MINHA FALTA

Velho, de Cândido Portinari

E de repente eu estava lá com aquele homem magro de barba rala, óculos na ponta do nariz, cabelo grisalho e dentes amarelados. Olhava-me como quem analisa uma coisa do outro mundo, porém queria demonstrar total tranquilidade, o que nem de longe conseguia. Perguntou-me uma série de coisas, tais como: quem era eu, qual era a minha Pátria, meu endereço, nome de meus pais, minha idade, quantas letras existem na palavra “uva”, quantos pneus tem um carro, se chove de baixo para cima ou de cima para baixo, etc …

O ambiente, suas perguntas, sua postura e seu olhar inquiridor não me deixaram nada tranquilo para lhe oferecer minhas respostas. Sabia que nada ali era gratuito e que tudo tinha uma intenção. Seria ela boa? Má? Meramente curiosa?

Respondi tudo com ares filosóficos. “Sou o que não sou, pois ainda estou sendo, como poderia vir a ser se já fosse?”; “Minha Pátria é Pátria que não é minha”; “Moro no mundo do qual sou cidadão”; “Meu pai se chama Amor e minha Mãe é a Paixão”; “Tenho a idade do universo, foi ali que eu comecei a ser gestado”; “Se a “uva” tem  “casca”, “sementinhas”,  “polpa do fruto” e  está no “cacho” que, por sua vez, se encontra no “galho” de uma “parreira”, que se encontra plantada na “terra”, enfim é preciso contabilizar tudo isto, o que resultará   num enorme número”; Apontei a relatividade sobre os pneus do carro, visto que há carro de boi, de mão, de bebê, de brinquedo, alegórico e até, inclusive, o automobilístico – do qual se pode contar ou nãop o estepe; Quanto à chuva lhe disse que tanto faz se chove de cima ou de baixo, porque isto depende do ponto do universo no qual se encontra o observador, porque olhando da superfície da terra é uma coisa e do espaço é outra.

Pela sua reação nervosa creio que não passei no teste, acho que ele não queria respostas que estivessem para além da superfície. Fui nada sábio, pois o interpretei mal, projetei a sua finalidade intencional e tentei corresponder a ela, entretanto, seu objetivo me parecia diverso. Qual era, ele ainda não sabia, mas, certamente, não via as coisas muito além de seu disfarce aparente.

Da entrevista me conduziram até um grande tubo, onde encalharam a minha cabeça, tal como se ela fosse o lixo que se acumula nos valos das cidades em dias de chuva. Ali entalado, sem poder realizar qualquer movimento, ouvindo barulhos estranhos, sem ter ninguém mais na sala, fiquei sepulto por uns 50 minutos. O doutor das perguntas difíceis, na companhia de uma junta médica, assistia, sem o mínimo de emoção, a transmissão ao vivo de meu cérebro para a tela de seu computador. Todos balançavam a cabeça sem entender nada e muito menos eu.

Retiraram-me do túnel e me deram um pequeníssimo penico para que eu urinasse. Gente esquisita aquela da torcida do doutor! Deram-me um banheiro desconfortável sem que eu houvesse pedido um. Como eles não saíram da volta virei de costas, saquei da “arma” e pronto: Enchi o peniquinho até transbordar. Uma moça muito bonita, mas pouco simpática, deu de mão no vidro, o tapou e saiu em disparada louca para um lugar à parte.

Ainda quando a observava em sua maratona com o vidro na mão, tal qual a corrida com o bastão, achegaram-se para o meu lado dois homens grandes, fortes e um terceiro gordinho, baixinho e careca disse que precisava tirar um pouco de meu sangue. Prontamente os dois homenzarrões sentaram-me na cadeira, puxaram a manga de minha camiseta, seguraram-me fortemente e o nanico fez o serviço enchendo uns 8 ou 10 vidrinhos de sangue! Neste ínterim, a moça da corrida já havia retornado e carregava agora, com cuidado, os sucos vampíricos nos vidrinhos postos numa caixa do mesmo laboratório do penico.

Depois disto, levaram-me até uma sala toda branca, que tinha uma mesa branca, uma cadeira branca e um quadro branco na parede. Puseram-me ali, trancafiado, por horas a fio. Fiquei sentado com os braços debruçados sobre a mesa e com a face escondida por entre eles. Sucederam-me mil ideias e sentimentos. Nesta posição chorava, ria, esbravejava, gargalhava, tremia, dormia… Alterando de segundo para segundo o meu comportamento. Num dado momento, ouvi um barulho e a porta estava aberta. Não sei se ela se abriu sozinha, ou por controle remoto, ou ainda se foi aberta por alguém que, depois deste feito, havia sumido.

