“Não é o meu corpo que é errado, mas a leitura que a sociedade faz dele”

foto: Gabriela Féres

Maria Clara Araújo é travesti, negra, nordestina e pobre. Filha de um pedreiro e de uma costureira, ela se declara “afrotransfeminista”. Com 19 anos, ela ingressou no segundo semestre de 2015 na UFPE como estudante de pedagogia. Recentemente, a convite dos DCEs da PUCRS e da UFRGS, Maria Clara veio a Porto Alegre e conversou com mais de 300 pessoas sobre a luta das travestis e das transexuais no Brasil, além de conceder a entrevista abaixo ao Jornalismo B, republicada aqui na revista o Viés.
Jornalismo B – Tu te classifcas como “afrotransfeminista”. O que isso significa e por que interseccionar as lutas?
Maria Clara Araújo – Interseccionar lutas feministas significa não entender as mulheres como uno, mas entender que mulheres são plurais. A interseccionalidade vê não o gênero como o pilar de todas as opressões que uma mulher pode sofrer, mas percebe que o patriarcado, a sociedade, a estrutura opressora nos lê de formas diferentes, e essas formas levam em consideração questões de raça e de classe também. Por conta disso, eu vi o termo “afrotransfeminista” em uma imagem e me apaixonei e comecei a usar, porque eu achava que era impossível falar sobre a minha transexualidade sem pautar a questão de eu ser uma menina negra e da periferia. Então as minhas vivências são totalmente diferentes de uma menina branca de classe média, por isso a necessidade de interseccionar as minhas lutas e a leitura que a sociedade tem de mim, para entender qual é o meu local de fala e quais pontos me levam a ser penalizada.
JB: O que é ser uma pessoa transexual ou travesti?
Existe uma linha tênue entre ser transexual e travesti, que basicamente seria entender que nós vivemos em uma sociedade e através dos seus valores culturais e sociais nos é atribuído um gênero a partir de uma leitura da nossa genitália. Uma leitura cisgênera, que na origem da palavra, no latim, significa “mesmo lado” ou “coerência”. A pessoa transexual seria a que não se identifica com essa designação. Transexualidade é sobre autorreconhecimento, criar uma autogestão do corpo e não se deixar ser colonizada por uma leitura que nos joga uma caixinha de gênero que nos foi designado. Essa pessoa transgride essa regra. No caso, eu fui identificada enquanto homem apenas porque eu tenho um pênis e eu transgredi essa ordem transformando o meu corpo, de certa forma, e me reconhecendo e me impondo socialmente como mulher. Isso seria uma pessoa transexual ou travesti. No caso da travesti, vai um pouco mais além, tem certas travestis que não se veem como mulheres, tem travestis que não se veem nem como homem, nem como mulher. Pode ser um terceiro gênero, uma pessoa que transita entre gêneros, isso depende da questão da autoidentificação, de como a pessoa quer se gestionar.
JB: Como as transexuais e travestis podem buscar espaço na sociedade capitalista?
Dentro da estrutura capitalista, ser transexual ou travesti está vinculado à prostituição, que é fruto da dominação masculina. Uma classe sobe quando outra é rebaixada, e as travestis e transexuais estão na base da pirâmide. Estamos vivendo em uma situação de marginalidade. As travestis e transexuais estão sempre na parte que está descendo, quase nunca na parte que está subindo, ainda temos uma carência muito grande com relação a cargos de representatividade ocupados por travestis. É por isso que, quando uma menina travesti passa em uma universidade, ou consegue um cargo em uma empresa grande, há mais visibilidade em torno, porque a gente está tentando trazer essa representatividade, para fazer com que outras meninas vejam aquilo e consigam se enxergar conquistando espaço dentro da sociedade.

Eu percebi que não é o meu corpo que é errado, mas a leitura que a sociedade faz dele apenas por causa de uma genitália. Nossos corpos não nascem com gêneros, não nascem com estereótipos.

JB: Durante a tua palestra na UFRGS, tu afirmaste que no senso comum dos brasileiros ser transexual significa nascer no corpo errado. No entanto, tu discordas disso. Por quê?
Uma vez que eu luto diariamente para ser reconhecida como mulher, independente de eu ter um pênis, se eu disser que esse corpo é errado eu estou sendo contraditória em relação ao discurso que eu estou tentando construir. Eu percebi que não é o meu corpo que é errado, mas a leitura que a sociedade faz dele apenas por causa de uma genitália. Nossos corpos não nascem com gêneros, não nascem com estereótipos. Nós nascemos e a partir dali toda uma estrutura é criada e uma imagem é atribuída. Quando nascemos com pênis, pintam nossos quartos de azul, quando nascemos com vagina, pintam nossos quartos de rosa. É uma imposição da sociedade, não é o meu corpo que se impõe desta maneira.
JB: Como quebrar essas imposições?
Entendendo que cada um tem o direito de se construir como quiser. Transexualidade é sobre isso. Sobre autoidentificação, sobre você ter uma autonomia em relação a sua imagem. Eu tive um tempo muito ruim na minha vida por sentir insegurança porque eu estava me construindo de uma maneira que socialmente era estabelecida como a forma que uma mulher deve se construir. Hoje, isso mudou, porque agora estou me construindo como eu quero, e não tento suprir expectativas de terceiros em relação a como uma mulher deve ser para ser taxada de bonita. Nós quebramos isso entendendo que gênero é um construto social diário. As violências misóginas com as trans acontecem justamente por causa dessa performatividade feminina que essas mulheres fazem todos os dias. A partir do momento em que eu sou reconhecida enquanto mulher, eu estou propícia a sofrer qualquer tipo de violência que qualquer outra mulher, seja cis ou trans, venha a sofrer. A forma de quebrar essas normativas é entender que gênero é um construto social e sexo biológico não necessariamente dirá qual o gênero que a pessoa se identifica.

