O último dia de Horácio

Créditos: Bruno Flores.

Horácio tomou banho no dia em que morreu. Não seu banho habitual, em dias intercalados em qualquer fonte de praça pública, com transeuntes se alternando entre o riso, a repulsa ou um pomposo desprezo, mas um banho de verdade, com ducha, xampu, sabonete. Essa tarefa corriqueira, que a maioria cumpre mecanicamente enquanto pensa nos afazeres seguintes, foi para Horácio uma fugaz alegria antes do fatídico fim.
Nesse dia, Horácio despertou embrulhado em papelão na calçada da Presidente Vargas, em frente ao Bradesco. O movimento era intenso e uma fila de gente nervosa já crescia na porta do banco. Livrou-se do calor sufocante das cobertas e se refrescou com a leve brisa no corpo suado.
Espreguiçou-se e sentiu a fisgada, como uma ponta afiada de facão. Há alguns anos a dor nas costas deixara de ser insuportável, incomodando-o apenas ao acordar. Tornara-se parte dele, tal qual a crosta de sujeira que o envolvia dos pés à cabeça e a fome inclemente que levava na barriga. Era como se tivesse nascido com ela, e sabia que com ela morreria. Estava certo.
Escovando os dentes, buscou a hora num relógio de rua, mas este mostrava a temperatura. Um sujeito imediatamente se interpôs em seu campo de visão para armar uma barraca de CDs e DVDs piratas, impossibilitando-o de ver a hora no relógio. Guardou a escova, bochechou a cerveja morna no copo de plástico e ficou de pé, rosnando com o vendedor.
– Sai pra lá, ô chato!
A réplica não o incomodou, acostumara-se aos insultos. Ainda assim sacudiu-se, fez seu clássico ruído com a língua para fora, espremida entre os lábios, e escarrou um viscoso catarro amarelo-ovo que pousou no asfalto perto de uma secretária baixinha de minissaia, que apertou o passo com cara de nojo. O camelô o encarou, assustado. Sempre dava certo, posar de louco.
Caramba, quase dez horas! Quase nunca dormia até tão tarde, e se soubesse que este dia seria seu último, talvez tivesse levantado mais cedo para aproveitá-lo… Ou talvez desse na mesma. Não tinha nada de novo para fazer, nada que o entusiasmasse.
Horácio era baixo, rechonchudo, de bochechas largas. Banhas transbordavam sob a camiseta rasgada e encardida, apesar da fome. A cabeça parecia uma miniatura do tronco devido ao mesmo formato redondo. Tinha calvície acentuada e uma barba branca, rala, por fazer. O olhar era sempre o mesmo: impassível, ausente, na pasmaceira que era sua vida.
Tomou o saco plástico das Sendas com seus pertences e começou a caminhar. Não se preocupava em desviar das pessoas. Faziam isso por ele, abrindo à sua passagem um largo corredor na calçada, como se reverenciassem um ilustre membro da sociedade. Faltava apenas o tapete vermelho. Horácio ria com a ideia, ignorando o fato de que o real motivo era suas roupas imundas, seu aspecto de indigente, seu cheiro de coisa podre.
Uma das distrações de Horácio era observar os tipos em volta. Camelôs, bicheiros, malandros e pastores evangélicos anunciavam aos berros seus produtos supérfluos, crenças disparatadas e prazeres mundanos. Panfletos de divulgação de consultórios, escritórios, firmas, restaurantes, bares e puteiros passavam de mão em mão até ocupar seu lugar no asfalto.
Homens de terno e gravata cheirando a loção pós-barba sopravam no ar a fumaça pedante de seus cigarros, enquanto jovens executivas de maquiagem pesada e salto alto conferiam telinhas de celular, desdenhosas com seu pedigree em meio a vira-latas.