Na porta, já fora da sala, havia um filhote de mula no qual montei e que me conduziu até uma espécie de semi-palácio, onde encontrei algumas autoridades importantes. Apeei do burrinho e foi-me apontado um banco de réus no qual tomei assento e ouvi, atentamente, a leitura de um longo relatório no qual prestavam contas do resultado dos exames. Recordo-me que a respeito das minhas respostas àquelas perguntas diziam: “pouco usuais, mas sem qualquer comprovação ou  probabilidade de delírio”; sobre o exame de ressonância magnética afirmavam que não havia nenhuma alteração patológica no cérebro; Os exames de urina e sangue não tinham acusado qualquer presença de drogas ou de medicamentos que explicassem a alteração psíquica; e, por fim,  que a observação na sala branca confirmava os resultados dos outros exames.

Após a leitura, o alarme, entre as insignes autoridades, ganhou proporções caóticas. Debatiam ferrenhamente uns com os outros, falavam ao mesmo tempo, batiam na mesa, folhavam antigos livros amarelados, escabelavam-se, gritavam com dedo em riste… Os admiráveis haviam perdido de vez a compostura, o ar sério e reservado, a frieza e o controle emocional que lhes são típicos. Retomada a ordem deste caos, puseram-se a inquirir-me sobre o incompreensível e absurdo questionamento que o meu caso levantava para o velho e grande saber científico.  A convicção inabalável na ciência procedimental, na razão objetiva dos métodos seguros, não poderia ser posta assim em crise por um reles individuozinho, sem que esse arcasse com alguma pena. Ou seria a reafirmação do progresso conquistado pela humanidade, ou então… nada!

Tentei tomar a palavra para, enfim, saber do que se tratava, pois, até então, tudo me era estranho. Imediatamente fui silenciado por uma reação violenta, agitada e agressiva. Com todas as letras foi-me dito que não me fizesse de desentendido. Depois disto, continuei em silêncio, numa ignorância absoluta sobre o meu crime. Após exaustiva seção de mil teorias, todos se retiraram levando consigo o burrinho. Quanto a mim, fui levado por um regimento de policiais até uma masmorra escura e úmida, onde fiquei com os pés, mãos e pescoço acorrentados.

Não sei bem quantos dias ali passei. Diante desta situação nem minha mente se esforçava mais para compreender a situação. Num dado momento, uma espécie de mago, meio bruxo, meio sacerdote entrou na masmorra e falou comigo. Sua fala serena, destoante de seus paramentos, convidava-me para que eu mudasse, a fim de não ir parar na fogueira. Perguntei-lhe em que errara e qual era o meu crime, visto que de fato não tinha consciência de nada do que estava ocorrendo. Diante desta fala ele se arrepiou todo, fez uma cara de apavorado, perguntando-me incessantemente “como?”. Em sua fala posterior, disse-me que era impossível eu não saber sobre a minha criminosa atitude comentada por todos. Como é que eu não sabia do que se tratava?

Tentei lhe explicar de muitas formas, até que, habituado a me ouvir, decidiu dar credibilidade às minhas palavras. Acho que isto aconteceu mais pela sua misericordiosa atitude celestial, do que propriamente pela fé em minhas palavras. Ao convencer-se de que eu de fato não sabia dos acontecimentos daqueles dias, decidiu arriscar a sua própria vida para pôr-me a par da realidade.

O plano deste mago estranho e generoso era conseguir uma licença das autoridades supremas para que eu fosse até à sua cripta e lá me esclareceria tudo. Levou alguns dias até convencer os sumos de se encontrarem comigo num local mais apropriado. Assim, garantiria a eficácia no seu trabalho, e, por sua vez, não mancharia de churrasco humano as páginas dos livros sabiamente escritos pelos gênios humanos.

Com forte segurança fui conduzido até à morada do amigo dos deuses e meu amigo mago. Alguns policiais queriam entrar no recinto, mas, em nome das forças cósmicas, foram barrados. Sem demora o mago pôs em sua TV uma gravação de uma peça de teatro e pediu-me que assistisse com atenção. Assim o fiz.

A peça era boa, não genial, mas boa, sobretudo o seu conteúdo. Ela tinha um forte tom político, reivindicatório, popular e transformador.

