Ariel Nolasco: "Quando se mora num país recorde de crime contra travestis e transexuais, as mínimas coisas são uma batalha."

Foto: Arquivo pessoal.

Ariel Nolasco tem 21 anos e é de São Paulo. Como ela mesma diz, “tudo o que eu aprendi sobre militância e transfeminismo foi com base na própria vivência, nas leituras de textos de outras mulheres trans e nas pesquisas feitas na internet”. Ariel concedeu uma entrevista à revista o Viés especialmente para o 8 de março, Dia Internacional da Mulher. Inserida num contexto de militância pela voz da mulher trans, Ariel faz parte de um grupo de militância que contava com duas mil pessoas há um ano e, hoje, conta com mais seis mil, o que tem contribuído, como diz ela, a dar visibilidade para uma série de textos e resenhas que ela mesma escreve em seu blogue, o Ariel, the trans mermaid. Junto a outras amigas de militância como Daniela Andrade, Sofia Favero, Amanda Palha, Amara Moira e Maria Clara Araújo, atualmente Ariel se diz mais “crescida, agradecida por estar inserida num meio que me faz crescer enquanto mulher trans.” Você lê abaixo a entrevista na íntegra.
 Você identifica o dia 8 de março, Dia da Mulher, como um dia que abarca a mulher trans também? Por quê?
Ariel Nolasco (AN): Eu identifico o dia 8 de março como o dia de todas as mulheres. Das mulheres negras, das mulheres deficientes, das mulheres trans, das mulheres gordas e de tantas outras mulheres. Acho que esse dia representa a luta de um grupo que sempre foi diminuído, que sempre foi menosprezado e, em alguns casos, como o das mulheres trans, sempre foi assassinado.
A nossa luta, assim como essa data, é por resistência, por visibilidade, para lembrarmos a todos que existimos e que temos voz.
 Como você avalia a importância de sua militância como mulher trans?
(AN): A minha militância, assim como a de todas as mulheres trans, é de extrema importância.
A militância trans é uma militância de resistência, uma militância em que mostramos nossa voz e nossas particularidades todos os dias. É uma militância em que mostramos a importância da nossa existência, em que mostramos que estamos vivas e que é assim que precisamos continuar: vivas e resistentes!
Dentro de um grande movimento feminista que prega a ruptura dos estigmas de gênero, há ainda elitismo e principalmente situações de preconceito, como a transfobia de militantes mulheres. Como lidar com problemas ligados a preconceito dentro de um movimento que procura romper com eles? Isso afeta a mulher trans de que maneira?
(AN): Um dos maiores problemas da militância transexcludente, além da transfobia, é o fato dessas feministas não ouvirem as mulheres trans e as travestis. Nós temos diversos problemas sociais e precisamos resolver isso e uma das formas que achamos pra militar sobre isso foi o transfeminismo, uma vertente feminista para pessoas trans.
Acho de extrema importância a inserção de todos os tipos de mulheres em lugares feministas para que todas as mulheres percebam a importância das vivências e das particularidades de cada vertente, assim como suas necessidades e pautas, como a transfobia. E isso afeta as mulheres trans de uma forma pesadíssima. Com essa exclusão, nós ainda somos marginalizadas, assim como na sociedade. É passado a ideia de que nenhum lugar serve para nós. Escolas, trabalhos, universidades e até movimentos sociais. Isso mostra que a marginalização das identidades trans acontecem em todos os ambientes da nossa sociedade.
Você poderia nos explicar como está atualmente a situação da população trans quanto a direitos a documentação própria, por exemplo? Quais direitos a pessoa trans já tem no Brasil?
(AN): Atualmente, para que consigamos nossos nomes e nossos gêneros nos documentos, temos de passar por várias coisas. Existe uma coisa chamada DSM-4, que nada mais é do que uma lista que fala sobre doenças mentais e lá estão inclusas a transgeneridade, a transexualidade e a travestilidade. Somos tratadas como pessoas doentes, diagnosticadas com ‘distúrbio dissociativo de identidade de gênero’, ‘disforia de gênero’, entre outros. E, como somos doentes mentais, precisamos de laudos. São dois anos de consulta com endocrinologistas (que vão nos dar um laudo dizendo que nos ajudaram no processo de tratamento hormonal), mais dois anos de consulta com psiquiatras e psicólogos (que vão nos dar um laudo dizendo que estamos ‘aptas’ a viver socialmente). Após conseguirmos todos esses laudos, entramos com um processo contra o Estado para a retificação dos nossos nomes e dos nossos gêneros em nossos documentos. E com isso temos direitos extremamente minúsculos, já que sequer ao nosso nome e ao nosso gênero temos direito.