É triste constatar que às vezes a prostituição é o único lugar em que a travesti tem sua identidade reconhecida. Aquele serviço está sendo prestado porque elas são vendidas como mulheres, que podem ser dominadas, como qualquer outra mulher.

JB: A Associação Nacional de Travestis e Transexuais estima que no Brasil 90% das travestis e transexuais estão se prostituindo. Na tua opinião, por que isso ocorre?
Ocorre porque a sociedade naturalizou a posição da prostituição como único caminho que a travesti pode ter na sua vida. É muito comum as meninas tudo que as amparam, escola, trabalho e família, e encontrarem nenhum outro caminho senão a prostituição. Na cultura brasileira a vivência da travesti está diretamente ligada à questão da prostituição, da profissional do sexo, e tudo que inclui este submundo. Para entender essa designação compulsória é preciso olhar para a base da sociedade, que joga essas meninas para esse tipo de situação, e observar como o sistema educacional trata o gênero em si. Eu pauto que educação seria a melhor maneira de quebrar os preconceitos em relação às travestis e transexuais, porque acredito que é a forma de nos verem em uma posição humana e que nos permita futuramente, quando chegarmos para fazer uma entrevista de emprego, sermos contratadas por sermos qualificadas. É toda uma imposição de vida, uma filosofia da sociedade que te enxerga como travesti e coloca a prostituição como único lugar que pode ser ocupado por ti. É triste constatar que às vezes a prostituição é o único lugar em que a travesti tem sua identidade reconhecida. Aquele serviço está sendo prestado porque elas são vendidas como mulheres, que podem ser dominadas, como qualquer outra mulher. Apesar disso, eu não critico a escolha de se prostituir, sou a favor da regulamentação, porque se elas estão naquela posição de marginalidade, acho que tem que ter algo para ampará-las e protegê-las. É duro ver pessoas falando que são contra a prostituição, mas normalmente essas pessoas são brancas, de classe média, e não precisam ir para a prostituição para sobreviver. É preciso ver que aquelas meninas são humanas o bastante para estar transitando nas ruas no dia a dia, e não só à noite nas ruas escuras.
JB: Dentro da pauta da educação, na UFRGS tu citaste situações de preconceito vividos na escola. O sistema educacional brasileiro sabe lidar com pessoas trans ou travestis, ainda que estas pessoas estejam em um processo de descobrimento?
Eu comecei desde muito cedo a vivenciar situações vexatórias porque eu nunca tive um comportamento socialmente tido como masculino, eu fui designada como homem. Sofri violências físicas e psicológicas e fui culpabilizada por isso. Foi bastante doloroso, porque eu não tinha maturidade pra entender aquela situação, mas precisei desenvolver uma força pra suportar tudo o que era colocado. Fui obrigada a amadurecer, uma vez que eu não tinha um diretor e professores que me amparassem, não podia conversar com os meus pais sobre o que acontecia comigo na escola, eu não tinha amigos, porque nem os meninos, nem as meninas gostavam de ficar perto de mim. Quem eu tinha para me amparar, a não ser eu mesma? Isso aconteceu comigo, já não estou mais no colégio, mas tem gente entrando na escola agora e passando pela mesma coisa. A Pedagogia como um todo ainda é um ambiente muito conservador, que parece não querer conversar sobre coisas importantes que devem ser debatidas, como a questão do gênero. A maioria dos cursos de pedagogia ainda tem uma presença evangélica muito grande, por conta disso se cria toda uma cultura de “não vamos conversar sobre isso, porque é muito polêmico”. O curso lida com pessoas, mas a gente não estuda como lidar com essas pessoas, mas somente fazendo isso a gente vai conseguir arquitetar novas estruturas para diminuir as penalizações que certos grupos sofrem em espaços que deveriam ser de aceitação e compreensão. Quando eu escolhi Pedagogia foi para tentar questionar esse modelo e transformar a Educação em um instrumento de libertação e empoderamento. Eu já fui monitora de uma escola no Recife e lidava com crianças pequenas, era notória a diferença de tratamento que as crianças me davam e que os pais delas me davam. As crianças nunca fizeram uma piada comigo, mas quando os pais delas vinham pegá-las, eu sentia no olhar o desrespeito. A criança não nasce com preconceito, ela recebe isso ao longo dos anos, e a escola deve ser o local para desconstruir estes preconceitos.
JB: E no campo universitário no Brasil, tem espaço para as travestis e transexuais?
Tem-se criado espaço. Nome social tem sido um debate mais presente, o que é muito importante. Por exemplo, no dia 13 de maio o ministro da Educação, Janine Ribeiro, falou que nenhuma pessoa trans ou travesti vai ser exposta a situações vexatórias por conta do nome civil na prova do ENEM. Isso é um ganho que veio com muita luta do movimento trans. Finalmente estamos ganhando alguma visibilidade, principalmente nas universidades federais. As particulares estão andando mais devagar. No Nordeste, as principais universidades federais já aderiram ao uso do nome social. Na UFPE eu conquistei isso, porque era uma das únicas que ainda não usava.
JB: E quanto à inserção nas universidades?
É preciso trabalhar em um projeto de inserção dessas mulheres, o nome social é importante, mas não é tudo, é preciso trabalhar em campanhas de conscientização para que pessoas trans e travestis saibam que elas podem ocupar o campo universitário. Quantas travestis e transexuais estão nas salas de aula hoje? Como poderíamos mudar a situação deplorável de não vermos essas meninas cultivando um interesse na Educação, porque sabem que não haverá um mercado de trabalho que as empregue?

