A flor de todos os dias

Arte: Bibiano Girard.

“Bom dia, flor do dia!”

A mensagem de texto é enviada pelo celular diariamente, entre seis e sete horas da manhã. Poucas pessoas conseguem acordar com bom humor e desejar um bom dia aos amigos em um horário tão cedo. Carolina é diferente; levanta da cama bem disposta e antes das seis horas já está embaixo da água do chuveiro. Depois do banho, arruma o cabelo e faz a maquiagem. Nada exagerado, apenas uma cor discreta de batom e uma máscara nos cílios. A pele do rosto e do pescoço recebe uma boa camada de pó facial. Às vezes, no final do dia, a maquiagem acaba toda absorvida pela gola do jaleco branco que ela usa quando está nos laboratórios da universidade.

Carolina Simões Côrte Real tem a pele da cor de chocolate ao leite e cabelos e olhos castanhos, quase negros. Os lábios rosados escondem um sorriso que beira a perfeição, de dentes brancos e alinhados. O rosto tem formato arredondado, emoldurado pelos cabelos que ela prefere usar lisos, apesar de serem naturalmente cacheados. Quase todos os dias, Carolina modela os fios com a ajuda de uma chapinha. O penteado varia entre o cabelo solto ou preso com uma faixa elástica de tecido em cima da raiz. Quando está pronta e ainda há tempo suficiente, prepara um rápido café da manhã na cozinha da casa que ela divide com a mãe, Clarice. Antes das 6h30min sai em direção à parada do ônibus que a levará para o centro da cidade.

– Tchau, mãe! Te amo!

No ombro, leva uma grande bolsa retangular azul marinho com letras bordadas na frente que formam o nome de seu curso, na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM): “Tecnologia em Alimentos”. O objeto já representa uma piada interna entre Carolina e as amigas mais próximas. Quando começaram as aulas, uma das primeiras coisas que a turma, formada majoritariamente por mulheres, decidiria, seria o modelo, as cores e os detalhes da bolsa. Os gostos diferentes logo dividiram as alunas em grupos. Formou-se a guerra do “azul com vermelho” versus o “rosa com tigradinho”, como ela e as amigas apelidaram a estampa que imita a pelagem de um tigre. No final, cada uma fez a bolsa do jeito que queria, mas a divisão em grupos se fez naturalmente a partir dessa ocasião.

Às sete horas da manhã, Carolina espera por Andressa e Kellen, duas das colegas com quem já construiu uma amizade. De segunda a sexta-feira, as três se encontram na parada de ônibus da Rua Acampamento, no centro da cidade que amanhece cedo, em Santa Maria, interior do Rio Grande do Sul. Carolina sempre chega antes, apesar de vir do bairro Lorenzi, mais distante do campus universitário, e enquanto espera, olha de um lado para o outro acima das cabeças dos que aguardam o transporte público na calçada apertada e esburacada, já destruída pelo tempo. Do outro lado da rua, a loja de calçados com a fachada pintada de vermelho ainda não abriu as portas. Sempre pontual, fica incomodada quando as amigas se atrasam para encontrá-la. A ideia de chegar tarde para a aula ou qualquer outro compromisso lhe deixa aflita.

– Vocês estão atrasadas.

– Ah, Carol. Só cinco minutinhos, o ônibus nem passou ainda.

Kellen e Andressa são mais baixas que Carol, o que já a fez comentar algumas vezes que se sente grande perto delas, sendo não somente mais alta, o corpo também tem um formato maior. Kellen tem grandes e expressivos olhos verdes, que se destacam em contraste com a pele claríssima do rosto e o cabelo castanho escuro. Sardas se espalham em cima do nariz e da testa e a boca de lábios finos se contrai, franze e relaxa, sempre acompanhando a expressão do olhar. Já Andressa tem olhos da mesma cor dos cabelos, longos fios castanhos que ela joga de um lado para o outro com as mãos quando conversa. É um pouco mais calma e com um sotaque acentuado. Além dos aspectos físicos, as três se diferenciam pelo som da risada. Enquanto Carolina é discreta, Andressa ri alto e Kellen chega a chamar a atenção de estranhos.