Existem alguns projetos sociais que visam a auxiliar a vida das pessoas trans, como o projeto transcidadania, os nomes sociais nos vestibulares e concursos públicos, mas ainda é muito pouco. Temos direito ao nome com que nos identificamos, mas não nos documentos. Apenas temos um resquício dele. É um começo, mas não o bastante.
Qual é a maior batalha, que se enfrenta, diariamente, sendo uma mulher trans?
(AN): A maior batalha é continuar vivendo. Quando se mora num país que é recorde de crime contra travestis e transexuais, as mínimas coisas fazem com que seja uma batalha.
Em casa mesmo existem experiências que são ruins, como não ter pronomes e nomes respeitados. Nas ruas, é sempre muito complicado. A sociedade exige que eu tenha uma aparência super feminina, 24 horas por dia, pois só assim eu posso ser – minimamente – respeitada e aceita, claro que, com isso, eu ainda sofro assédio e transfobia, com xingamentos e palavras intimidadoras.
Ser travesti, ser transexual, ser transgênera, na sociedade em que vivemos, é uma batalha diária.
A noção da cisgeneridade é um viés que parte de uma hegemonia de pensamento. Poucas são as pessoas cis que se percebem parte de uma classificação, de uma noção específica de sexualidade, que pode não ser a única. A grande parte da população cisgênero às vezes não tem noção do que trata o termo assim como não debate sobre a dicotomia entre homem versus mulher. Como você analisa a luta como mulher trans e a luta pela visibilidade de inúmeros reconhecimentos de gêneros?
(AN): A luta das pessoas trans parte também desse viés de reconhecimento de privilégios. Existe uma vertente feminista chamada “interseccional”, que visa a você rever seus privilégios perante outras pessoas e a ver que existem coisas que os outros podem sofrer e que você não sofre. Um exemplo disso. Eu sou branca e não sofro racismo, porém existem mulheres trans negras que, além da transfobia, sofrem o racismo. Isso é intersecção — e isso é importante.
Quando estou lidando com pessoas cisgêneras (e eu gosto de deixar bem claro essa palavra pois essas pessoas são cis), eu costumo mostrar dados. Brasil é o único país onde 90% das travestis e transexuais estão na prostituição segundo a ANTRA. Não existe nenhum outro grupo no Brasil que esteja nessa margem, nesses dados. É super normal você andar numa rua e ver dez, 15 travestis fazendo programa, mas por que não é nenhum pouco normal você ver dez, 15 travestis em universidades, em empresas, em instituições públicas? Porque esse lugar não nos pertence. Porque a sociedade cisgênera nos deixa bem claro que não pertencemos a esse ambiente e não devemos estar lá.
Ressignificar esse ambientes, ressignificar essa realidade é uma luta diária.
A legislação brasileira, principalmente agora, com a eleição de um congresso vastamente conservador, está longe de debater pautas ou aprovar avanços ligados a pautas progressistas, como as LGBTTTs. Há o Projeto de Lei 5002/2013, de Identidade de Gênero, que trata da viabilização e da desburocratização para indivíduo ter assegurado por lei o direito de ser tratado conforme o gênero escolhido. Entretanto, não são os próprios LGBTTTs que definem legalmente o rumo de suas vidas. Em entrevista concedida, o psicólogo João W. Nery diz que xs transexuais sempre estão nas mãos de outras pessoas, nas questões políticas, jurídicas, médicas etc. Como você analisa essa situação de ter seus próprios direitos definidos ou excluídos por cidadãos que não a representam?
(AN): Essa é uma questão muito complicada e incrivelmente chata. Ter nossos direitos negados por pessoas que não querem saber das nossas pautas e necessidades é, no mínimo, uma injustiça. Não temos um país que nos auxilie. Existem pequenos projetos que são feitos vez ou outra como forma de apaziguar a situação, mas não são o bastante. O Estado gosta muito de dizer que o SUS ampara as pessoas trans, quando ele não faz isso. O SUS faz cirurgias transgenitalizadoras e de mamoplastia masculinizadora, mas apenas uma cirurgia é realizada por mês. E, se der qualquer problema com algum equipamento ou falta de profissional, a cirurgia é adiada. Existem pessoas trans na fila de espera do SUS que só conseguiram realizar suas cirurgias depois de 25 anos. Injusto, não?
Quando falamos de políticas públicas, temos que lembrar que política pública é uma questão social e não uma questão de religião.
Foto: Arquivo pessoal.