Horácio desconhecia esse mundo. Entre tantas formigas operárias, ele era um ser invisível, solenemente ignorado. Orgulhava-se de sua ociosidade e falta de propósito. Não precisava de casa, carro, geladeira, fogão, ar condicionado, TV de plasma, Smartphone. Vivia até mesmo sem uma cama confortável, apesar da falta que lhe fazia. Tudo o que tinha levava consigo: a roupa do corpo, a medalhinha de São Judas Tadeu, símbolo de uma vida passada que desvanecera de sua memória debilitada pelo álcool, o canivete que carregava como proteção desde que um grupo de jovens idiotas pusera fogo num índio dormindo na rua (vira na TV), e um velho radinho de pilha, atual passatempo para afastar os espasmos pela falta da cachaça.
Fuçou latas de lixo até conseguir uma maçã mordida e meio sanduíche de atum, que empurrou goela abaixo. Com a barriga semipreenchida, sentiu-se atraído pela vitrine de uma loja de bebidas, as garrafas de tamanhos e formatos variados, os logotipos coloridos. Saliva escorria pelo seu queixo, como um cão raivoso. Revirou os bolsos; nem um tostão. Sua visão começava a anuviar, seu corpo a tremer, seus dentes a trincar, e Horácio saiu rapidamente dali.
Encontrou algum alento no Largo da Carioca, entre pedestres aglomerados em torno de um homem fantasiado de Mister M, que incitava um ar de mistério, enquanto outro de peruca branca e um topete descomunal narrava com a voz grave de Cid Moreira.
– Mister M agora vai queimar uma pessoa viva…
E Mister M esticou os braços à frente, liberando sua magia sobre um sujeito negro como o céu da noite, que assistia o espetáculo com um sorriso branco de arder na vista.
– Ahhhh Mister M… mágico filha da puta…
A gargalhada de Horácio afugentou algumas pessoas e, como uma reação em cadeia, logo a maioria dispersou. Cid e Mister M lançaram-lhe um olhar antipático antes de irem se apresentar em outro local.
Centro do Rio de Janeiro. Créditos: Bruno Flores.

Caminhou até a Cinelândia e sentou-se num banco em frente a pombos brigando por grãos de milho sobre um mosaico de pedras portuguesas. Foi quando a viu: Marinalva, com seu vestido caseiro, cabelos malcuidados presos num coque, com fios brancos ouriçados, como se tivesse levado um choque. Ela aproximou-se, com seu sorriso enternecido, até levar as mãos à cintura e tombar a cabeça para o lado como uma tia do jardim de infância se dirigindo a uma criança desmiolada.
– Há quanto tempo que não te via, Horácio!
Ele grunhiu alguma coisa, como um porco.
– Quer tomar um banho?
Chacoalhou a cabeça, aceitando o convite. Marinalva fez um sinal para que a seguisse, mas ele sabia o caminho. Não era retardado.
Quando entraram no apartamento, Marinalva bateu a porta com força, jogou o molho de chaves sobre a mesa da sala e foi à cozinha. Uma jovem de vinte e poucos anos estava sentada de cabeça baixa no sofá velho, mordendo os lábios e apertando nervosamente uma imagem de São Judas Tadeu, igual a que ele levava presa ao pescoço. O ambiente claramente a oprimia.
Marinalva trouxe um copo d´água a Horácio, que o bebeu num só fôlego, e depois o guiou até o banheiro.
– A toalha tá aqui. Pode vestir essa roupa… Ali tem xampu, sabonete… se lava direitinho pra tirar essa inhaca porque você tá mais fedido que o caminhão de lixo, Horácio.
O carinho de Marinalva o enrubescia. Era uma mulher rechonchuda como ele, os seios lânguidos como geleia. Horácio imaginou que algum dia poderiam ter sido empinados, lisos, agradáveis ao olhar e ao toque. O tempo era especialmente impiedoso com as mulheres, mas a verdade é que ele tampouco gostava de imaginar-se o que de fato era: um velho acabado, barrigudo e pelancudo.
Despiu-se, evitando o espelho, e se rendeu ao banho quente, o vapor envolvendo seu corpo em letargia. Não queria que terminasse e estava quase dormindo, sentado sob o chuveiro, quando Marinalva bateu com força na porta e acabou sua paz.
– Tudo bem ai, Horácio?