Conheci a Carol nos primeiros dias em que comparecemos à universidade depois da aprovação no vestibular, para entregar documentos e confirmar nossa vaga. Eu estava no ônibus, sentada ao lado do meu namorado e em minha frente havia uma menina. Quando descemos do veículo, percebi que ela ia para a mesma direção que eu, mas não chegamos a conversar, havia muita gente indo para o mesmo local na reitoria. No primeiro dia de aula, entrei no prédio e me dirigi até a sala que deveríamos ir. Quando cheguei, a porta ainda estava fechada, mas já havia algumas pessoas pelo corredor. Reconheci o rosto dela, parada perto da porta. Iniciei uma conversa, perguntei como ela fora aprovada no vestibular e de onde era.  Ela respondeu e também me contou que era extrovertida, que gostava de conversar com as pessoas. Identifiquei-me com ela. A partir disso fomos nos conhecendo. Entramos na sala, já começamos a conversar com a Susi também. Logo depois a Andressa e a Ana se juntaram ao grupo. Formamos nosso quinteto.

Entre as cinco amigas, o grupo se fechou. Todos os trabalhos são feitos entre elas, assim como os almoços no Restaurante Universitário e as idas à biblioteca. Para estudar para provas, no entanto, o trio Carolina, Andressa e Kellen se reúne para entrar na madrugada, mergulhadas em livros e atividades. Esse costume iniciou logo no final do segundo mês de aulas, quando ficaram cerca de 24 horas acordadas, exercitando a mente.

O local dos estudos é sempre o mesmo, a casa de Carol. Clarice, sua mãe, tem um problema de visão e mora somente com a filha, que nunca a deixa passar a noite sozinha. As atividades cotidianas, como ir no mercado e buscá-la nas aulas de natação também são feitas por Carolina. Existe uma cumplicidade e um relacionamento extremamente carinhoso entre elas. São raros os dias em que não se ligam para conversar enquanto a filha está na faculdade. Cada ligação termina com “te amo, mãe!”, dito mais de uma vez.

Na primeira ocasião em que as duas colegas foram até a casa no bairro Lorenzi, entraram em um ônibus juntas, no centro da cidade, rumo a uma região que não conheciam.

– Kellen, tu sabe onde a gente tem que descer?

– A Carol disse que ia nos esperar na parada.

– Tá meio difícil enxergar qualquer coisa nessa lata de sardinha!

Tanto Andressa quanto Kellen iam espremidas contra os ferros do ônibus lotado, rindo da situação em que se encontravam. Como a maior parte dos transportes públicos no fim de um dia útil, realmente não havia a possibilidade de se mexer. De repente, Kellen olhou para fora e viu a cabeça morena de Carolina. Em uma reação espontânea, gritou de surpresa e  certo desespero. Empurrou quem fosse necessário para abrir caminho e desceu em um pulo do ônibus, com Andressa em seu encalço.

A região da entrada do Lorenzi tem algumas casas feitas de tijolos, outras de madeira. Não há edifícios, o que faz o bairro destoar completamente do centro da cidade. Para ir até a casa de Carolina, ao descer do ônibus, dobra-se à esquerda, em uma rua asfaltada. Ao caminhar, é necessário desviar de grandes buracos no chão, e acaba-se andando em ziguezague. Um terreno à direita também está desocupado, e possui um caminho estreito, onde a grama sumiu e deixou a terra à vista, pois o solo foi pisoteado pelos moradores da região sempre no mesmo caminho, em busca de um atalho para chegar à parada de ônibus.

A rua onde Carolina mora tem fim em uma estação de tratamento de água da Companhia Riograndense de Saneamento. Uma das últimas casas à direita é a sua. Pintada de amarelo, com duas janelas na frente, que são de um vermelho escuro, quase marrom. Pelo corredor à direita da casa, que leva ao fundo dela, corre um cachorro pequeno, de corpo preto e patas e focinho em um tom claro de marrom. Em torno do focinho, alguns pelos grisalhos denunciam a idade que vai chegando aos 10 anos. Blade, o cachorro de Carol, late e balança o rabo animadamente para os que chegam. O portão aberto lhe é convidativo para caminhar um pouco na rua. No momento em que deseja voltar, ele para em frente ao portão, choramingando para Clarice ou Carolina virem lhe buscar.