Ela dizia que pensar o sentido da Universidade deve estar em consonância com o projeto de sociedade que se quer ter. O filme, que demonstrava a peça, procurava pensar a Universidade para além da mera reprodução daquilo que se vive em sociedade lá em seu microcosmos. Dizia, através de diversas linguagens, que os rumos universitários deveriam ser dados, democraticamente, pelos movimentos estudantis, profissionais, professores, população em geral, e os especialistas em educação deveriam ser seus servidores e não senhores. A obra dramatúrgica exigia que a universidade pública deveria ter, no Estado, o responsável pela sua manutenção, tal como é feito,  hoje, com os bancos. Teria a garantia de ser gratuita, livre dos valores do mercado. A autonomia para com o orçamento, organizado a partir de prioridades definidas pela participação popular, seria o primeiro passo para que fosse garantida a autonomia pedagógica para construí-la a partir de sua localidade. A universidade do futuro não precisaria de cotas para afros, indígenas, pobres, estudantes de escola pública, porque o acesso a ela seria universal. Não precisaria se preocupar com a regulação da propriedade intelectual, visto que, de acordo com a nova sociedade, toda propriedade seria coletiva. A universidade particular teria uma importância enorme, como peça de museu, a fim de dar uma mostra para as gerações futuras dos erros de nosso passado. O Ensino, Pesquisa e Extensão passariam a ser Ensino-Pesquisa-Extensão-Ensino… Reformas Universitárias aconteceriam a cada dia de acordo com a avaliações, os juízos e as medidas dos envolvidos. Nenhum provão avaliaria todos, no final do ano, pois a prova seria um desafio do dia-a-dia. Nenhum aluno precisaria ser assistido com material escolar, moradia, roupa, transporte e alimentação, pois essa seria uma prioridade para todo o cidadão, fosse universitário ou não.

Depois destes aspectos mais genéricos, cuja maioria foram captados apenas pela intuição, a peça de teatro dava um giro no seu estilo, e até mesmo em sua proposta, de maneira radical. Entrava um novo cenário, novos personagens, novas relações permeadas de realismo. Deste modo, a peça guinava da entrada da sociedade na universidade para a entrada da universidade na sociedade, invertendo a relação de utilizar-se da vida como matéria prima para o seu saber. Nesta nova etapa da peça, até o fato de incorporar pessoas da comunidade na vida da universidade fora combatido. Aí me diverti com cenas inimagináveis, realizei-me com o sonho que sempre tive, até parecia que o autor daquela peça era eu.

A universidade já não era mais universidade, embora continuasse a sê-la. Era a mesma no diverso, aquela que se perde para novamente se reencontrar. A diluição que a constrói e a construção que parte destra novidade caótica. Eram fantásticos os movimentos de tombos e soerguimentos, resistências e transformações, tensões pluripolarizadas, provocadas por um abalo na ordem de então.

Neste ato da peça, a universidade se diluía na sociedade. As aulas eram ministradas nas ruas, nas praças, na parada do transporte coletivo, na beira da praia. Os idosos, crianças, músicos, artistas, pessoas desprovidas de mais estudos, líderes de sindicatos, poetas,… ministravam aulas com o mesmo status de professores universitários. Os títulos não contavam mais, o importante era a sabedoria. A transformação atingia, também, o corpo discente, que não mais era controlado com faltas, notas, comportamento. Todos iam à aula quando queriam e da forma como queriam. Os diplomas e certificados eram todos inúteis, afinal de contas, título era apenas um papel, o importante era o saber!

Assistia a tudo isto com grande expectativa, para conferir a que conclusão a peça iria chegar. Nisto houve um grande tumulto, uma espécie de turbilhão de vozes, forças, movimentos, gritos, batidas de coturnos e espadas. A cripta do velho mago fora invadida. O mago quis engolir a televisão a fim de que os invasores não a vissem, mas não teve tempo. Os militares certificaram-se do que tratava o filme a que assistíamos e nos prenderam, ao velho e a mim. Cada vez entendia menos esta história louca, parecia estar vivendo uma alucinação.

Arrastados pelas ruas da cidade, o povo aumentava o barulho que nossas correntes faziam com gritos histéricos e apaixonados de ódio. “Mata”; “Fora”, “Crucifica”, “Enforca”, “Fogueira”, “Bandidos”, “Baderneiros”, “Arruaceiros”, “Desordeiros”, “Malditos”, “Cadeira Elétrica”… Os dados não se conectavam logicamente. Primeiramente, fora preso por conta de uma série de exames, o velho me conduzira à sua casa e passara o filme de uma peça de teatro que abordava uma nova e alucinógena universidade, e agora estávamos lá, indo para a morte.

Entre a barulheira toda o velho mago tentava me explicar a realidade com o intento de fazer-me morrer consciente. Dizia de seu canto: “A peça de teatro foi feita por você”, “Todos a rejeitaram”, “A peça foi considerada nociva”… De meu canto perguntava por que o estavam prendendo, também, visto que eu era o responsável pela peça. Ouvindo minha pergunta, respondeu-a dizendo que a peça estava proibida.  Quem tivesse, em casa, a cópia de sua gravação seria réu de morte. Agora sim tudo fazia sentido, eu era um preso político, um subversivo, por ter-me permitido delirar sobre uma nova universidade. Minha nova interpretação e proposta política não faziam sentido. Para aquelas pessoas eu era tal como um louco que fantasia coisas de outro mundo. Mas se os exames demonstravam não ser eu um louco então só poderia ser um criminoso.