 
Como sabemos, a bancada evangélica representa uma parcela da população. Essa bancada ultrapassa a linha divisória entre ato político e ato religioso, ou seja, questões que devem ser determinantes para seguidores de uma crença são elevadas a políticas públicas ou a determinantes de cunho político no congresso. O sistema representativo permite que cidadãos se unam para eleger políticos que os representem diretamente. Seria um caminho da luta trans eleger deputados diretamente ligados à causa LGBTTT?
(AN): Na realidade, seria melhor eleger uma pessoa trans para lutar pelas pessoas trans. Recentemente a comunidade trans teve experiências ruins com deputados que se dizem diretamente ligados com a causa LGBT, mas que acabam se esquecendo da sigla T, que acabam mostrando e reforçando estereótipos sobre a sigla T. Então, é necessário que haja pessoas trans lá para que nos representem melhor e nos enquadrem melhor.
Você se identifica com o movimento feminista? Quais problemas você acha que ainda precisam ser superados em relação às mulheres trans dentro do movimento?”
(AN): Eu me identifico com o movimento transfeminista. Eu entro em debates com mulheres (trans ou cis) sobre pautas feministas, mas existe um grande problema de mulheres trans serem expulsas desses lugares, de dizer que “não sabemos da realidade de ser mulher”, quando vivemos num país que é líder no índice de transfeminicidio.
São necessários todos os tipos de mulheres dentro do feminismo para que todos os diferentes tipos de mulheres sejam ouvidas e que as suas necessidades e pautas sejam levadas em consideração.
Como tornar o feminismo um movimento que represente a mulher em seus diferentes gêneros? Como, por exemplo, colocar o debate sobre homens trans dentro da pauta do movimento feminista, não como protagonista, mas como causa a ser debatida? Que movimento feminista você acredita ser o mais próximo do movimento com que você se identificaria?
(AN): Inicialmente, homens trans são transfeministas, sim. A pauta deles é tão importante quanto a de qualquer pessoa trans dentro do transfeminismo e a de qualquer mulher dentro do feminismo. Existe uma ideia de que a vivência de homens trans é a mesma que a de homens cisgêneros quando, na verdade, não é. Assim como mulheres, cis e trans, homens trans também têm pautas importantes, homens trans também são estuprados e homens trans também são transfeministas. Eles são participantes importantíssimos no transfeminismo, pois é um movimento que também é deles.
O Transfeminismo é a vertente com a qual me identifico.
 
Ariel Nolasco: “Quando se mora num país recorde de crime contra travestis e transexuais, as mínimas coisas são uma batalha.”, pelo viés de Nathália Drey Costa, Luíza Bertuol e Bibiano Girard.

2 comentários em “Ariel Nolasco: "Quando se mora num país recorde de crime contra travestis e transexuais, as mínimas coisas são uma batalha."

  1. Que mulher incrível, minha deusa do céu.
    O recorte e a especificidade com que tratou alguns temas foi muito bom. Se continuarmos tendo pessoas trans como ela militando estamos bem hein.

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