Quando chega a hora de começar os estudos, as três meninas sentam à mesa da cozinha, Carolina na ponta, e Kellen e Andressa nos lados. Há uma geladeira alta, branca, enfeitada com imãs de borboletas feitos de crochê. O fogão de seis bocas fica entre a pia e a porta que dá acesso aos fundos da casa. Existe uma pequena área ali, com chão revestido de azulejos e um gramado. Aos finais de semana ensolarados, Carolina costuma se deitar para aproveitar o sol depois do almoço. Um muro de tijolos delimita a área da residência.

Elas sentam em torno da mesa retangular de madeira, coberta por uma toalha vermelha, com seis cadeiras em seu redor, feitas do mesmo material. Em duas delas há respingos de tinta, da mesma cor avermelhada com que as janelas e as portas foram pintadas. Ao lado, há mais uma peça pequena, separada da cozinha por um arco na parede, com duas plantas em ganchos aéreos em cada lado, e paredes pintadas de um azul esverdeado.

A cuia de chimarrão, o “mate”, é preenchida com água por Kellen, que a alcança a Andressa.

– Não consigo chegar ao mesmo resultado que vocês. – diz Andressa, com o lápis em uma mão e a cuia em outra, enquanto revisa os números e fórmulas no caderno em sua frente.

– Tem uma questão parecida na prova que a Carol conseguiu. – Kellen procura entre livros, cadernos e folhas o dito papel, empréstimo de um dos veteranos do curso.

– Não se preocupa, Andressa. Qualquer coisa, conferimos o resultado da questão na hora. – Carol diz com um sorriso, o rosto apoiado na mão de unhas pintadas.

– Vocês conferem. Eu só fico feito uma marionete, me balançando de um lado para o outro: “Andressa, vai pro lado”, “Andressa, vai pra frente”, “Andressa, vem para trás”.

– Com aquele vermelhão todo que tu fica, é capaz de nos entregar para os professores.

Em dias de prova, são raras as vezes em que Kellen e Carolina não “colam”, apesar de sempre argumentarem que, na verdade, apenas “conferem resultados”. Andressa nunca participa do esquema e procura sentar mais à frente, pois costuma corar de maneira involuntária, em especial se o professor olhar para ela, o que automaticamente compromete o ato de ser bem-sucedido. No entanto, a sutileza nem sempre foi a principal tática. As duas amigas já chegaram ao ponto de trocar as provas para poder conferir os resultados compatíveis. Outra estratégia é colocar alguma componente do quinteto na frente da mesa do professor para puxar conversa e assim, impossibilitar a visão dele sobre as alunas.

No final do primeiro semestre de aulas, nenhuma delas conseguiu alcançar a média 7,0 na disciplina de Química. Carolina havia ficado arrasada. Gostava muito do professor e o admirava como profissional. Na noite anterior à prova, estudava sozinha em casa. De repente, o celular tocou.

– Oi, Kellen.

– Carol, eu não consigo fazer essas questões. Estou com muito medo de ir mal amanhã. Preciso de ajuda! Não tem como tu vir pro centro? Pode dormir aqui.

– Não posso, Kellen… Não combinei com alguém para ficar com a mãe. Não quero deixar ela sozinha. Por que tu não vem pra cá?

– Já são 22h30min. É tarde demais para ir até aí. E estou sem internet, ainda.

– Então façamos assim: tu faz as tuas questões aí e eu faço as minhas aqui. Daqui um tempo, quando surgirem mais dúvidas, a gente se liga.

No dia seguinte, a sala estava cheia de estudantes apreensivos com o resultado final do semestre e a última chance de conseguir deixar a disciplina. O professor se encontrava na frente, metros de distância de onde elas sentavam. Escrevi uma informação de uma das questões em um post-it colorido e passei para a Carol, sentada em minha frente. Nesse momento, o professor começou a se mover, se aproximando de nós. A Carol entrou em pânico, ficou nervosa e em um impulso colocou o papel dentro da boca.