Ao passo dos chicotes e escárnios vivi momentos de profunda agitação, a ponto de quase estourar em agressividade contra tudo e contra todos, mas já me encontrava literalmente amarrado para isto. Segui minha via crucis encontrando motivos de alegria ao ver que o mago ousara guardar, em sua casa, a gravação da peça de teatro. Ele e eu éramos pessoas de visão diferente, que olhávamos para aspectos de caráter incongruentes aos olhos dos outros que nos queriam mortos. E com a alegria dos mártires rumávamos para nossa morte, deixando inclusive de ouvir a zombaria daquelas vozes e sons, transformando-as em aplausos pela nossa grande proeza de delirar, neste mundo de delírio, a fim de encontrar a realidade mais autêntica da vida. Tínhamos ido para além do mundo possível, havíamos adentrado noutra realidade até então inexistente para o pensar.  Este mundo real já não nos suportava, era preciso nos mandar para outro mundo.

Em meio a estes pensamentos todos, tentava significar positivamente o dado negativo. Nisto cheguei, sem perceber, até à fogueira onde o mago e eu já estávamos amarrados, ouvindo um brilhante discurso do Mais Excelso dos Magníficos Reitores Alados de Chifres que enobrecia a universidade, reconhecia a importância social de tal instituição, o seu caráter ético e até mesmo transformador. Entretanto, reafirmava a formalidade, autoridade, institucionalidade como condições de possibilidade para o seu necessário existir. Dizia ainda que a Universidade está para além do senso comum, do qual é superior, uma vez que detém o saber científico, metódico, procedimental, sistemático, reflexivo, engajado… De tudo isto, concluiu que, pelo fato de alguém produzir uma peça de teatro daquelas, devia ser eliminado do meio social, antes que pusesse todo o organismo social e a própria universidade em risco de morte. E mais: a mesma sorte deveriam ter os seus comparsas.

Após os eufóricos aplausos, foram trazidos os antigos diplomas universitários dos réus, a fim de que servissem para acender o fogo que nos queimaria. Meu companheiro Mago começou a ter ataques epiléticos, o que acelerou o churrasco. No momento em que o calor atingiu minhas pernas, apavorei-me, e no intuito de apagá-lo comecei, desesperadamente, a assoprar sem obter qualquer efeito positivo. Ainda pensei em renunciar as minhas ideias para garantir a minha vida, mas já tinha ido longe demais. Tentava me libertar, porém me achava amarrado à fogueira e não conseguia me soltar, quanto mais eu me mexia mais e mais eu me enrolava. O desespero ia tomando conta de vez, um sentimento de horror se apossava de mim. O filme de minha vida passava pela minha cabeça, me lembrava de todas as coisas que havia feito ou não, neste mundo. Só não me recordava de ter feito aquela maravilhosa peça e era exatamente por ela que eu ali estava. Numa fração de milésimo de segundo pensava que valia a pena, noutra já não tinha tanta certeza. Aquela agonia ia se propalando, todos riam de mim, mas eu não desistia. Mexia-me e remexia-me tentando sair e, estranhamente, o fogo não chegava a me atingir, pelo menos, até este momento. E, de repente, num puxão forte que consegui dar, em minhas amarras, caí com fogueira e tudo.

Ergui-me do solo com rapidez e olhar assustado para os lados. Estava pronto para tudo para o que desse e viesse. Sabia que a população não deixaria barato e que ser linchado pela poderia ser uma morte bem mais horrível do que a da fogueira, mas, pelo menos, morreria de forma heróica, lutando. Assim, de pé e de punho cerrado olhei para todos os lados e vi o meu quarto vazio, minha cama no chão com os lençóis enrolados feito cordas amarradas umas às outras. Sequei o suor de meu rosto, endireitei a cama, tentei relaxar e acalmar o coração, tomei um banho quente, tentei me recompor ouvindo uma boa música e, naquele ambiente, decidi não ir a aula da faculdade naquele dia, mas passear pelas ruas da cidade conversando com as pessoas. Recebi falta.

 
MINHA FALTA, pelo viés do colaborador Eliézer Oliveira*
*Eliézer é Filósofo e professor da Universidade Católica de Pelotas. Já publicou n’o Viés O CRIME DE CESARE BATTISTI e FILOSOFIA POLÍTICA EM QUINZE ESTAÇÕES
 

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