No campo judiciário, nós precisamos entregar laudos de psiquiatras, psicólogos e endocrinologistas atestando que somos pessoas trans. Isso nos tira a autonomia, porque nós temos que suprir a expectativa de um terceiro sobre como devemos nos construir. Eu tenho direito de dizer como eu sou, como eu quero me construir e eu não deveria precisar recorrer a terceiros para garantir isso.

JB: As travestis e as trans se veem representadas no movimento LGBT?
Isso vai muito de cada um, geralmente as trans mais antigas se veem, por terem vivido em uma época diferente, na qual lutaram muito para termos o pouco que temos hoje. No entanto, eu acredito que aqueles que chegam hoje no movimento LGBT não se veem representados, porque às vezes o próprio movimento reproduz certos preconceitos. O movimento LGBT se escora muito nos dados de agressões e assassinatos das travestis e transexuais, mas na hora de fazer política pública, na hora de realmente discutir sobre a nossa situação, não aparece. Por exemplo, quem tirou a homossexualidade da patologia foram psiquiatras gays. Onde estão estes psiquiatras para tirar a transexualidade da patologia?
JB: Uma das tuas lutas é pela despatologização da transexualidade. Como essa luta se dá no campo jurídico hoje no Brasil?
A luta pela despatologização é também uma luta por autonomia. A despatologização serve para quebrar essa colonização dos corpos das trans e travestis. Entendendo que nós temos o direito de nos gestionarmos como quisermos, e a patologização é um obstáculo nas nossas vidas. No campo judiciário, nós precisamos entregar laudos de psiquiatras, psicólogos e endocrinologistas atestando que somos pessoas trans. Isso nos tira a autonomia, porque nós temos que suprir a expectativa de um terceiro sobre como devemos nos construir. Então pode ser que se eu chegar com o meu cabelo cacheado e curto o psicólogo ache que uma mulher trans não teria o cabelo assim, e eu não posso contra-argumentar com um profissional porque no entendimento da Justiça ele que tem capacidade de dizer o que eu sou e sobre como eu devo me construir. A luta pela despatologização é justamente por isso, nós não temos uma voz maior que a nossa em relação a nós mesmas. Eu tenho direito de dizer como eu sou, como eu quero me construir e eu não deveria precisar recorrer a terceiros para garantir isso.
JB: Algumas correntes do feminismo não enxergam a luta trans como uma parte da luta das mulheres. Na tua opinião, por que o feminismo deve contemplar a luta das mulheres transexuais e travestis?
Mulheres não são uno, mulheres são plurais e tem especificidades. Não podemos reproduzir modelos patriarcais e hegemônicos de se fazer política, que usem de exclusões para se construir. Devemos lutar por legitimidade, por incluir mulheres dentro do movimento feminista, entendendo que somos uma classe plural, mas unificadas por sermos mulheres. E um feminismo que não luta por todas as mulheres está sendo seletivo, dessa forma está reproduzindo modelos hegemônicos de só contemplar mulheres brancas e cis. Assim como as trans, muitas vezes as mulheres negras também se veem invisibilizadas no feminismo. Na hora de colocarmos na mesa para ver quais violências as mulheres travestis e transexuais sofrem, por serem lidas como mulheres, elas também estão sofrendo violências misóginas também. Quando uma mulher trans é morta, na maioria das vezes ela sofreu um estupro antes. Entender que esse grupo de mulheres é marginalizado socialmente e precisa ser amparado é ser feminista. Um feminismo que luta por exclusões é apenas reproduzir modelos que o próprio feminismo tenta se colocar contra.
“Não é o meu corpo que é errado, mas a leitura que a sociedade faz dele”, pelo viés de Gabriela Féres*
Gabriela Féres é estudante de Jornalismo e escreve para o Jornalismo B, onde a entrevista foi originalmente publicada.

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