– Kellen, me dá um gole da tua água.

Eu alcancei a garrafa transparente, dividida entre o espanto e a vontade de rir. Com aquele gole, lá se foi nossa cola, direto para o estômago da Carol.

Apesar de ser bastante liberal no sentido de conferir informações quando não deveria, Carolina é geniosa: não admite que as colegas tirem notas maiores que as dela e quando isso acontece, fica extremamente irritada. Certa vez ficou enfurecida com Kellen porque tirou 9,8 em uma prova de Matemática enquanto a amiga conseguiu gabaritá-la. Desta vez, a raiva foi acentuada pelo fato de que elas tinham, novamente, uma prova idêntica. Porém, Carolina saiu antes da sala e Kellen mudou o resultado de uma conta porque houve tempo o bastante para conferi-la.

Os trabalhos também deveriam ter uma última vistoria dela. Entregar algo que ela não tivesse conferido era praticamente inadmissível. Isso já havia exaltado alguns ânimos, resultando em e-mails e ligações irritadas. Da mesma maneira, quando precisam de provas antigas, realizadas por veteranos ou sequer começar a pesquisar para um trabalho, é comum Carolina puxar o trem.

 

O ônibus para quase no meio da quadra que pertence à universidade, estabelecendo-se enfim, para que os estudantes desçam. Depois, segue pela rua de paralelepípedos, com um som alto e característico, enquanto balança os últimos passageiros com seus solavancos.  Elas descem na calçada de pedras cinzentas, ao lado de um prédio de três andares, pintado de branco com algumas colunas em verde. É possível escutar o canto de pássaros que vem dos locais mais altos e o barulho de insetos em meio à grama. Algumas vezes, se pararmos para prestar atenção, também há como escutar o som de um instrumento musical, uma flauta ou piano, que ressoa do Centro de Artes e Letras, próximo dali. Até o ar neste local é diferente; parece mais puro e carrega um leve cheiro de grama recém-cortada.

O caminho de pedras segue por uma descida e leva ao fundo de outro prédio, também de três andares. Na calçada, há vários pontos molhados, consequência das saídas de água dos aparelhos de ar condicionado. Em meio às pedras, uma e outra gramínea nasce, provavelmente fruto desta hidratação diária.

Nessa região da universidade, algumas características se repetem. Meninos, não todos, usam bombachas, alpargatas, camisetas polo, boinas verdes ou pretas e carregam mateiras de couro no ombro, às vezes com uma cuia nas mãos e uma térmica embaixo dos braços, enquanto bebem chimarrão no intervalo das aulas. Nos pés femininos e masculinos se repete o uso de calçados pesados, em tons de marrom. A maioria das meninas carrega bolsas grandes, geralmente em tons escuros e aparência pesada, bordadas com os nomes dos cursos do Centro de Ciências Rurais da UFSM.

– Cadê a Carol, gurias?

A pergunta de Susiele fez tanto Andressa quanto Kellen revirarem os olhos e balançarem a cabeça.

– Falando com o Juliano. Onde mais?

“Deus no céu e o Juliano na terra” é o que as amigas de Carolina costumam repetir, devido à admiração dela pelo professor de Química. Não se trata de uma paixão platônica, mas um interesse pelo trabalho dele como profissional e pesquisador, e as portas que podem ser abertas através do seu grupo de pesquisa. Carolina tem por objetivo se formar como Tecnóloga e logo em seguida cursar Mestrado e Doutorado, para um dia lecionar. Tenta constantemente cativar os professores, já pensando no futuro.

Desde o primeiro semestre, Carolina beirava a perseguição para conseguir conversar com o professor Juliano e adquirir uma vaga no grupo do Laboratório de Análises de Alimentos. Chegou ao ponto de pedir dicas ao seu veterano Matheus, que lhe instruiu a sempre ter notas boas em provas e trabalhos, para ser notada. No final do primeiro semestre, Carol conseguiu realizar seu objetivo e foi trabalhar como bolsista nos laboratórios, junto a veteranos e mestrandos do curso.