Saiu e se enxugou. Sentia-se leve, quase levitando, sem a camada espessa de sujeira que antes o cobria como uma armadura.
Vestiu as roupas novas, uma calça de pijama que amarrava na cintura, uma camiseta velha e outra de botão por cima, penteou para trás os cabelos úmidos e voltou à sala, sentindo-se um novo homem.
A menina estranha do sofá estava agora sentada à mesa da sala ao lado de Marinalva, receosa e apreensiva como antes.
– Sente aqui Horácio.
Ele pigarreou e olhou na direção da saída. Depois do banho, Marinalva geralmente dava-lhe um pão francês, uma broa de milho ou goiabada, e ele ia embora. Agora, por algum motivo obscuro, era chamado para uma conversa com a participação de uma mulher que sequer conhecia.
– Essa moçinha veio de longe pra te ver. O nome dela é Lurdes.
A jovem enfim levantou a cabeça, o olhar desamparado num rosto intumescido de lágrimas. Horácio manteve o semblante. Não a reconheceu. Tampouco lhe importava quem era e porque estava interessada nele. Coisa boa não podia ser. Impossível.
– Venha, sente aqui, ande!
O comando impaciente de Marinalva enfim venceu sua desconfiança e ele tomou assento, por respeito à anfitriã.
– Nós nos conhecemos há bastante tempo e eu sempre quis saber quem você era, um pouco sobre seu passado… tirei fotos suas sentado no banco da praça, algumas bem de perto, com o zoom da máquina. Aí tive a ideia de criar seu perfil no Facebook. Não sabia seu sobrenome, então botei só Horácio… mas Horácio, meu filho, nunca podia imaginar o que aconteceu… você foi reconhecido!
Aquelas palavras saíam da boca de Marinalva para cair num espaço vazio em sua mente. Zum, internet, feissibuqui – que diabos era isso? Por que não podia ser como das outras vezes: tomar seu banho, ganhar algo de comer e seguir seu rumo? Não queria escutar aquilo e estava quase levantando para ir embora até subitamente ver-se preso à cadeira. Novas palavras, estas sim repletas de significado, o atingiram como um soco no estômago: filha, tragédia, Santo Antônio do Pinhal, viajou, ver, pai.
O passado que tanto lhe custara esquecer voltou numa enxurrada de imagens: uma cidadezinha do interior, um emprego de balcão, um apartamento humilde, um berço. Os bares, porres, as brigas em casa. Uma faca em sua mão, a esposa caída no chão da sala com uma poça de sangue em volta, e a dor dilacerante da facada em suas próprias costas, enfiada por uma menina sardenta de tranças: Lurdinha, sua filha, a jovem ali presente.
Saiu em disparada pelo corredor e desceu a escada pulando os degraus, a tempo de ouvir os gritos ecoarem pelo mármore do edifício velho.
– Horácio!
– Não vá!
– Pai!
– Pelo amor de Deus!
Ganhou a calçada, o formigueiro humano, o som enervante das buzinas. Avistou um boteco do outro lado da rua e correu rumo à salvação. Queria se esquecer de tudo e conhecia o remédio para isso. O infalível remédio! Ia esquecer, tinha que esquecer… Nem se dera conta de que não tinha um centavo no bolso quando veio o impacto com o ônibus, seu corpo arremessado para o lado entre estilhaços de vidro e metal.
Caiu e ficou, estatelado no asfalto.
A perspectiva do descanso eterno anestesiava a dor. Não teria que se lembrar, nunca mais. Sua última visão foi de rostos curiosos e assustados aglomerando-se ao redor, emoldurados pelo céu azul. Aqueles que tiveram coragem de mirar a vítima nos olhos surpreenderam-se com o leve sorriso no rosto dilacerado do mendigo de banho tomado.
O ÚLTIMO DIA DE HORÁCIO, pelo viés do colaborador Bruno Monteiro Flores*.
*Bruno é formado em Jornalismo pela PUC-RJ e pós-graduado em Gestão e Produção Cultural pela FGV. Tem um romance em estágio de revisão final.

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