidades. Mas a República, que logo se tornaria a forma de governo brasileira, não conseguiu (ou não pretendia) estabelecer metas sociais sobre a multidão negra agora desempregada. Com a Lei do Ventre Livre, crianças pequenas saíram das fazendas e tornaram-se andarilhos urbanos. Com a Lei do Sexagenário, a farsa de libertar negros com sessenta anos expulsava os velhos das fazendas, retirando a responsabilidade dos fazendeiros e dos próprios companheiros de senzala de zelar pelos velhos, doentes e cansados. Estes, em sua grande maioria, tornaram-se mendigos ou miseráveis.

Dilma Rousseff terá o dobro de trabalho de Lula. Ao contrário do que muitos apontam, Dilma não pega um Brasil melhor em todas as instâncias. A economia está assegurada como uma das que mais cresce no mundo, o desemprego chegou a patamares que os países europeus em crise invejam, a miséria foi erradicada em muitos cantos do país, mas há muito a se resolver depois que tais programas sociais começarem a enviar alguns recados estatais ao governo Rousseff.

O REUNI aprovou verbas nunca antes vistas nas universidades federais do país. Prédios surgiram em meses, salas de aula foram realocadas e reformadas e as vagas do ensino superior alcançaram números exorbitantes. No entanto, todo o aluno federal sabe as conseqüências de um programa social criado em um dia e concretizado no outro. Os problemas, na grande maioria, não são físicos e sim de recursos humanos. Os computadores invadiram as salas de aula e laboratórios, mas muitos continuam desligados porque não há quem saiba trabalhar com os aparelhos modernos. Turmas inteiras ficaram sem professores ou as universidades recorreram aos contratos de professores substitutos. Disciplinas foram criadas para atender a demanda exigida pelo governo para a liberação de verbas, porém nem mesmo os professores adaptaram-se aos currículos novos. Dilma necessita estudar o REUNI com olhos mais sociais do que técnicos. Não há evolução no ensino se os professores continuarem incapacitados a exercer novos cargos e enquanto o número destes continuar em déficit.

No ensino fundamental os problemas se repetem. Como o ensino fundamental é a base de qualquer país que busca a evolução, as atenções públicas às escolas e aos professores e funcionários do ensino fundamental devem ter maior respaldo. Metas de aprovação tem colocado estudantes no ensino médio sem saber interpretar um texto e a tecnologia distribuída pelas escolas não está sendo empregada de forma densa como deveria. Há falhas num sistema educacional onde os computadores são mal usados e as bibliotecas nem visitadas. Como todos sabemos, a resolução do problema está na capacitação do professor, chamado no discurso de posse de Dilma Rousseff de “autoridade da educação”. Se forem elevados a tal grau de importância, podemos respirar um pouco mais aliviados pelo nosso futuro.

A “mãe do PAC”, como fora apelidada por Lula, terá que rever algumas atitudes tomadas na concepção de seu “programa-filho”. O Brasil pode parar em alguns anos se as vendas de automóveis receberem maior apoio tributário e fiscal do governo do que a construção de avenidas, estradas, hidrovias e ferrovias. O Brasil precisa aprender a ter hora marcada, e Dilma transpassa que entende disso. As obras do Programa de Aceleração do Crescimento não podem esperar tanto tempo para serem concretizadas. Em vários pontos do país, as licitações demoram meses para serem realizadas, transtornando a vida do cotidiano. Aeroportos que não dão mais vazão, atrasos e desrespeito com o consumidor no sistema aéreo, estradas superlotadas e acidentes com vítimas. O PAC pode ser um bom negócio, desde que não fique para Gabriel, neto de Dilma, resolver esse problema.

O “Minha casa, minha vida” vem transformando a vida de milhões de pessoas. Das encostas e das comunidades de risco, para residências bem construídas e dignas, diferentes dos “puxadinhos” que José Serra disse ter ajudado a construir durante o governo FHC. Mas há de se cuidar o endividamento da população com as parcelas de pagamento que se estendem por muitos anos. A qualquer crise, que torcemos não ocorra tão cedo, o trabalhador brasileiro pode ficar na situação difícil de não conseguir saldar suas contas. Guardando as devidas proporções, podemos lembrar a recente crise imobiliária estadunidense, fundamentada no débito das hipotecas.

Por último, Dilma terá que ser mais dura em ações que colocaram Lula em situações de “saia-justa”. Outros “mensalões” não serão bem-vindos, algumas frases e ironias de Lula magoaram pessoas e classes, a indiferença a movimentos sociais que antes o PT levava consigo na luta, como os companheiros Trabalhadores Sem-Terra, deixam ao governo Lula más lembranças. O combate à corrupção, se não bem trabalhado, trará sempre maiores problemas para Dilma.

Dilma Vana Rousseff tem uma história de vida belíssima e exemplar, digna de heroína, que a coloca a altura de Lula quando o passado é tratado. Passou pelos piores momentos que os inconformados com a ditadura militar silenciadora puderam passar. Levou choque, foi soqueada, chutada, conheceu o pau-de-arara e mesmo assim seguiu em frente. Conseguiu sobreviver, diferentemente de muitos companheiros que hoje foram homenageados em seus discursos como presidenta ao acalanto de um choro melancólico e sofrido.

Se os conservadores tinham medo de Lula, hoje o povo progressista ergueu a bandeira verde e amarela em Brasília para dizer que é maioria e que quer uma ex-guerrilheira como exemplo e como Presidente. No Congresso, Pepe Mujica ouviu o discurso de Dilma talvez com alguma lembrança dolorida. As amigas de cárcere vibravam a cada frase de impacto discursada. Dilma Rousseff, 63 anos, mão solteira, petista, sucessora de Luis Inácio Lula da Silva, ex-guerrilheira, economista, admiradora de Guimarães Rosa e de ópera, colocou a faixa presidencial hoje à tarde, dia 1º de janeiro de 2010. Junto àquela faixa, Dilma escolheu carregar um peso que poucas pessoas acolheriam.

VAI PASSEAR NA RUA AUGUSTA, pelo viés de Bibiano Girard

bibianogirard@revistaovies.com

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2 comentários em “VAI PASSEAR NA RUA AUGUSTA

  1. Pôxa,poucas vzs na vida eu li um artigo tão profundo e abrangente da conjuntura política do nosso país.Parabéns!

  2. Parabéns ao Bibiano pela abordagem harmônica entre o passado e os desafios vindouros tanto do país como da nova presidente.
    Agradeço por nos dar a degustar desse texto fluentemente saboroso e maduro como poucos na argumentação e pontos de vista.
    Grato

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