 

É que eu sou hot, hot-dog, e comigo cê não pode

Se eu te pegar tu vai levitar

É que eu sou hot, hot-dog, e comigo cê não pode

Veja bem pra depois não chorar

 

E nunca dei desculpa pra ninguém

É certo que você vai implorar

Vai pedir arrego, suplicar sossego

Vai ver só o calor que eu vou te dar”

 

– Ah, começou a tocar as músicas dos teus cuzcos aqui!

Andressa falava com Carolina ao celular, enquanto escutava música. Elas costumam ligar uma para a outra, principalmente porque possuem a mesma operadora, o que faz com que a ligação se torne mais barata. Às vezes ficam longos períodos conversando, principalmente quando Carolina tem algo para contar sobre o mais recente “namorado”. Entre as idas e vindas dos meninos na vida amorosa de Carol, Andressa apelidou-os de “cuzcos”, uma expressão gaúcha para “cachorros”. Coincidentemente, a canção Hot-Dog, do cantor Buchecha, entrou na trilha sonora da famosa novela das 21h, “Avenida Brasil”, na Rede Globo. A música sempre faz as amigas lembrarem Carolina e seus casos amorosos. Entre alguns namorados, até noivo ela já teve, antes de completar seus 18 anos.

Carol, como muitas meninas em sua idade, tem inseguranças quanto à própria aparência. A começar pelo cabelo, que ela não gosta de usar ao natural. Admira os cabelos lisos das amigas, e elogia o formato dos fios, ao passar os dedos neles. Ela assiste ao seriado norte-americano Gossip Girl, cuja protagonista é interpretada pela atriz Blake Lively, admirada por Carol pela beleza. Lively é alta e magra, com cabelos dourados e ondulados. Tem olhos azuis esverdeados, lábios finos e um bonito sorriso de dentes brancos. É praticamente uma boneca Barbie da vida real, e contém o tipo de beleza que Carolina gostaria de ter.

No entanto, a insegurança não dá lugar para a desvalorização. Por isso as unhas bem pintadas, a maquiagem e a chapinha nos cabelos fazem parte da rotina. Algumas ocasiões abrem espaço para produções maiores. Quando Andressa se formou em um curso técnico, fez um jantar de comemoração e convidou as amigas para ir a alguma festa em Santa Maria depois. Enquanto a própria formanda estava vestida de calça jeans e salto alto, Carolina investiu em um vestido justo, preto e curto, meia calça, um blazer cor-de-rosa, batom vermelho nos lábios e, claro, sapatos de salto alto.

Quando chegamos à festa, depois do jantar, um golpe de sorte surgiu. Naquele ano, eu ainda era menor de idade, e logo na entrada eram distribuídas pulseirinhas adesivas de cores diferentes para diferenciar os maiores e menores de 18 anos. A pessoa que nos atendeu esqueceu de pedir minha identidade e me deu a cor destinada aos maiores.

“Fica quieta”, a Andressa me falou, quando percebeu o que tinha ocorrido. Escondi o pulso com o blazer, para evitar me questionarem algo. Enfim, consegui entrar na festa.

O meu copo de cerveja não parou em minha mão. Se eu bebia um gole, a Carol bebia o resto. Conseguimos acesso à área VIP, que era em um local mais alto do que a pista onde a maioria das pessoas presentes dançava. Com a visão privilegiada sobre o resto da festa, ela apontava para nós quais meninos queria beijar naquela noite. Porém, fomos embora mais tarde e ela não beijou ninguém. Talvez tenha considerado todos entediantes demais em comparação à noite de liberdade dela.

            – Que roupa eu coloco?

– Vai com algo simples.

– Sim, mas simples como?

            – Sei lá, Carol. Até invisível esse menino é.

– Ele existe, juro. Vou apresentar para vocês na nossa festa.

Carolina pedia a Andressa palpites sobre a roupa que deveria vestir para encontrar o novo namorado. O menino não gostava de “frescuras”, o que trazia um desafio a ela, que gostava tanto de se arrumar. Ela falava bastante nele para as amigas, mas nunca o havia apresentado a elas. Com o surgimento de uma festa da turma, aparecia também a oportunidade de o conhecerem.

Na metade de 2012, os professores e funcionários da Universidade Federal de Santa Maria fizeram uma greve que durou mais de três meses. Consequentemente, o segundo semestre do ano continuou em 2013, para que o calendário da universidade pudesse ser reestabelecido. Em pleno janeiro, no auge do calor sufocante da cidade de Santa Maria, a UFSM funcionava a todo vapor.

As meninas da Tecnologia em Alimentos estavam à procura de uma festa que fosse planejada com outros cursos, para começarem a arrecadar fundos para a futura formatura. A partir de uma amiga de Andressa, do curso de Agronomia, conseguiram se juntar a outros alunos do Centro de Ciências Rurais para organizar uma festa em uma das boates da cidade.

Os preparativos começaram com a produção de camisetas e cartazes. Logo, elas tentavam vender ingressos para a comunidade universitária no campus e no centro da cidade. Uma semana antes, apesar de poucas vendas, os ânimos estavam efervescentes. Kellen e Carolina chegaram a discutir por causa de um trabalho e ficaram alguns dias sem se falar. Na sexta-feira anterior à festa, para o alívio das outras colegas, finalmente conversaram.

– Que bom que voltamos a ser amigas e voltamos a nos falar, Kellen.

– Nós nunca deixamos de ser amigas, Carol.

Naquele dia, o quinteto mal conseguia manter-se quieto durante as aulas. Em um pedaço de uma folha de caderno rasgada se comunicavam alegremente, dizendo que iriam “bebemorar” na noite seguinte. Em uma das aulas, com um novo professor, saíram dos limites. A alegria, porém, era contagiante, pois nem ele conseguia manter a expressão séria.

Somente no sábado a venda de ingressos foi grande. Numerosa o bastante para prever uma festa lotada. Apesar de alguns erros, como a troca das bandas que tocariam, a animação era grande. Porém, um trabalho de Química pairava na cabeça do grupo.

– Eu sei que eu disse que ia fazer, Carol. Mas não fiz.

– Não se preocupa, Kellen. Depois da festa a gente vê.

– Carol, é sério. Fiz nada mesmo.

– Fica tranquila, domingo resolvemos isso. Depois da festa a gente vê.

No sábado à noite, Carolina se arrumava no quarto com a ajuda dos comentários da mãe. Mais tarde, o namorado viria buscá-la. O cômodo tem paredes cor-de-rosa claro, combinando com a colcha de mesma cor que cobre a cama de casal. Em cima, uma almofada em formato de coração, vermelha, bordada com as palavras “eu te amo”. A escrivaninha em frente à cama tem uma televisão moderna, de tela plana. À direita, uma cômoda de madeira. Acima dela, pendurado na parede, o quadro de 15 anos, com a foto da aniversariante sorridente no centro e várias assinaturas ao redor, das pessoas que comemoraram o aniversário com ela e ali lhe desejaram as felicitações. Emoldurando a janela, cortinas cor-de-rosa choque.

Ela aplica a maquiagem no rosto e arruma o cabelo. Assim como as colegas, usará a camiseta da festa, azul marinho, com a logo da boate, a data e o nome que haviam escolhido para o evento, “Agromerados”. Para vestir junto, escolhe uma bermuda branca.

– Não vai com essa, Carol. – disse a mãe, Clarice. – Ele é muito curto e justo, e hoje tu vai com o namorado. Que tal aquela ali?

Clarice aponta para outra peça. É uma bermuda feminina azul, estampada com pequenas flores cor-de-rosa, cuja borda é branca. Para combinar, coloca nos pés a sandália que ganhara de Clarice como presente de Natal. O salto do calçado é alto e dourado e as tiras no tornozelo e em cima dos dedos também cor-de-rosa. No pulso, coloca uma joia emprestada da mãe.

– Tchau, mãe! Te amo! – Carolina se despede na porta, e sai com o namorado para a festa de sua turma na Boate Kiss.

Arte: Bibiano Girard

 

A flor de todos os dias, pelo viés de Myrella Allgayer*

*Myrella é jornalista

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

xxn xnnx hindi bf xnxxx junge nackte frauen

Posts Relacionados

Comece a digitar sua pesquisa acima e pressione Enter para pesquisar. Pressione ESC para cancelar.